Picadinho de carne (receita tradicional para se lavar a alma)
Desde ontem não precisei tomar mais os meus remédios, Marcelo. Minha cabeça não dói, não estou sentindo vertigem nem aquele monte de borboletas na barriga. A ânsia não deu mais. Nem aquele remédio para o fígado eu tomei. E ainda comi dois pedaços da pizza que você tinha pedido. Com orégano. Eu te implorava para pedir a pizza sem orégano. Você sabia que me fazia mal. Mas e daí, não é mesmo, Marcelo? Você não se importava comigo. Acho que nunca se importou. Principalmente com a minha saúde. Mas agora eu estou bem.
Atirar desestressa. O som e o tranco da arma dão um upgrade na gente.
PICADINHO DE CARNE
(Receita tradicional para se lavar a alma)
Até agora não apareceu ninguém aqui. Acho que não ouviram nada. Foram as janelas à prova de som. As que você colocou para que os vizinhos não ouvissem você me xingando, me ameaçando, me batendo. Nem quando eu era puta recebi tanto insulto e tapa na cara quanto eu recebi de você, Marcelo. Mas agora acabou tudo. Não vou chorar com os seus insultos em japonês quando eu tentava tirar a cutícula da unha do seu dedinho do pé, e você, reclamava que eu tinha arrancado a pele inteira. Do jeito que fazia parecia que eu tinha tirado o seu dedo. Vou fazer melhor, agora que você não pode me humilhar mais. Vou arrancar o seu pé fora, Marcelo.
Sou muito boa com uma faca.
Nem cheguei a te mostrar o que eu trouxe lá do Paraná. Você com certeza nem iria querer ver, não é Marcelo? Um CD do Glenn Miller. Minha mãe adora. Ela ficava assoviando aquela música bonita dele enquanto matava piolho da minha cabeça. Ela também gostava de ficar cantarolando quando fatiava a carne para a gente comer. Eu acha lindo a minha mãe metendo a faca na carne e a boca tentando fazer voz de trompete. Vou colocar o cd para tocar. Para caso a bala não tenha feito o serviço dela e você acorde a nossa filha aos berros. Se você acordá-la eu a pego no colo, digo que esta tocando Moonlight Serenade, acompanho a música assoviando até ela dormir de novo e depois rasgo o seu pescoço do mesmo jeito que a minha mãe fazia com a carne, Marcelo.
Ingredientes
• 2 colheres (sopa) de óleo
• meio quilo de acém cortado em cubos
• 2 malas grandes
• 2 colheres (sopa) de extrato de tomate
• 2 cubos de caldo de picanha
• 2 xícaras (chá) de água fervente
• 3 batatas médias cortadas em cubos
• Sacos de lixo
• 1 cenoura média cortada em cubos
• 2 colheres (sopa) de salsinha picada
Sei fazer direitinho. Não vai esguichar muito sangue.
Ficar olhando para você morto é como te ver dormindo. Quantas vezes você dormia assim, tranqüilo, quando ainda me pagava para sair, lembra Marcelo? Me pegava num flat, levava para jantar, às vezes até uma boate rolava, variávamos o motel, você tirava a minha roupa, beijava os meus pés, deitava na cama e dormia como uma criança feliz. Como agora você está fazendo. Não sei se feliz. Embora eu esteja feliz.
Vou ter que afiar a faca, mas dá para terminar o serviço.
Você tem olhos ofídicos, Marcelo. Agora que eu reparei enquanto serro a sua coluna. Quando os vi pela primeira vez no chat achei que era um olhar carinhoso e delicado. Um olhar de menino pidão, que precisa de alguém ao seu lado. Só mais tarde eu percebi que o seu olhar era peçonhento, venenoso, maldoso. Você gostava de me ver mal e doente. Nunca vi seus olhos brilharem quando me chamava de amor, me trazia um presente, pedia alguma coisa. Nem quando eu era sua puta, a sua mulher ideal, muito menos depois que eu virei sua esposa, o seu fardo necessário. Seus olhos só brilhavam quando me insultavam, me rebaixavam a uma barata de esgoto, me perguntavam com quantos eu tinha saído, quantos eu tinha chupado naquele dia, se doía dar a bunda para cara de pau grande... Aí sim esses olhos exprimidos se arregalavam e mostravam quem estava por detrás da máscara de bom marido, bom pai e bom moço: Um tarado, nojento e pervertido, com um caráter do tamanho do próprio pau.
