Eu caso com Aida!

Gaúcho gosta de frio, se vangloria de suas façanhas e de ser um sobrevivente nestas paragens do sul e, aquela noite estava cerrada de chuva, frio e vento. Ainda cedo a maioria das pessoas na Vila Sem Nome já haviam se recolhido aos seus lares. O dono do boteco avisou que fecharia mais cedo e que bebessem rápido. Estava muito frio e iria em seguida para casa. Os homens pagaram a cachaça, abanaram para os companheiros de bar. Eram vizinhos, parentes, amigos e até alguns desafetos, mas no bar do Fogo havia harmonia e ninguém brigava. Contribuía para acalmar os ânimos entre os brigões o fato de a Polícia ter aberto uma Delegacia ali a cerca de um quilômetro, quando muito. E ninguém queria passar uma noite no xadrez com um frio daqueles.

O bar do Fogo era uma espécie de armazém de um lado e bar no outro, composto apenas de um balcão comprido, feito de tábuas, duas mesas próximas da parede e algumas cadeiras velhas. No final da tarde o bar estava sempre lotado. Eram bêbados contumazes, sempre usando uma faca na cintura, conversando muito enquanto bebiam canha pura, alguns tomavam cerveja e tinha alguns que até tomavam guaraná. Às alterações de voz Fogo erguia o olhar atento, porque se fosse briga mandava os valentes para fora, sem dó e, se preciso com o reforço do porrete que ele chamava de “inquebrável” e até já havia gritado algumas vezes:

-Fora daqui, se não te mostro o “inquebrável”.

Ninguém sabia o seu nome. Apresentou-se ao chegar à vila como Fogo e assim ficou sendo chamado. Era prestativo, ajudava quem precisasse e os mais pobres não passavam fome, pois sempre podiam pegar alguma coisa fiado nas horas mais difíceis. Fogo também tinha um Jipe com o qual transportava mercadorias e pessoas que lhe pedissem.

Naquele final de tarde, enquanto os fregueses saíam conversando alto, Tenório ficou na beirada do balcão, puxou uns trocados e, enquanto pagava a conta disse ao bodegueiro, falando baixinho:

-A filha do Manoel da Carroça, a Aida, está desaparecida desde ontem à noite.

-Pois eu já ouvi alguma conversa, mas ninguém me disse nada até agora. Respondeu Fogo.

-Acho que fugiu com um namorado, tal de Valdomiro que é peão na Estância do Verde. Dizem que é até meio maula, anda armado e é ligeiro na faca.

Fogo observou falando baixo:

-Mas não é que o vi dias desses, bem a cavalo, montava um pingo baio. Vi assim de relance, mas acho que não é boa coisa mesmo.

-Mas bah, se a polícia lhe pega ajeita ele de vez.

-Qualquer coisa me avise seu Fogo. Disse Tenório ao sair.

Fogo fechou a porta e foi para sua casa. Jantou, ouviu um pouco de rádio enquanto se aquecia a beira do fogão e, lá pelas dez da noite foi dormir enrolado num pala de lã crua, que atacava qualquer vento frio, um belíssimo trabalho de sua mãe, que vivia lá para as bandas de São Gabriel. Estava cansado e dormiu como uma pedra. Acordou sobressaltado com batidas fortes na porta do bar. Esfregou os olhos. Ouviu de novo. Parecia que batiam com uma pedra. Levantou-se sonolento ainda, pegou o “inquebrável” e foi na direção do bar.

-Quem é? Perguntou.

-É muito cedo para vender, e o pão só chega depois das sete. Afirmou.

De fora veio a resposta:

-Aqui é o Manoel da Carroça, seu Fogo, preciso de uma carona até a Delegacia.

Somente assim, reconhecida a voz do vizinho, Fogo abriu a porta e recebeu uma lufada de vento frio no rosto.

-O que houve seu Manoel, são cinco horas agora.

-Mas há urgência seu Fogo. A minha filha, Aida, fugiu de casa com o namorado, o tal de Valdomiro. Não sabia onde estavam até que o Joaquim, vizinho do lado me chamou a essas horas e disse-me que eles estão alojados no galpão dos fundos da lenheira, que está abandonado.

