Crime em Serra Verde (parte 1 de 3)
*I – Ao Rio!*
A tabuleta de madeira balançava suavemente com o vento frio do outono. Nela, estavam esculpidos um galho de árvore, cheio de frutinhas ovais, e um nome: Ramo de Oliveira. A porta de vidro enrugado logo abaixo estava fechada, mas uma placa indicava que o hotel estava aberto.
A porta ao lado dela estava aberta, era um restaurante e tinha poucas mesas ocupadas. No dia anterior estivera um calorão, mas, naquele, o frio cortava, e a maioria das pessoas estava resfriada.
Um rapaz alto e magricela, com um avental curto demais para ele, levava uma bandeja com três pratos fumegantes. Dirigiu-se com desembaraço para uma mesa onde estavam um rapaz com o cabelo besuntado de gel e uma falsa loira de blusa de lã rosa.
_E a Semana Santa taí, gente _disse o rapaz alto, depositando a bandeja sobre a mesa e se sentando. _O que vamos fazer? Alguma sugestão? Betinho?
_Não sei...
_E você, Ju?
_O que vocês decidirem tá bom.
_Sabe, é que eu pensei se a gente não podia ir para uma cidade à beira-mar. Meu padrinho, aquele lá do Rio, está me chamando para ir lá e levar uns amigos...
Ao dizer isso, olhou para Juliana. A garota fez uma levíssima expressão de desgosto.
_Claro, _apressou-se a acrescentar _a gente tem que decidir juntos... O que acham?
_Ah!... _a moça deu de ombros. _Vamos pro Rio, ainda não fui lá depois da mudança. Tô até com saudades, é que...
Os garotos se entreolharam. Os pais de Juliana tinham sido presos por envolvimento com o tráfico de drogas no ano anterior, quando ela ainda morava no Rio de Janeiro. Sem parentes que a aceitassem, encontrou um irmão que não conhecia e que estava sendo transferido para Ouro Preto, passando a morar com ele. Carlos era um policial em início de carreira e morava com uma mulher quase dez anos mais velha (era sua chefe, inclusive), a Luciana, embora os dois nunca dessem mostra pública de manterem algum relacionamento.
Nessas circunstâncias, era natural que ela não se sentisse bem ao se lembrar da Cidade Maravilhosa. Mesmo assim, Sandro, o rapaz alto, perguntou:
_É que o quê?
_Ah, é que eu posso encontrar algum ex...
Sandro levantou apenas uma sobrancelha, com um ar de incredulidade e ela se sentiu imediatamente provocada:
_Eu sei que parece bobagem, o Rio tem milhões de habitantes, mas as probabilidades estão sempre contra mim. É cada coisa que me acontece! Veja só, eu namoro com você, por exemplo.
Ele riu. Alberto, o Betinho, pediu atenção:
_Então vamos mesmo para o Rio? Vou conversar como pai, tenho quase certeza de que ele libera o carro e um motorista pra levar a gente. Cês querem ir mesmo? Pois se estiverem animados, podemos ir amanhã.
_Melhor ainda! _Sandro brandiu o garfo, sorrindo. _Ao Rio, sem demora!
*II – Começa a viagem*
Viagens são geralmente um tanto complicadas de se organizar, mas com um amigo que tem pai rico, tudo fica mais fácil. Juliana conseguiu a autorização de Luciana sem problemas, mas Carlos teve que ser informado de que ficariam na casa do padrinho de Sandro, que Juliana dormiria em quarto separado dos garotos e não iria em passeios sozinha. É bem verdade que é preciso ser rigoroso com moças e que irmãos nunca confiam em namorados, mas o pobre Carlos nunca aprendia que Sandro tinha bom senso por ele e pela namorada, sendo mais confiável e recatado que ela. Coisas de irmão zeloso.
Os dois garotos já tinham feito várias outras viagens de última hora naquele estilo antes, por isso não tiveram dificuldades com seus pais. Restava apenas arrumar as malas e esperar o dia amanhecer.
Na porta do hotel, Sandro e Juliana esperavam Alberto. A garota levava duas malas enormes e abarrotadas, que faziam a mala _também grande, mas não tão cheia _do rapaz parecer uma mochilinha.
_E aí, a mudança já está toda aqui fora? _chamou Alberto, de um carrão que acabava de encostar.
_Ô!
Malas ajeitadas, pessoas devidamente sentadas, partiram. Como ainda era muito cedo, estavam sonolentos, embalados pelas curvas da estrada. Não sabiam quanto tempo de viagem havia transcorrido ao avistarem o Cristo Redentor ao longe...
