Para Davi, música da minha vida
‘Como a encontrou?’.
Astor grunhiu e voltou-se de costas, meneando a cabeça, balançando as orelhas grandes e bicolores, pretas e caramelo, um dos seus pontos fortes, segundo ele.
‘Não, Sr. Boggs, sua estátua não disse uma palavra. ’ – confirmei com cara de poucos amigos, tipo a que se vê em um cobrador desesperado para receber sua grana, o que, por sinal, era exatamente o que eu era naquele exato momento.
Então tive uma ideia, que, de tão simples, eu já poderia ter tido a, pelo menos, uns dez minutos.
‘Por que não testa a estátua? Quero dizer... por quê não a põe para cantar? Afinal, não é o que importa? Que ela cante?’.
Boggs entrecerrou os olhos e me fitou com um ar tolerante, bem o olhar que se dá quando algum idiota – neste caso, eu mesmo – tentando ser prestativo, faz ou sugere que seja feita alguma idiotice.
‘O momento não é adequado, meu amigo. ’ – e sem dizer mais nada, virou as costas e saiu com uma rapidez admirável para um homem do seu tamanho.
Atravesso a Avenida Naish e desço uma quadra até o ‘Leary’s. Abro a porta de madeira pintada de verde, com pequenos quadrados de vidro que deixam passar a luz baça do interior e me dirijo ao balcão. Àquela hora o movimento é pequeno; só um cara em uma mesa perto da porta, lendo o Noir Times e fumando um cigarro que, pela contagem rápida das guimbas no cinzeiro, deve ser o décimo. Eu conheço o cara. O nome dele é Zeppo e dizem – com razão – que é informante da polícia. Não sei por que não gostei de dar as caras com ele, muito embora ele nem notasse minha chegada.
‘Olá, Tim – saudei o dono do bar que estava repondo garrafas de malte nas prateleiras de vidro – 'Como vão as coisas?'.
Olhei a estátua sobre a mesa do escritório. Fazia um calor infernal; era verão e o ventilador de teto não dava conta do recado. Estátua horrível. Lembrava uma aranha, mas cem vezes maior, com múltiplas pernas arqueadas, feita em madeira escura, bem parecida com a cor marrom das aranhas caranguejeiras. Pensei: porque Mr. Boggs fazia tanta questão de ter um lixo daquele? Mas na lamentável condição de detetive particular em estado falimentar eu não ia discutir os gostos estéticos do meu cliente.
‘Ora, ora, que surpresa!’ – disse Boggs empurrando com a barriga pontuda a porta de vaivém entre minha sala e a recepção onde Astor, meu fiel secretário canino disparava olhares de reprovação ao espaçoso visitante. Astor é um autêntico membro da raça Beagle; educado, discreto, mas temperamental. Um monte de adjetivos, nem sempre compatíveis.
Empurrei meu chapéu de feltro verde escuro para trás, em cumprimento. Minha testa estava suada e os cabelos emplastrados. Sempre odiei o verão. Desde que era criança e morava em Tumbleweed, um dos bairros mais filhos da puta de Noirland.
Boggs olhava para a estátua como se fosse comê-la. Depois perguntou tão apalermado como se estivesse no meio de uma viagem de LWD das brabas:‘Como a encontrou?’.
‘Tenho meus contatos... ’ – fiz charme porque um detetive tem que saber fazer essas coisas, senão não dura nem um ano no mercado. Olhei de soslaio para a estátua horrorosa e perguntei, só por perguntar, porque eu estava mais seguro do que ancora no fundo do mar – ‘É esta a estátua, não é?’.
‘Espero que sim, mas... ’ – o corpulento Boggs, agora, parecia um meninão inflado por alguma superbomba de ar comprimido; a cara balofa desanimada, atingida por uma preocupação que fazia os olhinhos estreitos quase lacrimejarem, emocionados. Do que eu sabia dele – e não era pouco, sou bem informado – Boggs era capaz de matar um homem com as mãos – ou, mais exato, com apenas uma delas – e ali estava ele, tristonho, um bebê gigante prestes a cair no choro.
‘Algo errado?’ – perguntei, imaginando o que se passava naquela cabeça pequena demais para aquele corpanzil de elefante obeso.
‘É que, assim, apenas olhando, não posso dizer se é mesmo a estátua, entende? Quero dizer, a minha estátua. ’ – respondeu Boggs, suspirando, e provocando um tsunami na barriga imensa.
Da porta, Astor olhava irritado. Na pata direita agitava um papel. Contornei a cordilheira – Boggs – que nos separava e tomei nas mãos o papel. Estava escrito: Mustapha garantiu a procedência. Este saco de banha tá de sacanagem. Astor e seu afinado senso crítico.
Resolvi aproveitar a deixa e falei com voz muito, mas muito segura:
‘A estátua é quente, Sr. Boggs. Garanto. ’.
‘É que, assim, apenas olhando, não posso dizer se é mesmo a estátua, entende? Quero dizer, a minha estátua. ’ – respondeu Boggs, suspirando, e provocando um tsunami na barriga imensa.
Da porta, Astor olhava irritado. Na pata direita agitava um papel. Contornei a cordilheira – Boggs – que nos separava e tomei nas mãos o papel. Estava escrito: Mustapha garantiu a procedência. Este saco de banha tá de sacanagem. Astor e seu afinado senso crítico.
Resolvi aproveitar a deixa e falei com voz muito, mas muito segura:
‘A estátua é quente, Sr. Boggs. Garanto. ’.
‘Você já a ouviu... cantar?’ – perguntou Boggs ansioso.
Aí eu pensei que, de fato, Mr. Boggs, um dos chefões mais poderosos da zona leste de Noirland, estivesse doido. Estátua que canta? Pensei que aquela esquisitice fosse uma desculpa para não pagar meus honorários. Como eu não tinha nada mais interessante a fazer do que responder, respondi, cruzando os braços à frente do peito, cheio de moral e desafio.
‘Não. Não ouvi. ’ – voltei-me para Astor e perguntei – ‘E você, meu chapa, ouviu?’.
‘Não. Não ouvi. ’ – voltei-me para Astor e perguntei – ‘E você, meu chapa, ouviu?’.