-Mas então vamos lá Seu Manoel. Disse prontamente Fogo. Entrou novamente em casa, pegou o pala, calçou as botinas, entrou no Jipe e deu marcha à ré, Manoel da Carroça embarcou e seguiram para a Delegacia. Tocaram uma campainha de som estridente e apareceu um Inspetor sonolento, um negro franzino com cara de poucos amigos. Reconheceu Manoel e perguntou:

-O que foi seu Manoel?

-Minha filha, que foi “roubada” ontem está com o Valdomiro no galpão da lenheira, precisamos ir lá pegá-la.

-Mas não pode ser mais tarde seu Manoel, ainda não clareou o dia? Disse o Inspetor negro, ao que Manoel rebateu:

-Se deixarmos para mais tarde esse taura foge com a minha filha e nunca o pegaremos.

Convencido da necessidade, o Inspetor chamou o seu colega, um homem gordinho e retaco. Os dois verificaram as armas, embarcaram na Rural e foram na direção do galpão da lenheira, distava dali uns três quilômetros. Fogo e Manoel seguiam atrás. Poucos metros antes do galpão pararam a viatura e seguiram a pé. Fogo e Manoel fizeram o mesmo. Silenciosos como dois gatos os policiais foram entrando. Bem no fundo do galpão tapados com um poncho carnal vermelho, estava o casal. Pelo visto dormiam a sono solto.

-É a polícia gritaram os dois policiais! E ao mesmo tempo, enquanto dirigiam os focos das lanternas sobre o casal.

-Levanta bem devagar Valdomiro, se te bobear leva chumbo.

Valdomiro tinha fama de valente e não desmentia. A adaga estava ao alcance da mão e ele não resistiu ao impulso de tocá-la. Roçou a mão no cabo, mas ouviu o engatilhar do revólver e a voz carregada de tensão:

-Levanta devagar já disse e sai do ninho piá, rápido, vira de costas!

Vendo que não tinha chance alguma, Valdomiro levantou as mãos, virou-se rápido, foi algemado. Colocado na Rural foi levado para a Delegacia. Manoel da Carroça pegou uma coberta enrolou em sua filha e a conduziu para o Jipe onde estava Fogo. O vento castigava. Já eram seis e meia da manhã. Manoel levou a filha para casa e ficou compromissado de voltar as nove horas. Valdomiro foi colocado numa cela fria onde estavam mais dois elementos desconhecidos, tiritavam de frio.

À hora marcada Seu Manoel chegou. O Delegado mandou que trouxessem Valdomiro e foi afirmando:

-São duas oportunidades, seu valentão de merda: casa com a moça agora ou vai direto pra o presídio agora mesmo e ainda leva uma surra para não esquecer! Disse o Delegado em voz rude, enquanto estalava os dedos.

Manoel então resolveu falar e afirmou:

-E eu sou o primeiro a bater nesse vadio, seu delegado.

O Delegado olhou forte para Manoel e disse-lhe em voz clara e forte o suficiente para fazer um tigre tremer:

-O senhor aqui não bate em ninguém, cale essa boca.

Virou o olhar para o preso e esperou a resposta.

Valdomiro era valente, mas o que é um valente diante das durezas da vida, diante do olhar duro de um Delegado que parecia disposto a cumprir o que falava. Olhou para o lado e viu o Inspetor negro com cara de poucos amigos, que fulminou-o e moveu as mãos que pareciam garras. Valdomiro era um peão de estância, um domador de cavalos, tinha força física para lidar no campo, mas pouca experiência de vida e, na cadeia poderia se dar mal. Tinha um pouco de dinheiro guardado e poderia sim, casar-se com a bela morena filha do seu Manoel da Carroça. Pensou um pouco ali de pé, com frio, diante de homens duros e acostumados a domar valentões. O que eu sou nesse situação? Nada. Um João Ninguém que vão botar atrás das grades e jogar a chave fora. Resolveu então e falou baixinho, quase um sussurro.

-Eu caso com Aida!

Assim é que se fala rapaz. Pareceu a Valdomiro que o Delegado estava mais calmo. Será? Como ninguém falasse mais nada foi confirmado então o casamento de Valdomiro com Ainda. Manoel abriu um sorriso, o Delegado preparou o termo de declarações, o Inspetor negro saiu da sala. A tensão se dissipou. O vento e o frio continuaram a açoitar os viventes.

Cruz Alta-RS 28agosto2013.

drmoura
Enviado por drmoura em 28/08/2013
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