??!!!
Não, não era o Cristo do Rio, mas o de Conselheiro Lafaiete, bem menor que seu parente famoso. Ainda faltava muito chão...
O barulho dos pneus no asfalto, cada vez mais monótono, e as árvores passando foram o suficiente para fazerem os três jovens embarcarem em um bom cochilo. Até o motorista ficou tentado a parar o carro e fechar um pouco os olhos, também.
Estavam ainda longe de Cristiano Otoni, a próxima cidade depois de Lafaiete. De repente, um solavanco tirou os três amigos de seu sono. O carro resfolegou, saltou, chiou e, assim que alcançou o acostamento, desligou sozinho. O motorista esperou, girou a chave e nada. Continuou tentando, mas não obteve resultado. Contrariado, saiu do carro e verificou o motor. Tudo em ordem. Tentou fazer o carro pegar de novo. Nada.
_O que foi, seu Domingos? _perguntou, Alberto, intrigado.
_Sei lá! Levei o carro na revisão ontem, tô conferindo agora e não vejo nada! Nada de errado. Combustível no tanque, motor perfeito, água no radiador, óleo OK, rodas perfeitas. O carro simplesmente parou e não quer andar nem a pau! A culpa não é minha!
_Claro que não é. Agora a gente tem que dar um jeito, tirar ele do meio da estrada, achar um mecânico... _Alberto tirou seu celular do bolso e fez uma careta. _Fora de área! Esse celular só me dá desgosto! Quando realmente preciso dele, está fora de área ou descarregado! _Cutucam nele. _Agora não, Sandro. O que a gente faz? _Novo cutucão. _O que foi?!
_Vem cá.
Sandro segurou os ombros do amigo e o conduziu a uma entrada que parecia ser de uma fazenda, inclusive possuindo uma porteira aberta, que prosseguia por trás do barranco da beira da estrada. Da porteira, dava para ver uma placa verde com o escrito “Serra Verde”, uma descida forte e, lá embaixo, uma cidadezinha espalhada pelos morros, rodeando um vale.
_É, _comentou. _Não podemos reclamar da sorte.
*III – Um amigo em apuros*
Sem escolha, deixaram o “seu” Domingos com o carro e marcharam para as casinhas escondidas pelo barranco. Apesar de ser uma segunda-feira, não viram viv’alma. Caminhando um pouco, acabaram achando um posto de gasolina, onde o frentista descansava.
_Seu moço _Sandro perguntou _onde a gente acha um mecânico? O nosso carro morreu na estrada e não pega.
_Eu sou um mecânico...
_O senhor pode vir com a gente então?
O homem lançou um olhar ao posto, a seu assistente, ao pouco movimento das ruas e concordou. Voltaram morro acima. No fim, Alberto e Juliana já estavam se arrastando, mas Sandro (algumas horas, Juliana achava que ele era de ferro) nem suava direito.
O mecânico inspecionou o carro todo. Olhou os eixos, os pneus, o motor, tentou ligar o carro várias vezes e nada!
_Que esquisito! Vou voltar no posto e pegar mais umas ferramentas.
Os jovens não estavam dispostos a descer aquele aclive forte de novo. Sandro seguiu o homem até a porteira e, ao alcançá-la, segurou o ombro dele e perguntou:
_Moço, o que é aquele monte de gente em frente àquela casa? Alguma festa religiosa? Já começou o feriado aqui?
O mecânico abanou a cabeça e respondeu, com sombria satisfação:
_Não, aquela é a casa do Eduardo. Ele envenenou uma velhinha para ficar com a herança praquele projeto dele. O povo está lá porque acham que ele não tá fazendo retiro coisa nenhuma, que tá escondido na casa. Bobagem. Pra mim, ele já tá longe!
Dessa vez, Sandro levantou as duas sobrancelhas.
_Ele? Envenenando a própria avó?
_Não, a avó não. Uma japonesa... Dona... Dona... Ah, um nome esquisito aí.
Sandro olhou para o monte de gente. Uma expressão de decisão inabalável, conhecida de seus amigos, surgiu em seu rosto. Chamou Alberto e Juliana.
_Esse carro não vai ficar pronto tão cedo. Vamos procurar um lugar de onde possamos ligar para meu padrinho e avisar que vamos nos atrasar. Enquanto isso, em aproveito e faço uma visitinha a um velho amigo.
Os dois ensaiaram um protesto, mas os olhos de Sandro brilharam perigosamente. Resignados, começaram a longa descida em direção a Serra Verde.