Astor grunhiu e voltou-se de costas, meneando a cabeça, balançando as orelhas grandes e bicolores, pretas e caramelo, um dos seus pontos fortes, segundo ele.
‘Não, Sr. Boggs, sua estátua não disse uma palavra. ’ – confirmei com cara de poucos amigos, tipo a que se vê em um cobrador desesperado para receber sua grana, o que, por sinal, era exatamente o que eu era naquele exato momento.
Minha eficiência de cobrador implacável arrefeceu quando dois sujeitos imensos entraram no escritório. Um com quase dois metros e pesando uns 150 kg, era albino, inteiramente careca, usava óculos tão escuros que a luz sequer se refletia nas lentes, tinha braços fortes como vigas de cais de porto e um tronco largo feito muro de presídio. O outro era baixo, com cabelos vermelhos, nariz amassado, boca ligeiramente torta e dentes amarelados, tudo em cima de um corpo pesado como um trator. Boggs fez um sinal com a mão para o ‘vermelho’ que repassou a ele um envelope que Boggs, de imediato, repassou para mim. Curioso, abri e vi, com um tremor de satisfação, que lá dentro descansava um lindo bolo de notas. Contei o mais rápido que pude. Duzentos e cinquenta denares. Grana bastante para pôr o salário de Astor em dia, quitar minhas dívidas com os agentes de apostas no circuito e ainda passar folgado por uns dois meses, mesmo jantando vez ou outra no Filetto D’Oro.
‘Obrigado, Sr. Boggs. ’ – agradeci, guardando o envelope no bolso interno do paletó.
‘Escute... estou agindo de boa-fé, você sabe.’ – disse Boggs, com um tom educado, mas claramente ameaçador – ‘Estou a confiar que esta estátua é, de fato, a estátua. E mais: que esta estátua canta. Como a que eu tinha quando criança e que me roubaram. No entanto, caso haja algum equívoco... terei que voltar e rever nosso contrato, o que, creia, iria me causar grande dissabor.’ – Boggs acariciava a estátua/aranha como se fosse as coxas de uma mulher – ‘Vou indo.’ – concluiu, a estátua aninhada nas mãos balofas.
Então tive uma ideia, que, de tão simples, eu já poderia ter tido a, pelo menos, uns dez minutos.
‘Por que não testa a estátua? Quero dizer... por quê não a põe para cantar? Afinal, não é o que importa? Que ela cante?’.
Boggs entrecerrou os olhos e me fitou com um ar tolerante, bem o olhar que se dá quando algum idiota – neste caso, eu mesmo – tentando ser prestativo, faz ou sugere que seja feita alguma idiotice.
‘O momento não é adequado, meu amigo. ’ – e sem dizer mais nada, virou as costas e saiu com uma rapidez admirável para um homem do seu tamanho.
Quando Boggs e seus asseclas se foram, a impressão era a de que uma manada de hipopótamos acabara de sair porta afora. Encostado na soleira da porta de vaivém, senti o peso abençoado do envelope no bolso.
Na mesa da recepção, Astor datilografava talvez a décima carta para a Associação dos Cães Universitários. Desde que o PAE –Programa de Aceleração de Inteligência – foi iniciado a uns cinquenta anos, logo depois do Grande Conflito,alguns animais haviam, digamos assim, se tornado bem espertos. Nem todos, é verdade; dentre as cobaias, que iam de gatos a crocodilos, os macacos, os cachorros e os cavalos foram os mais bem sucedidos.
Coloquei quarenta denares ao lado da máquina de escrever. Astor sacudiu as orelhas compridas, olhou de soslaio para o dinheiro e comentou:
‘O gorducho até que paga bem!’.
Fiquei quieto. Afrouxei a gravata, abri o botão do colarinho e arrumei o chapéu. Hora de dar uma saída. Quando ia saindo, Astor perguntou:
‘Ainda volta?’
‘Claro. É meio-dia. O que você acha que eu sou? Um milionário que não precisa trabalhar?’ – respondi, indignado pela ideia de vadiar em pleno expediente.
‘Claro que não. Você?’ – a surpresa nos olhinhos semicerrados de Astor era pura ironia. Ele continuou a datilografar e resmungar impropérios contra a Associação de Cães Universitários que ainda não lhe enviara o novo cartão de Acesso Especial Para Humano.
‘O gorducho até que paga bem!’.
Fiquei quieto. Afrouxei a gravata, abri o botão do colarinho e arrumei o chapéu. Hora de dar uma saída. Quando ia saindo, Astor perguntou:
‘Ainda volta?’
‘Claro. É meio-dia. O que você acha que eu sou? Um milionário que não precisa trabalhar?’ – respondi, indignado pela ideia de vadiar em pleno expediente.
‘Claro que não. Você?’ – a surpresa nos olhinhos semicerrados de Astor era pura ironia. Ele continuou a datilografar e resmungar impropérios contra a Associação de Cães Universitários que ainda não lhe enviara o novo cartão de Acesso Especial Para Humano.
O mundo mudou. Os animais, por exemplo. Os cães são fundamentais para a economia em Noirland; são motoristas, carteiros, escriturários, vigias (uma atividade em que se dão bem, talvez pela experiência milenar), bancários, balconistas e até empresários. Os macacos, por sua vez, explodiram no mundo das artes; o pintor mais famoso em Noirland é Titus Orth, um orangotango de pelo laranja e indefectíveis óculos de lentes azuis, com um sotaque emproado insuportável. Outros são donos de circos, diretores de vaudeville, músicos. Já os cavalos gerenciam um sistema de transporte alternativo, com carroças confortáveis e refrigeradas, e janelas panorâmicas. Também são astros do hipódromo – que eles controlam – e colaboram com equipes de trabalho na construção civil.
Por mim, tudo bem. Os mais velhos - não todos - acham insuportável estes novos paradigmas de convivência. Conheço uma mulher, a Sra. Martinez, que não se conforma em ter escutado Félice - uma linda cadela poodle tataraneta de outro poodle que ela criara anos atrás - recitar um poema de Walt Whitman. E o que encanta a Sra. Martinez é que Félice recita com muita emoção, como ela sempre repete com lágrimas nos olhos.