Modo de preparo
Em uma panela de pressão, aqueça o óleo em fogo médio e refogue a carne até perder a cor avermelhada. Junte o extrato de tomate e aqueça por dois minutos. Atire na altura da cabeça, de preferência na testa. Dissolva os cubos de caldo de picanha na água e coloque na panela. Tampe-a e deixe cozinhar por trinta minutos, contados a partir do início da pressão. Use uma faca afiada ou uma machadinha. Apague o fogo e aguarde sair todo o vapor.
Agora que posso, vou fazer uma tatuagem em você. Acho lindo pessoas que tatuam o nome de quem amam no corpo e escrevem embaixo amor eterno. Eu tinha pedido uma para você, lembra Marcelo? Nossa, como você me xingou naquele dia, de vadia, maloqueira, se eu era cadeeira para marcar a minha pele. Por isso eu nunca te mostrei a que eu fiz. Aqui, atrás da nuca, o lugar que você nunca pensou em me beijar e me fazer carinhos, embora eu sempre te dissesse que adorava. Tatuei o seu nome: Marcelo, bem pequenininho. Só não mandei escrever amor eterno porque ficaria grande e, num descuido, você podia ver. De repente, você poderia querer cortar o meu pescoço.
Vou usar a ponta da faca. Não vai doer, Marcelo. Vou escrever um nome que tenho certeza que você vai adorar. No peito. No peito acho melhor. Do lado do coração. Bem aqui. O nome da sua amante. O nome daquela desgraçada que você saia todas as quartas mentindo para mim que tinha reunião no escritório e que levou no meu carro para saírem quando eu viajei para o Paraná. Vou fazer com letras grandes: N-A-T-A-L-Í-A. Viu como ficou bom? Vou fazer um coração envolta também, Marcelo. Só não vou escrever amor eterno porque não sei se vocês vão se encontrar na outra vida. Nem sei se encontrarão você por aqui ainda.
Fato consumado, querido.
Você não vai ficar bonitinho e limpinho para ser velado em um caixão, Marcelo. Pensei em te mandar pro Recife. Para aquela praia que fomos depois da nossa lua-de- mel. Tenho certeza que foi lá que eu engravidei. Queria te enterrar naquele lugar. Uma coisa simbólica. Enterraria você e todas as lembranças boas e ruins que tivemos. Ou pelo menos acho que tivemos. Não foi ruim viver com você, Marcelo. Graças a você tenho a minha filha. Você me deu muitas coisas, me ensinou muito. Mas não deixava eu te dar de volta o meu carinho e o meu amor, e todas as vezes em que eu procurava fazer isso eu era atacada, maltratada, traída por você. Queria te enterrar naquela praia. Junto com os meus sonhos de uma vida a dois para o resto da vida e todo o resto da minha vida sem mais nenhum sonho sozinha. Mas acho que não. Vou te despachar para Cotia mesmo. Não era lá que você fazia escotismo com seus amiguinhos riquinhos, Marcelo? Quem sabe o grupo de lobinhos tenha sorte e te encontre em belos e reluzentes trajes azul-bebê que eu vou espalhar por lá.
Sacos pretos são para luto. Azul é uma cor mais alegre.
Abra a panela e adicione as batatas, a cenoura e a salsinha. Procure um lugar deserto e tranquilo para deixar os sacos.
Cozinhe por mais 10 minutos com a panela destampada ou até os legumes ficarem macios.
As malas já estão prontas, Marcelo. E vendo você assim, picado e ensacado, acho que também está pronto para a sua última viagem. A minha louca viagem vai começar quando a Polícia descobrir tudo. É lógico que eles vão descobrir. Não me importo com isso. Mentirei no início por necessidade condicionada: Jamais assumir de cara o que você fez. As ruas e os livros de Direito me ensinaram. Mas passado o flagrante assumirei tudo numa boa. Vou ser humilhada na televisão, escorraçada pela sociedade, posso até ser violentada na cadeia por aquelas sapatões que vivem lá, ficar sem ver a minha filha por dez, quinze, vinte anos. Isso não me preocupa. Não me importo com isso. E sabe por que, Marcelo? Nunca mais vou precisar tomar os meus remédios.
O mal que me fazia mal eu cortei pela raiz, juntas e articulações.
Sirva a seguir. E negue tudo.
Não precisa me mandar de volta para o lixo, Marcelo. Eu sei o caminho. Só que vou levar você junto.
Um dia eu volto de lá. Inteira.
Você, só aos pedaços, meu querido, Marcelo.