*IV – A trincheira*
Enquanto desciam para a cidade, Sandro explicou para os amigos a situação e o seu interesse naquilo tudo.
_...Há uns oito anos, uma excursão escolar a Ouro Preto almoçou no Ramo de Oliveira. Um menininho sentou sozinho na mesa, estava lendo um livro e tinha um ar meio enfezado. Puxei conversa com ele, ele nem ligou muito pra mim, mas continuei insistindo. Conversamos um pouco sobre livros, aí ele se animou e ficamos amigos. Trocamos os endereços e nos correspondemos até hoje. Ele se chamava Eduardo. Achei sugestiva a menção a “Eduardo” e “projeto” que o homem fez. Ele tem um projeto para o prêmio jovem cientista e também tem o hábito de chamar de “projeto” um programa de aulas particulares para alunos carentes. Insinuei sobre a avó dele e o homem nem se espantou de eu a ter mencionado. Acho que seria interessante se déssemos uma olhada no que está acontecendo.
_E qual o seu plano de ação? _perguntou Betinho, com ar de troça.
_Vamos até a casa dele, onde está aquela multidão. Lá, podemos nos informar dos detalhes.
Chegaram sem maiores dificuldades a um local onde um aglomerado de gente gritava “Mostra a cara, assassino!”, “Enfrenta seu crime feito homem!” e outras coisas no gênero. Algumas pedras voavam esporadicamente, mas sem risco às janelas, pois estavam com as vidraças abertas e vedadas por grossos cobertores. Sandro fez um sinal para que o seguissem e pulou discretamente o muro da casa, deu a volta e bateu na porta dos fundos.
Um rapaz loiro, olhos azuis e pose de bonitão abriu a porta em expectativa, mas parou com um olhar de suspeita ao ver aqueles desconhecidos.
_Posso ajudar?
Sandro sorriu e disse, sem se alterar:
_Você é o Daniel, certo? Sou um amigo do seu irmão. Ficamos sabendo que ele está com um probleminha e achamos que talvez possamos ajudar em alguma coisa. Ele está?
Aparentemente, ver amigos do irmão invadindo o quintal e batendo à porta dos fundos era algo que Daniel considerava perfeitamente normal. Olhou com a máxima atenção para o rosto dos três e perguntou, com naturalidade:
_Seu nome é... Sandro, não é? O maninho fala muito de você. Ele não está aqui no momento. Estamos em uma situação complicada, você viu aquele monte de loucos na porta. Não importa o quanto digamos que o Eduardo não está aqui, que está fazendo seu retiro de Páscoa, aqueles brutos não arredam o pé.
Deu passagem aos amigos e os conduziu, através da cozinha, para a sala de visitas, enquanto conversava.
_Eu bem que tentei resolver essa situação, imaginar como podemos inocentá-lo, mas não dá... Talvez você possa ajudar, precisamos de cabeças a mais para pensar nisso.
Na sala, estavam uma moça ruiva de ar esperto, uma mocinha com jeito de menina e uma senhora idosa, mas desempenada. Todos estavam com um ar de entrincheirados e olharam surpresos para os recém-chegados.
_Alarme falso _disse Daniel. _Ele nem sequer leu as mensagens. Esses são uns amigos dele, o Sandro e...
Ao tentar apresentar os companheiros de Sandro é que se deu conta de que não perguntara os nomes deles. Sandro livrou-o do embaraço com sua animação habitual.
_Sou o Sandro, esse é o Alberto e essa é a Juliana. Eu me correspondo com o Eduardo há muitos anos. Estávamos indo para o Rio, quando nosso carro morreu na estrada e ficamos sabendo que um certo Eduardo de Serra Verde estava sendo acusado de assassinato. Não sei bem o que podemos fazer, mas se houver algo em que pudermos ajudar... Qualquer coisa... Estamos à disposição.
_A única coisa que precisamos é a verdade para esfregar na cara desses sem-serviço _resmungou a ruiva. _Meu nome é Carina. Prazer.
_Essa é a Maria Santa, a namorada do meu irmão _mostrou Daniel. _E Essa jovenzinha aí no sofá é nossa avó.
_Cecília _esclareceu a senhora. _E sem Dona antes, por favor.
Depois de uma rápida troca de amabilidades, Sandro retornou ao assunto em questão.
_Antes de mais nada, o que aconteceu, exatamente? Só sei que foi um caso de envenenamento, quem morreu, como, quando e onde?