Atravesso a Avenida Naish e desço uma quadra até o ‘Leary’s. Abro a porta de madeira pintada de verde, com pequenos quadrados de vidro que deixam passar a luz baça do interior e me dirijo ao balcão. Àquela hora o movimento é pequeno; só um cara em uma mesa perto da porta, lendo o Noir Times e fumando um cigarro que, pela contagem rápida das guimbas no cinzeiro, deve ser o décimo. Eu conheço o cara. O nome dele é Zeppo e dizem – com razão – que é informante da polícia. Não sei por que não gostei de dar as caras com ele, muito embora ele nem notasse minha chegada.
‘Olá, Tim – saudei o dono do bar que estava repondo garrafas de malte nas prateleiras de vidro – 'Como vão as coisas?'.
Ele deu de ombros, o que significava que as coisas não iam bem nem mal. Pôs a última garrafa no lugar, voltou-se e apoiando-se no balcão, olhou para mim de frente. Timothy Leary era um Novo Irlandês – um grupo de migrantes que viera para Noirland depois do Grande Conflito – e seu aspecto não negava sua procedência. Cara larga, nariz achatado, pele avermelhada, cabelos cor de areia rareando na fronte, orelhas de abano e uma boca grande com dentes espaçados. Era alto e corpulento e cheirava a uísque e tabaco velho.
'E aí?' - perguntou a voz rouca e desafinada – 'Como vão as coisas? Vai uma cerveja?'.
Aceitei e me instalei em um dos bancos altos, na parte mais à esquerda do bar, próximo à saída. Mania dos tempos em que fui do Departamento de Polícia de Noirland. Vi assassinatos demais só porque as vítimas não tiveram tempo para dar o fora antes de o inferno explodir. Desde aqueles tempos, a porta de saída era sempre uma boa ideia.
Antes mesmo da cerveja chegar, Zeppo apareceu à minha direita, com uma expressão de coelho intrometido na cara pontiaguda, o Noir Times enrolado debaixo do braço. Olhei para ele e fiquei quieto. Não gostava de perder tempo com gente que ganhava dinheiro delatando os outros, mesmo que fossem bandidos. Sou um cara muito leal.
'Boggs esteve em seu escritório hoje. ' - anunciou Zeppo com uma fungada irritante e um pigarro de tuberculoso – 'Não sabia que você conhecia um figurão como Boggs'.
'Nem eu' – respondi, desinteressado, tomando um longo e refrescante gole de cerveja. Timothy se afastou para o outro lado do bar. Ele também não ia com a cara de Zeppo, mas negócios são negócios.
'O que vocês andaram conversando?' - o baixinho perguntou com um riso que tentava convencer que ele era só um perguntador idiota, mas, no fundo, gente boa. Isto podia colar com algum novato, mas não comigo.
'Escuta, Zeppo, nós, os detetives particulares, temos um juramento de confidencialidade com nossos clientes, portanto... '
.
'Boggs é seu cliente?' – perguntou com os olhinhos de pássaro abertos de espanto.
Eu não era um novato, mas tinha falado demais. Pior para mim. Esvaziei a caneca em um só gole, joguei uma moeda no balcão e me dirigi para porta, dizendo, irritado mais comigo do que com aquele alcaguete idiota:
'Vai ver se estou na esquina. '.
Antes que eu saísse, Zeppo falou:
'Gosto de você. Você é um cara decente. Quero lhe prevenir. Boggs tem andado agitado ultimamente. O pessoal do Departamento apertou a vigilância. Nas últimas semanas, ele despachou meia dúzia de vigaristas para o outro mundo. E tudo porque anda desesperado atrás de uma estátua que canta. Por acaso você sabe de algo?'.
Confesso que aquela voz arrastada me fez parar com a mão na maçaneta. Olhei para Zeppo e ele continuava parado no mesmo lugar. Retirou o jornal de debaixo do braço e o mostrou para mim.
'Se não acredita em mim, leia o jornal.’.
'Não sei de estátua nenhuma.' - menti, mas tão mal que Zeppo franziu a cara, como se tivesse mastigado um limão azedo – 'E mesmo que eu soubesse' – tentei remediar, sem graça – 'Eu não lhe diria nada.'.
'Tome cuidado. ' - insistiu, voltando a pôr o jornal sob o braço – 'A corda pode rebentar pro seu lado. '.
Saí do Leary's e o sol quente do meio dia me fez piscar. Lembrei-me do dinheiro em meu bolso e senti uma vontade imensa de mandar Zeppo para o inferno. Droga! Aquele era o meu trabalho e eu o fazia muito bem. É bem verdade que o dinheiro está cada vez mais difícil e as coisas em Noirland andam meio paradas no meu ramo. Por isto mesmo, Boggs e sua horrorosa estátua que canta tinham sido um prêmio. Pensei no que fazer. Não tinha fome e, adiando o almoço, fui até a banca de revistas da próxima esquina e comprei um exemplar do Noir Chronicle, só para não ler o mesmo maldito jornal daquele maldito intrometido.
Logo que desdobrei o jornal, ainda cheirando a tinta, vi a notícia na primeira página. Vendedor de antiguidades assassinado no Mercado Velhos Tempos. Sobre a nota, a foto de Mustapha El Barid, o contrabandista e expert em artigos raros que me ajudara a encontrar a estátua de Boggs. O crime ocorrera de manhã cedo, quando Mustapha chegava à loja. Dois balaços nas costas. Segundo testemunhas, o assassino era um cara grandalhão, com cabelos avermelhados.
Senti minhas mãos gelarem. Zeppo tinha razão. A coisa era feia, bem feia. Pensei em voltar até o Leary's e pedir mais informações, mas desisti. Zeppo não ia me ajudar em nada, e, àquela altura, era bem capaz de me jogar na fogueira, só para ganhar uns denares a mais. Corri até uma cabine telefônica que, por sorte, estava vazia, entrei, fechei a porta, escorando-a firme com um dos pés, para nenhum apressadinho pensar em forçar a entrada e liguei para o escritório.
'Investigações Particulares, bom dia! Em que posso ajudar?'
'Astor, sou eu... ' - falei quase engolindo o telefone.
'Eu quem?' - grunhiu Astor, impaciente. Eu podia ver suas orelhas se agitando, inquietas.
'Seu chefe, droga. Quero que você saia do escritório agora. Suma daí!'.
