Dulce
Ela esticava as pernas grossas e bem torneadas e dizia: “Dá uma olhada aqui, veja como minhas coxas são fortes e bonitas” aí se virava e mostrava sua bunda: “Olha só, pega aqui, sinta como meu bumbum é durinho”. E era mesmo. Dulce, inacreditavelmente, tinha quase sessenta anos e possuía um corpo exuberante e muito mais firme e sensual do que a maioria das meninas da minha idade. Trinta anos atrás isso era difícil de ver. “Sabe o que é isso?”, ela perguntava, e ela mesma respondia: “Genética e escadas, subir e descer escadas, e umas horinhas na academia, claro”. E gargalhava. Se estivesse viva hoje, estaria com oitenta e oito anos. Eu poderia ter namorado ela, quem sabe me casado com ela, mas sempre fui preconceituoso. Nossos encontros eram clandestinos, praticamente ninguém sabia que saíamos. Eu tinha vinte e dois anos e ela cinquenta e oito. Tenho saudades da Dulce. Doce Dulce.
Naquela época eu só malhava, enchia a cara e comia senhoras carentes montadas na grana. Acordava por volta do meio-dia, tomava uma vitamina caprichada com banana, leite, farinha lacta, mel e maçã, tudo misturado com suplementos alimentares e me mandava para a academia na garagem do “Punga”. Depois era só puxar ferro. Entre quatro e cinco horas eu almoçava. Arroz, feijão, clara de três ou quatro ovos cozidos e peito de frango, muito peito de frango. Às vezes trocava o arroz por uma massa, mas nunca dispensava o feijão. Voltava pra academia e malhava até as sete. Eu estava muito grande neste tempo, os braços pareciam pilastras de concreto, mas, o que chamava mesmo a atenção da mulherada era o peitoral, uma verdadeira muralha. Eu fazia várias séries de supino. Na sexta-feira eu malhava numa academia de bacana, que eu frequentava sem pagar, a dona era uma das minhas amiguinhas íntimas, e foi lá que conheci a Dulce.
O “Punga” era um cara grande também, vinte três anos, branco e bem apessoado, com jeito de bom moço, contudo, era o diabo em pessoa. Bandido mesmo. Puxou três anos de cadeia por assalto a mão armada, e rezava a lenda que já tinha despachado algumas boas almas para o céu, no entanto, nunca foi provado, ele nunca confirmou, também não negou, ele apenas sorria quando perguntavam isso. Cumpriu pena só pelo 157 mesmo. Eu não era bandido, e nunca tinha segurado um revólver de verdade nas mãos. Tinha furtado chocolate, quando criança, nas Lojas Brasileiras, mas isso não me credenciava como malfeitor. Eu apenas aproveitava a estampa com que Deus me presenteou para arrancar dinheiro das coroas, fazia isso sem usar qualquer tipo de violência. O “Punga” não, ele era barra pesada, perigoso e cruel, e estava sempre procurando um bom lugar para roubar. Mas era meu melhor amigo, crescemos juntos jogando bola no calçamento de nossa rua. Nossas mães eram amigas e trabalharam por muitos anos na mesma casa de família, minha mãe era cozinheira e a dele empregada doméstica.
Foi com a patroa de minha mãe que tive minha primeira relação sexual, aos catorze anos. Foi ela, dona Dolores, que me iniciou nos prazeres da carne. Depois de usufruir por longo tempo de meus encantos púberes, começou a me apresentar a suas amigas ricas e sedentas de carinho. Desta forma iniciei minha suada e cansativa carreira de “prostituto sem preço estabelecido”. Elas davam o valor que queriam, eu nunca pedia, todavia, eu sempre conseguia uma grana, principalmente quando eu fazia cara de bezerro desmamado. A minha cara de bezerro desmamado era irresistível.
Num certo dia em que eu exercitava meus bíceps num tiro curto de três séries de oito repetições de Rosca alternada, Rosca Scott e Rosca Concentrada e por fim um dropset, quando diminuía na metade o peso e fazia uma sequência com cada braço até não aguentar mais, “Punga” aproximou-se e falou:
- Cara, quem era aquela coroa gostosinha que estava com você lá na feirinha, ontem à noite.
- É a Dulce. Respondi, sem tirar os olhos dos halteres.
- Porra, ela é rica, não é?
- Quem lhe disse isso? Perguntei, ainda sem dar muito interesse ao papo.
- É que eu segui vocês enquanto se dirigiam ao carro dela. Ele falou se papocando de rir. Parei o exercício na hora e olhei pra ele sem acreditar.