'Por quê? Ainda nem é meio dia! Se eu sair, você vai cortar o meu dia e então... '.
'Saia daí agora! Você está correndo perigo. Depois eu explico. ' - gritei com voz decidida.
'Ok, chefe! O que quer que eu faça?'.
'Vá para casa e se esconda debaixo da cama, como faziam seus ancestrais. ' - falei e desliguei, saindo rápido da cabine.
Eu me sentia culpado pelo assassinato de Mustapha. Ele podia ser um vigarista, mas já tinha me ajudado em alguns casos. E, por outro lado, em Noirland se você detestar alguém só porque este alguém é vigarista, bem, vai restar pouca gente para cantar parabéns pra você em seu aniversário. Eu não ia deixar aquilo passar em branco. Boggs estava enfiado até o pescoço no assassinato de Mustapha e agora, gostasse ou não, ele ia ter uma conversa comigo. E nenhum dos seus guarda-costas com cara de gorila – meus amigos gorilas que me perdoem – iam impedir que eu desse uma boa sacudidela no poderoso Mr. Boggs. E eu sou ótimo em dar sacudidelas.
Acenei para um táxi e entrei esbaforido no banco de trás. Era um antigo modelo WV, movido a baterias elétricas, uma relíquia. Em outra situação, eu teria aproveitado a viagem naquele museu sobre rodas, mas tudo que eu disse ao motorista, um senhor de cara vermelha, fartos bigodes brancos e uma cabeça redonda como um ovo foi:
'Avenida Preminger, 2104. E depressa!'.
Disse 'depressa' porque o táxi era mais apropriado para um desfile saudosista pré Grande Conflito do que para uma corrida rápida pelo trânsito caótico de Noirland. E estávamos na hora do almoço, o que fazia o caos, no mínimo, duplicar. O motorista até se esforçou, mas o resultado foi pífio. O velho WV não passava de 70 km por hora e era ultrapassado tanto pelos aeroveículos – o que era compreensível-como pelas carroças, o que era indesculpável, principalmente por causa da cara de gozação dos cavalos-pilotos.
Decidi ficar quieto no fundo do carro, ruminando. A tal estátua cantora devia valer uma grana. Se não, por que matar Mustapha? A resposta mais lógica era que Boggs, sabendo que fora ele quem dera a pista para achar a estátua, pudesse tentar roubá-la, só para faturar ainda mais, revendendo-a. E, sendo assim, o que impediria Boggs e seu bando de decidir pôr um ponto final na minha atribulada, exaustiva, mal remunerada, mas maravilhosa existência? Eu tinha que cortar o mal pela raiz.
O táxi cruzou a ponte Suspiria e entrou nas primeiras ruas do bairro Monroe. Era ali, entre parques bem ajardinados, alamedas com olmos, plátanos, amendoeiras e zyrahs frondosos e imensas mansões em estilo pré Conflito – uma antiga namorada arquiteta me falara destes estilos, mas eu só lembrava do Vitoriano e Niemayerano - que Boggs morava. Diziam que sua casa era a mais bela do bairro, mas poucos podiam dizer com certeza, porque um muro alto – mais de dez metros – a cercava em toda extensão.
Contornamos a praça central, onde ficava uma estátua em bronze de uma mulher de sorriso contagiante, trajando um vestido que um vento invisível levantava, revelando coxas perfeitamente esculpidas. A estátua – que não cantava – fora achada em umas ruínas a oeste de Noirland e, em seu pedestal, lia-se uma inscrição, em letras de ouro: Monroe. Ninguém sabia quem era a mulher ou qual a origem da estátua, mas hoje era um ponto conhecido na cidade e dera o nome àquele bairro de ricaços.
O velho táxi parou no outro lado da calçada, diante do largo portão gradeado e dourado da mansão de Boggs. Paguei a corrida – se é que se pode chamar assim – e disse ao bigodudo que ficasse com o troco. Ele nem agradeceu e, olhando para a propriedade, arrancou rápido, na verdade rápido demais para aquela peça arqueológica. O cara sabia das coisas.
Atravessei a alameda deserta e me aproximei do portão. Tudo parecia calmo, parado. Chequei pela enésima vez se o .45 estava no coldre de ombro e apertei a campainha. Esperei, tentando ver algo na faixa de terreno diante de mim. Nada. Uns dois minutos e toquei de novo, mais insistente. Comecei a achar que não iam atender quando, disposto a tocar uma terceira vez, ouvi um barulho. Tiros. E vinham da mansão.
Saí da frente do portão e fiquei colado ao muro. Saquei a arma e pensei no que fazer. Ouvi mais dois tiros e, depois, o barulho cortante de pneus de um veículo, arrancando abruptamente. Se não fosse um aerocarro – o que parecia improvável – o veículo sairia pelo portão. E era provável que quem estivesse dirigindo fosse o responsável pelo tiroteio.
Não demorei a descobrir. Com um estrondo terrível, seguido do som rascante de metal retorcido – parte do portão, que, arrancado por um impacto violento, voou, desgovernado, indo bater no muro da casa em frente – um modelo Grand Berlim, sedã quatro portas, preto, com uma frente tão comprida que mais parecia a tromba de um elefante, avançou veloz para fora da propriedade, fazendo uma curva brusca e virando para o lado direito da rua, justamente onde eu me encontrava.
Agachei-me, tentando prevenir um tiro e, segurando o .45 com ambas as mãos, disparei três vezes. De início, achei que havia desperdiçado balas, já que o carrão continuou a disparar, ganhando distância. Mas eu tinha tido sorte ou, então, minha pontaria anda bem afiada. O fato é que, duzentos metros mais adiante, o carro pendeu para a direita, deu uma reviravolta e bateu com a lateral bem no tronco de um olmo que devia estar por ali desde que o mundo era mundo. Boa pontaria, sim. Uma das balas – ou talvez todas – atingiram dois pneus do Grand Berlim, transformando-o em uma banheira inútil.
A porta do motorista se abriu e de dentro saltou o grandalhão de cabelos vermelhos, o mesmo que estivera em meu escritório. Tinha a cara contorcida de ódio e um revolver em cada mão. Levantei a arma, mas, antes que pudesse disparar, uma rajada de metralhadora às minhas costas fez o grandalhão rodopiar no ar, no meio de um explodir de bolhas vermelhas – o sangue do cara, caso não tenha ficado claro – e cair de cara no chão, como um saco de batatas. Ele estremeceu uns poucos segundos e depois ficou imóvel, como os paralelepípedos embaixo dele.
Olhei para trás e vi dois caras que não conhecia. Mas não era preciso ser detetive para saber que era gente de Boggs. Para não causar confusão, guardei logo minha arma, enquanto um deles, que tinha a metralhadora nas mãos, ainda fumegante, disse sem sequer olhar para mim:
'Bom trabalho. '.
Achei que devia dizer 'obrigado' ou ' conte com a gente', mas só balancei a cabeça. Falar com aquela gente era sempre perigoso. Apontando a metralhadora na direção do portão arrebentado, ele falou:
'Acho que o senhor Boggs vai querer ver você. Agradecer pessoalmente, sabe como é... ' - deu um sorriso de hiena absolutamente repulsivo.
Achei que não devia declinar o convite. De mais a mais, tinha vindo para acertar as coisas com Boggs e não ia voltar com mãos vazias. Tomei a direção da casa, passando sobre os destroços do belo portão dourado, o capanga da metralhadora atrás de mim, enquanto o outro foi providenciar a 'limpeza' da via pública. Excelentes cidadãos, sem dúvida.
A mansão ficava uns duzentos metros além do portão. Era uma casa com um pórtico que se estendia entre duas colunas brancas, acima de uma escadaria de degraus largos de mármore. Ladeando a porta, vasos de porcelana quase da minha altura; o da direita um dragão, com a língua de lagartixa gigante enrolada no corpo escamoso, e o da esquerda, um tigre com olhos e presas grandes parecendo estar prestes a dar o bote. Nada mais adequado. A sólida porta de madeira estava aberta. O cara atrás de mim me empurrou suavemente com a ponta do cano da metralhadora, não como ameaça, mas mais como um gesto de persuasão.
Atravessei a porta e me vi na maior sala em que já pusera os pés na vida; era, na verdade, três salas. A primeira era um amplo vestíbulo; uma bancada à direita servia para guardar os casacos, chapéus e bolsas dos convidados da mansão. Na parede à esquerda, estavam dependurados quadros de gente como Volker, Makim, Titus Orth e até um Van Gogh, um dos poucos que sobrevivera ao Conflito. Aquele Van Gogh dava bem a medida da força e do poder do anfitrião. Mais adiante, uma elegante sala de estar, com sofás em que se podia afundar até as orelhas, mesas de apoio feitas de madeiras raras, mais obras de arte – desta vez, esculturas em bronze e aço – e uma estante com iluminação interna onde se viam garrafas das melhores bebidas. Em um relance, vi uma garrafa de Chateau Robespierre, um dos vinhos mais caros que o dinheiro pode comprar, e uma garrafa de Jim Bean, a bebida preferida dos bluesman, cerca de duzentos anos atrás.
O cano da arma beliscou de leve minhas costelas e segui em frente. Depois de andar o que me pareceu uma milha, atravessando salas, saí em um avarandado à beira de uma piscina em forma de gota d'água que era maior do que muitos lagos naturais que eu já vira. Boggs estava sentado sob um sombreiro em uma cadeira que sumia debaixo do seu corpanzil. Vestia bermudas cáquis e camisão branco estampado com flores vermelhas e azuis. Tinha um walkie talkie na mão que desligou quando cheguei. Acenou para eu me aproximar.
'Estamos nos vendo muito hoje, não?' - perguntou, cara enfezada, sem me convidar a sentar.
'Coisas do destino. ' - respondi, encolhendo os ombros.
''Acho que devo agradecê-lo por agir tão rápido. Se não fosse por você... ' - abriu os braços de paquiderme, por um lado me agradecendo e por outro tentando mostrar o quanto ele esteve à beira de ser riscado da face da terra.
‘Foi um prazer. ’ – respondi meio irônico. Olhei para trás. O capanga se deslocara um pouco para a direita, e a metralhadora, apontada para o chão, já não parecia tão ameaçadora.
Decidi arriscar a sorte.
‘Por que matar Mustapha?’ – lancei, sem rodeios – ‘Ele era um cara legal. E me ajudou a achar aquela estátua horrível!’ – eu logo pensei que podia ter parado na pergunta, porque o resto era quase uma tentativa de suicídio. Paciência. Minha língua sempre me colocou – e ainda vai me colocar – em muitos apuros.
Surpreendentemente, Boggs não ficou zangado. Ao contrário, pareceu até penalizado e, convidando-me a sentar, explicou:
‘Não tenho nada a ver com a morte do seu amigo. O problema é que minha busca pela estátua provocou – digamos - certo rebuliço em Noirland. Até os tiras andaram xeretando mais que o normal em minha vida... ’
‘Não será porque você despachou alguns parceiros para o outro mundo?’ – provoquei, sentando e olhando-o com um riso indiferente.
Boggs negou com a cabeça.
‘Eram só uns dois ou três vagabundos que não mereciam viver. Ladrões, assassinos, sequestradores’ – pensei se Boggs acreditava naquilo porque, caso acreditasse, ele mesmo já deveria ter subido na fumaça há muito tempo. ‘Gente que queria me prejudicar. Mas, veja só, eu tinha um inimigo bem aqui, entre meus homens. ’ – entrecerrou os olhos, abalado – ‘Um ingrato. ’.
‘Então ele deu fim no Mustapha por conta própria?’ – indaguei, desconfiado.
Boggs confirmou.
‘O infeliz queria que Mustapha dissesse se há outra estátua como a minha. Para vender por uma boa grana, creio. Como não recebeu a resposta que queria, perdeu a cabeça... ’ – meneou a cabeçorra, em censura – ‘Coisa de amador... Depois tentou levar a minha estátua, imagine! A minha!’ – ele se recostou na cadeira, apoiando as mãos sobre a barrigona e concluiu, com um riso cínico – ‘O resto da história você já sabe... ’.
Acendi um cigarro e deixei a fumaça separar-me, por segundos, do imenso Boggs. O gorducho estava certo. O resto da história eu já sabia. Mais que isto. Eu participara diretamente.