- Porra, véi, tá me seguindo agora, que é isso meu irmão? Que porra é essa? Falei desconfiado. Ele continuou rindo e disse:
- Só curiosidade, malandro, se preocupa não. É que ela me chamou a atenção. Bonitona a véia, hein? Quantos anos ela tem?
- Cara você não vai acreditar. Ela tem cinquenta e oito anos.
- Puta que pariu! É muito mais velha que sua mãe, caralho! Ela deve dormir numa banheira de formol, né não? E voltou a explodir de rir. Eu sinceramente não gostei. Eu tinha um sentimento por Dulce, não queria que zombassem dela.
- Não é nada disso, rapá, é que ela se cuida, é só isso. E como você sabe que ela é rica?
- Porra, bicho, quem tem um carrão daqueles não pode ser pé de chinelo como a gente. Ele disse. E tinha razão. Dulce dirigia um Ford Del Rey série ouro zerinho; ano 1983. Dizem que foi o carro mais caro do Brasil naqueles idos tempos. – E segui vocês até o casarão dela também. Emendou e, mais uma vez, estourou sua poderosa gaitada. Fiquei puto, porém, não disse nada. Ele se retirou rindo muito, ele sempre fazia isso; ria, ria generosamente, estava sempre rindo, ria de tudo, era isso que iludia as pessoas sobre sua personalidade, elas achavam que ele era um cara alegre e inofensivo, mas, eu conhecia muito bem a peça, e não me enganava com sua risadaria.
Ele continuou perguntando por Dulce durante toda a semana, e aquilo começou a me incomodar. Eu achava que ele pretendia tirar a coroa de mim. E isso eu não iria admitir. A Dulce era minha, só minha. No sábado, quando me dirigia para um pé sujo da esquina para almoçar, ele me acompanhou. Sentamos a mesa e ele abriu o jogo. Contou o que ele planejava. E eu aceitei; infelizmente.
- Então, Pedro, (Pedro sou eu, não me apresentei antes, mas agora os senhores leitores já sabem. Pedro, Prazer), é o seguinte, eu sei muito bem como você ganha dinheiro, e não me importo nada com isso, da minha boca ninguém saberá. Pode deixar, seu segredo ficará bem guardado comigo, a madrinha nunca saberá que tu não trabalha e que descola grana traçando umas véias. Por isso não se preocupe. E também não quero nada com a coroa, brother. O que eu quero mesmo é roubar a casa dela, entende? Maluco, ela deve ter um monte de grana e joias guardadas ali. É isso que eu quero, e você vai me ajudar. Dividimos meio a meio o lucro, como dizem os gringos, vai ser “fifty-fifty”. O que acha?
- Tá me ameaçando, “Punga”? Porra véi. Tá de sacanagem?
- Te ameaçando como, meu “cumpadi”? Tá louco? Eu tô sendo camarada contigo, meu irmão. Tô de dando uma oportunidade de ganhar uma grana boa, e não os trocados que você recebe. E com você na fita a parada vai ser mais fácil, entende?
- Caralho Punga, você quer que eu roube a Dulce, porra. Eu saio com a mulher a um tempão, ela é gente boa e me trata bem, bicho. Não vou me sujar com ela não. Esquece isso, brother.
- Quem disse que você precisa se sujar com ela, rapá? Ela não vai saber que foi você que a roubou. A gente entra na casa dela num dia que ela estiver viajando. Você não falou que ela iria viajar no fim deste mês?
- É. Ela vai sim. Vai para os Estados Unidos visitar uma prima, todo ano ela viaja pros “esteites”.
- Então. Ela não confia em você?
- Acho que sim. Mas, nunca que deixaria a chave da casa comigo. Né meu irmão? E arrombar a casa eu não vou.
- Não vamos precisar arrombar. A chave não será problema, a gente faz uma cópia "facinho".
- Como? Perguntei interessado. Já que Dulce não estaria em casa e não correria perigo, até que a ideia não era má. Ela era muito rica, rapidinho reporia o que a gente pegasse. E eu estava precisando comprar uns panos novos, meu colchão tava uma merda, eu acordava todo travado, com uma puta dor nas costas e também tava precisando fazer um tratamento dentário, e dentista era caro pra caralho, com a grana que eu ganhava ficava difícil fazer um bom tratamento. Comecei a ver o plano com bons olhos.