Dei outra tragada no cigarro e me despedi, levantando-me. Boggs fez sinal que eu esperasse, falou com alguém no walkie talkie e me pediu para sentar. Minutos depois outro empregado chegou, trazendo um envelope, que Boggs me repassou. Mais dinheiro. 100 denares. Pensei em recusar, mas ele explicou:
‘Como compensação pelos seus aborrecimentos. ’
Queria dizer muito obrigado, mas agradeci com uma pergunta:
‘Será que você pode me dizer uma coisa?’.
Boggs fez um gesto com a mão rechonchuda, como se dissesse vá em frente.
'O que diabos têm esta sua estátua para custar a vida de dois homens?'.
Boggs me olhou com ar de paciente tolerância, fazendo com que eu me sentisse um imbecil completo, já arrependido de ter feito a pergunta.
Mas ele se levantou com esforço de sua cadeira – o que só conseguiu depois da terceira tentativa – e me tomou pelo braço, sussurrando baixinho o bastante para que só eu ouvisse:
'Venha comigo'.
Desta vez a expedição pela mansão foi longa. Subimos escadas de mármore, atravessamos corredores atapetados em que os pés afundavam, até que, muito depois – tempo que daria para percorrer o meu apartamento umas quinhentas vezes – chegamos aos aposentos de Boggs.
O quarto era tão grande que parecia um teatro; uma janela ao fundo abria para um balcão que dava vista para a piscina e um jardim com uma fonte de água luminosa; ao centro, uma cama com dossel que daria para uma família inteira dormir. E no criado mudo ao lado da cama megalômana, a estátua repousava sozinha, soberana.
Boggs aproximou-se e tomou-a nas mãos, com o mesmo fascínio que eu vira em meu escritório. Olhou para mim e, extasiado, disse:
'Ouça!'.
Revirou a estátua nas mãos e com um zelo religioso, pressionou um pequeno botão bem no centro do que seria a barriga da estátua ou da aranha, como o cliente preferir. O quarto silencioso encheu-se com uma vozinha doce e infantil, cantando:
A Dona Aranha
Subiu pela parede
Veio a chuva forte e a derrubou
Já passou a chuva o sol vem surgindo
E a Dona Aranha continua a subir
Quando se fez silêncio, confesso que tive vontade de dar uma gargalhada. Aquela monstruosidade pela qual Mustapha, um cara legal, e o idiota de cabelo vermelho, um cara nada legal, haviam perdido suas vidas, era uma droga de caixa de música!
Veio à cabeça a vontade de perguntar a Boggs se ele não estava ficando doido, mas ele, como percebendo meu desconforto – revolta seria a palavra certa – explicou, em um tom entusiasmado, quase delirante:
'Esta música era a música que me ninava quando eu era criança. Minha avó me deu uma aranha como esta quando eu tinha três anos. Era só ouvir esta música que eu dormia como um anjo!' - ele olhou para a aranha, extasiado, depois prosseguiu -'Desde que a perdi, quando tinha uns doze anos, nunca mais consegui dormir bem. Procurei durante décadas por outra igual, mas não achei. Encontrei porquinhos cantando 'A Fazendinha' e galinhas cantando 'Pintinho Amarelinho', mas a minha aranha nada! Só você conseguiu. Eu lhe sou eternamente grato. Você devolveu minha infância, entende? E também meu sono. Obrigado!'.
Em mais de dez anos de trabalho, nunca havia visto algo parecido. Sem palavras e atordoado pelo resultado daquele mistério, despedi-me, desejando bons sonhos a Mr. Boggs. Fiquei imaginando se aquela montanha de banha tinha um pijama de ursinhos para combinar, mas achei melhor ficar calado.
'Os rapazes lhe darão uma carona. ' - disse Boggs, conduzindo-me para fora do quarto.
Enquanto voltava para o escritório, lembrei que havia dispensado Astor. Ia ser uma longa tarde solitária. Melhor assim, pensei, olhando as ruas cinzentas do centro de Noirland se aproximando. Eu poderia dar o expediente por encerrado, tomar umas boas cervejas no Leary's e depois ir para casa e dormir até o dia seguinte.
Dormir como uma pedra. Como sempre faço. Sem música e sem aranhas.
Aceitei e me instalei em um dos bancos altos, na parte mais à esquerda do bar, próximo à saída. Mania dos tempos em que fui do Departamento de Polícia de Noirland. Vi assassinatos demais só porque as vítimas não tiveram tempo para dar o fora antes de o inferno explodir. Desde aqueles tempos, a porta de saída era sempre uma boa ideia.
Antes mesmo da cerveja chegar, Zeppo apareceu à minha direita, com uma expressão de coelho intrometido na cara pontiaguda, o Noir Times enrolado debaixo do braço. Olhei para ele e fiquei quieto. Não gostava de perder tempo com gente que ganhava dinheiro delatando os outros, mesmo que fossem bandidos. Sou um cara muito leal.
'Boggs esteve em seu escritório hoje. ' - anunciou Zeppo com uma fungada irritante e um pigarro de tuberculoso – 'Não sabia que você conhecia um figurão como Boggs'.
'Nem eu' – respondi, desinteressado, tomando um longo e refrescante gole de cerveja. Timothy se afastou para o outro lado do bar. Ele também não ia com a cara de Zeppo, mas negócios são negócios.
'O que vocês andaram conversando?' - o baixinho perguntou com um riso que tentava convencer que ele era só um perguntador idiota, mas, no fundo, gente boa. Isto podia colar com algum novato, mas não comigo.
'Escuta, Zeppo, nós, os detetives particulares, temos um juramento de confidencialidade com nossos clientes, portanto... '
.
'Boggs é seu cliente?' – perguntou com os olhinhos de pássaro abertos de espanto.
Eu não era um novato, mas tinha falado demais. Pior para mim. Esvaziei a caneca em um só gole, joguei uma moeda no balcão e me dirigi para porta, dizendo, irritado mais comigo do que com aquele alcaguete idiota:
'Vai ver se estou na esquina. '.
Antes que eu saísse, Zeppo falou:
'Gosto de você. Você é um cara decente. Quero lhe prevenir. Boggs tem andado agitado ultimamente. O pessoal do Departamento apertou a vigilância. Nas últimas semanas, ele despachou meia dúzia de vigaristas para o outro mundo. E tudo porque anda desesperado atrás de uma estátua que canta. Por acaso você sabe de algo?'.
Confesso que aquela voz arrastada me fez parar com a mão na maçaneta. Olhei para Zeppo e ele continuava parado no mesmo lugar. Retirou o jornal de debaixo do braço e o mostrou para mim.
'Se não acredita em mim, leia o jornal.’.
'Não sei de estátua nenhuma.' - menti, mas tão mal que Zeppo franziu a cara, como se tivesse mastigado um limão azedo – 'E mesmo que eu soubesse' – tentei remediar, sem graça – 'Eu não lhe diria nada.'.
'Tome cuidado. ' - insistiu, voltando a pôr o jornal sob o braço – 'A corda pode rebentar pro seu lado. '.
Saí do Leary's e o sol quente do meio dia me fez piscar. Lembrei-me do dinheiro em meu bolso e senti uma vontade imensa de mandar Zeppo para o inferno. Droga! Aquele era o meu trabalho e eu o fazia muito bem. É bem verdade que o dinheiro está cada vez mais difícil e as coisas em Noirland andam meio paradas no meu ramo. Por isto mesmo, Boggs e sua horrorosa estátua que canta tinham sido um prêmio. Pensei no que fazer. Não tinha fome e, adiando o almoço, fui até a banca de revistas da próxima esquina e comprei um exemplar do Noir Chronicle, só para não ler o mesmo maldito jornal daquele maldito intrometido.
Logo que desdobrei o jornal, ainda cheirando a tinta, vi a notícia na primeira página. Vendedor de antiguidades assassinado no Mercado Velhos Tempos. Sobre a nota, a foto de Mustapha El Barid, o contrabandista e expert em artigos raros que me ajudara a encontrar a estátua de Boggs. O crime ocorrera de manhã cedo, quando Mustapha chegava à loja. Dois balaços nas costas. Segundo testemunhas, o assassino era um cara grandalhão, com cabelos avermelhados.
Senti minhas mãos gelarem. Zeppo tinha razão. A coisa era feia, bem feia. Pensei em voltar até o Leary's e pedir mais informações, mas desisti. Zeppo não ia me ajudar em nada, e, àquela altura, era bem capaz de me jogar na fogueira, só para ganhar uns denares a mais. Corri até uma cabine telefônica que, por sorte, estava vazia, entrei, fechei a porta, escorando-a firme com um dos pés, para nenhum apressadinho pensar em forçar a entrada e liguei para o escritório.
'Investigações Particulares, bom dia! Em que posso ajudar?'
'Astor, sou eu... ' - falei quase engolindo o telefone.
'Eu quem?' - grunhiu Astor, impaciente. Eu podia ver suas orelhas se agitando, inquietas.
'Seu chefe, droga. Quero que você saia do escritório agora. Suma daí!'.
'Por quê? Ainda nem é meio dia! Se eu sair, você vai cortar o meu dia e então... '.
'Saia daí agora! Você está correndo perigo. Depois eu explico. ' - gritei com voz decidida.
'Ok, chefe! O que quer que eu faça?'.
'Vá para casa e se esconda debaixo da cama, como faziam seus ancestrais. ' - falei e desliguei, saindo rápido da cabine.
Eu me sentia culpado pelo assassinato de Mustapha. Ele podia ser um vigarista, mas já tinha me ajudado em alguns casos. E, por outro lado, em Noirland se você detestar alguém só porque este alguém é vigarista, bem, vai restar pouca gente para cantar parabéns pra você em seu aniversário. Eu não ia deixar aquilo passar em branco. Boggs estava enfiado até o pescoço no assassinato de Mustapha e agora, gostasse ou não, ele ia ter uma conversa comigo. E nenhum dos seus guarda-costas com cara de gorila – meus amigos gorilas que me perdoem – iam impedir que eu desse uma boa sacudidela no poderoso Mr. Boggs. E eu sou ótimo em dar sacudidelas.
Acenei para um táxi e entrei esbaforido no banco de trás. Era um antigo modelo WV, movido a baterias elétricas, uma relíquia. Em outra situação, eu teria aproveitado a viagem naquele museu sobre rodas, mas tudo que eu disse ao motorista, um senhor de cara vermelha, fartos bigodes brancos e uma cabeça redonda como um ovo foi:
'Avenida Preminger, 2104. E depressa!'.
Disse 'depressa' porque o táxi era mais apropriado para um desfile saudosista pré Grande Conflito do que para uma corrida rápida pelo trânsito caótico de Noirland. E estávamos na hora do almoço, o que fazia o caos, no mínimo, duplicar. O motorista até se esforçou, mas o resultado foi pífio. O velho WV não passava de 70 km por hora e era ultrapassado tanto pelos aeroveículos – o que era compreensível-como pelas carroças, o que era indesculpável, principalmente por causa da cara de gozação dos cavalos-pilotos.
Decidi ficar quieto no fundo do carro, ruminando. A tal estátua cantora devia valer uma grana. Se não, por que matar Mustapha? A resposta mais lógica era que Boggs, sabendo que fora ele quem dera a pista para achar a estátua, pudesse tentar roubá-la, só para faturar ainda mais, revendendo-a. E, sendo assim, o que impediria Boggs e seu bando de decidir pôr um ponto final na minha atribulada, exaustiva, mal remunerada, mas maravilhosa existência? Eu tinha que cortar o mal pela raiz.
O táxi cruzou a ponte Suspiria e entrou nas primeiras ruas do bairro Monroe. Era ali, entre parques bem ajardinados, alamedas com olmos, plátanos, amendoeiras e zyrahs frondosos e imensas mansões em estilo pré Conflito – uma antiga namorada arquiteta me falara destes estilos, mas eu só lembrava do Vitoriano e Niemayerano - que Boggs morava. Diziam que sua casa era a mais bela do bairro, mas poucos podiam dizer com certeza, porque um muro alto – mais de dez metros – a cercava em toda extensão.