- Num dia em que você for até a casa dela, você me dá um toque. Eu vou até lá. Você dá um jeito de não trancar a porta. Quando vocês entrarem, eu dou um tempinho no carro, depois vou até a casa, abro a porta e pego a chave. Tem um chaveiro a duas esquinas da casa dela, eu já verifiquei. Quando você escutar três buzinadas é que já tá tudo resolvido. Entendeu?
- Entendi. Ele continuou explanando suas ideias durante a refeição, e quando nós terminamos, eu estava decidido a roubar a casa de Dulce.
Dois dias antes do assalto o lance da chave foi feito. Estávamos malhando, eu e Dulce, e depois fomos para casa dela. Ela me pegou dentro da garagem de um estacionamento no subsolo de um hipermercado que ficava a dois quarteirões da academia. Na maior discrição, como sempre. Chegamos a sua casa mais ou menos quatro da tarde. Eu avisei o “Punga” do orelhão do mercado, liguei para o telefone da casa dele. Naquela época não existia celular, e a gente conseguia encontrar todo mundo fazendo só uma ligação. Hoje em dia, mesmo com tanta tecnologia por aí, tem vezes que temos que ligar mais de dez vezes para completar uma chamada, e em muitas ocasiões não conseguimos entrar em contato com quem queremos. Vai entender? Dei uma enrolada dentro da garagem, dando uns amassos nela, para dar um tempinho para o “Punga”. Menos de meia-hora depois de ter entrado com Dulce, ouvi três buzinadas. Não percebi nenhum movimento ou barulho, e olha que fiquei de butuca ligadíssima. O cara era bom mesmo. Profissional.
A noite, neste mesmo dia, ele me entregou a cópia da chave.
No domingo acordei ansioso e com dor de barriga. Toda vez que fico nervoso eu tenho uma diarreia daquelas. Isso é o que chamamos de um verdadeiro cagaço. Eu estava me borrando de medo, literalmente.
Combinamos de nos encontrarmos às três da manhã em frente à casa de Dulce. Iríamos separados, para não levantar suspeitas.
Fui para um salão de bilhar e fiquei até às duas da manhã, bebi várias doses de conhaque e quando saí da sinuca eu estava calibrado. Peguei um taxi e desci a quatro quadras da casa, fiz o restante do percurso caminhando.
Avistei o fusca de “Punga” parado na equina do casarão, ele estava vazio. Nenhum sinal do meu amigo. Eram dez para as três da manhã. Comecei a me preocupar. “O filho da puta não me esperou, ou foi em algum outro lugar?”, perguntei para mim mesmo. Tentei relaxar e aguardei sentado no meio-fio do lado do carro. A madrugada estava calma e a rua completamente vazia. Meia-hora depois resolvi verificar o que estava acontecendo. Nós tínhamos combinado de entrarmos juntos e sairmos juntos. Aquilo não estava no script. “Esse filho da puta tá aprontando alguma”; pensei.
Dulce morava no centro da cidade, numa rua muito movimentada durante o dia, sobretudo durante a semana, e praticamente deserta nas noites de fim de semana. A residência era um sobrado antigo, de arquitetura oitocentista, sem nenhuma segurança; o muro era baixo, não tinha grades nas janelas, muito menos câmeras de vídeo ou cercas elétricas. A casa em si ficava mais ao fundo, depois de um enorme jardim de árvores frutíferas. Pulei o muro sem nenhuma dificuldade, e segui até a porta da frente. Calcei as luvas que “Punga” havia me dado junto com uma arma calibre 38 de cano curto, que eu escondi dentro da calça, na parte da frente, coberto pela camisa que eu usava, como eu via nos filmes no cinema. Estava me sentindo num longa-metragem de ação e suspense, mas, eu estava enganado, aquilo era a vida real, dura e sem finais felizes. Descobri isso da pior forma possível.
O silêncio em torno da casa era absoluto. Andei até uma janela e consegui enxergar uma luminosidade vinda do andar superior, onde ficavam os quartos. Dirigi-me a porta principal, encaixei a chave e girei. Ela não estava trancada. “Isso não é um bom sinal”; resmunguei. Entrei na casa cautelosamente, quase em câmera lenta. Meu coração estrondava, e o álcool se dissipou rapidamente com a adrenalina, a minha boca ficou com gosto metálico, como se estivesse cheia de pregos enferrujados. Fiquei completamente sóbrio e alerta.
A sala estava escura. Parei. Senti minhas pupilas dilatando, tentando captar o máximo de luminosidade. Quando meus olhos se adaptaram ao ambiente caminhei devagar e com cuidado, tentando não esbarrar em nada. Fui em direção à luz que vinha do andar de cima. Cheguei à escada que subia em caracol. Subi lentamente, sem fazer qualquer ruído. Tirei o revólver e o segurei com minha mão suada. Os degraus terminavam num longo corredor. O último quarto à direita, o quarto de Dulce, estava com a luz acesa.
Quase caí pra traz, com o susto que tomei, quando “Punga” saiu de lá apressadamente, carregando um grande saco nas costas. Quando ele me viu, abriu seu sorriso de costume.
- Caralho, Pedro, quer me matar de susto?
- Porra, “Punga”, você entrou antes de mim, bicho. Por que fez isso? Sussurrei.
- Você chegou atrasado cara, eu não podia esperar.
- Como assim? Cheguei dez minutos antes do acertado.
- Então meu relógio estava adiantado, ou o seu atrasado. Isso não tem importância, vamos nessa, tá tudo aqui, rapá, tudo em cima. A coroa é cheia da grana mesmo, meu véi, a gente se deu bem. Vamos embora. Ele tentava transparecer tranquilidade, entretanto, sua voz estava carregada e sua respiração ofegante. Enxerguei um interruptor na parede ao meu lado e apertei. Fiquei espantado com o que vi. As mãos e rosto dele estavam salpicados de sangue.
- Caralho, que porra é essa? O que aconteceu?
- Não foi nada, cara, vamos sair daqui agora.
- Não, não embora, e este sangue?
- Aconteceu um probleminha, mas já foi resolvido. Vamos embora, agora! Ele falou com certa irritação desta vez.
- Que problema, porra? Ele não respondeu, só ficou me olhando com seu sorriso cínico nos lábios, que explodiu numa gargalhada insana.
Entendi na hora o que havia ocorrido. Passei por ele e fui até o quarto. Dulce estava nua, deitada em sua cama, morta. Fiquei paralisado. Não era para acontecer aquilo, não era para Dulce morrer, não era para ela estar em casa. Ela não iria viajar? Um redemoinho de perguntas sem respostas invadiu minha cabeça, fiquei tonto e me segurei na porta do quarto para não cair. Punga voltou e me arrastou dali. Foi me empurrando, eu parecia um boneco, não tinha reação.
- Vamos embora, vamos, vamos, eu explico tudo no carro, vamos embora, irmão. Rápido, anda.
Saímos da casa e fomos para o carro dele. No caminho de volta ele me contou o que aconteceu. Contou tudo rindo, gargalhando. Para ele tudo não passou de diversão. Ele chegou mais cedo e resolveu entrar sozinho, ele tinha feito duas cópias da chave. Queria que quando eu chegasse tudo já estivesse resolvido. Decidiu isso de última hora, não foi nada premeditado. Lembrou que eu era inexperiente e ficou com medo que eu botasse tudo a perder. Quando chegou ao quarto, e começou a revirar as gavetas e o guarda-roupa, Dulce saiu do banheiro, nua em pelo. “Mas foi melhor”; ele disse rindo. “Com a coroa lá foi mais fácil de achar o cofre e conseguimos mais grana, Pedro. Muita grana, bicho, você não vai acreditar, acho que a gente tá rico, brother”; ele gargalhava. “Depois que peguei tudo de valor que a velha guardava, não resisti a tentação. A coroa é gostosa mesmo, cara, que pernas, que bunda. Tentei ser carinhoso, mas ela quis partir para a violência, então, tive que ser duro. Bem, depois que me satisfiz, eu tinha que dar um fim nela, né cara? Você entende? Ela viu meu rosto, eu não podia deixar ela viva.”.
Eu não entendia nada. Estava em choque. Eu só escutava as risadas dele e via Dulce estirada na cama coberta de sangue. O carro parou. Eu não sabia onde eu estava. O dia estava amanhecendo. Olhei para “Punga”, ele sorriu. Eu ainda estava com o revólver na mão, com o dedo no gatilho. Ele acendeu um cigarro e deu uma longa tragada, soltou a fumaça, sorriu e falou:
- Cara, tua coroa era gostosa mesmo.
Foi a última vez que vi o “Punga”, na verdade, depois daquele dia, ninguém mais o viu; ninguém.
Eu fiquei um bom tempo pianinho, escondido, sem botar a cara fora da toca. Quando a poeira baixou eu mudei de cidade, comprei um apartamento, um carro, voltei a estudar, me formei e virei escritor. Tem dia que me lembro da Dulce. Hoje é um destes dias. Lembro-me de suas pernas grossas e de sua bunda firme. Acho que eu amava a Dulce. Doce Dulce