Contornamos a praça central, onde ficava uma estátua em bronze de uma mulher de sorriso contagiante, trajando um vestido que um vento invisível levantava, revelando coxas perfeitamente esculpidas. A estátua – que não cantava – fora achada em umas ruínas a oeste de Noirland e, em seu pedestal, lia-se uma inscrição, em letras de ouro: Monroe. Ninguém sabia quem era a mulher ou qual a origem da estátua, mas hoje era um ponto conhecido na cidade e dera o nome àquele bairro de ricaços.
O velho táxi parou no outro lado da calçada, diante do largo portão gradeado e dourado da mansão de Boggs. Paguei a corrida – se é que se pode chamar assim – e disse ao bigodudo que ficasse com o troco. Ele nem agradeceu e, olhando para a propriedade, arrancou rápido, na verdade rápido demais para aquela peça arqueológica. O cara sabia das coisas.
Atravessei a alameda deserta e me aproximei do portão. Tudo parecia calmo, parado. Chequei pela enésima vez se o .45 estava no coldre de ombro e apertei a campainha. Esperei, tentando ver algo na faixa de terreno diante de mim. Nada. Uns dois minutos e toquei de novo, mais insistente. Comecei a achar que não iam atender quando, disposto a tocar uma terceira vez, ouvi um barulho. Tiros. E vinham da mansão.
Saí da frente do portão e fiquei colado ao muro. Saquei a arma e pensei no que fazer. Ouvi mais dois tiros e, depois, o barulho cortante de pneus de um veículo, arrancando abruptamente. Se não fosse um aerocarro – o que parecia improvável – o veículo sairia pelo portão. E era provável que quem estivesse dirigindo fosse o responsável pelo tiroteio.
Não demorei a descobrir. Com um estrondo terrível, seguido do som rascante de metal retorcido – parte do portão, que, arrancado por um impacto violento, voou, desgovernado, indo bater no muro da casa em frente – um modelo Grand Berlim, sedã quatro portas, preto, com uma frente tão comprida que mais parecia a tromba de um elefante, avançou veloz para fora da propriedade, fazendo uma curva brusca e virando para o lado direito da rua, justamente onde eu me encontrava.
Agachei-me, tentando prevenir um tiro e, segurando o .45 com ambas as mãos, disparei três vezes. De início, achei que havia desperdiçado balas, já que o carrão continuou a disparar, ganhando distância. Mas eu tinha tido sorte ou, então, minha pontaria anda bem afiada. O fato é que, duzentos metros mais adiante, o carro pendeu para a direita, deu uma reviravolta e bateu com a lateral bem no tronco de um olmo que devia estar por ali desde que o mundo era mundo. Boa pontaria, sim. Uma das balas – ou talvez todas – atingiram dois pneus do Grand Berlim, transformando-o em uma banheira inútil.
A porta do motorista se abriu e de dentro saltou o grandalhão de cabelos vermelhos, o mesmo que estivera em meu escritório. Tinha a cara contorcida de ódio e um revolver em cada mão. Levantei a arma, mas, antes que pudesse disparar, uma rajada de metralhadora às minhas costas fez o grandalhão rodopiar no ar, no meio de um explodir de bolhas vermelhas – o sangue do cara, caso não tenha ficado claro – e cair de cara no chão, como um saco de batatas. Ele estremeceu uns poucos segundos e depois ficou imóvel, como os paralelepípedos embaixo dele.
Olhei para trás e vi dois caras que não conhecia. Mas não era preciso ser detetive para saber que era gente de Boggs. Para não causar confusão, guardei logo minha arma, enquanto um deles, que tinha a metralhadora nas mãos, ainda fumegante, disse sem sequer olhar para mim:
'Bom trabalho. '.
Achei que devia dizer 'obrigado' ou ' conte com a gente', mas só balancei a cabeça. Falar com aquela gente era sempre perigoso. Apontando a metralhadora na direção do portão arrebentado, ele falou:
'Acho que o senhor Boggs vai querer ver você. Agradecer pessoalmente, sabe como é... ' - deu um sorriso de hiena absolutamente repulsivo.
Achei que não devia declinar o convite. De mais a mais, tinha vindo para acertar as coisas com Boggs e não ia voltar com mãos vazias. Tomei a direção da casa, passando sobre os destroços do belo portão dourado, o capanga da metralhadora atrás de mim, enquanto o outro foi providenciar a 'limpeza' da via pública. Excelentes cidadãos, sem dúvida.
A mansão ficava uns duzentos metros além do portão. Era uma casa com um pórtico que se estendia entre duas colunas brancas, acima de uma escadaria de degraus largos de mármore. Ladeando a porta, vasos de porcelana quase da minha altura; o da direita um dragão, com a língua de lagartixa gigante enrolada no corpo escamoso, e o da esquerda, um tigre com olhos e presas grandes parecendo estar prestes a dar o bote. Nada mais adequado. A sólida porta de madeira estava aberta. O cara atrás de mim me empurrou suavemente com a ponta do cano da metralhadora, não como ameaça, mas mais como um gesto de persuasão.
Atravessei a porta e me vi na maior sala em que já pusera os pés na vida; era, na verdade, três salas. A primeira era um amplo vestíbulo; uma bancada à direita servia para guardar os casacos, chapéus e bolsas dos convidados da mansão. Na parede à esquerda, estavam dependurados quadros de gente como Volker, Makim, Titus Orth e até um Van Gogh, um dos poucos que sobrevivera ao Conflito. Aquele Van Gogh dava bem a medida da força e do poder do anfitrião. Mais adiante, uma elegante sala de estar, com sofás em que se podia afundar até as orelhas, mesas de apoio feitas de madeiras raras, mais obras de arte – desta vez, esculturas em bronze e aço – e uma estante com iluminação interna onde se viam garrafas das melhores bebidas. Em um relance, vi uma garrafa de Chateau Robespierre, um dos vinhos mais caros que o dinheiro pode comprar, e uma garrafa de Jim Bean, a bebida preferida dos bluesman, cerca de duzentos anos atrás.
O cano da arma beliscou de leve minhas costelas e segui em frente. Depois de andar o que me pareceu uma milha, atravessando salas, saí em um avarandado à beira de uma piscina em forma de gota d'água que era maior do que muitos lagos naturais que eu já vira. Boggs estava sentado sob um sombreiro em uma cadeira que sumia debaixo do seu corpanzil. Vestia bermudas cáquis e camisão branco estampado com flores vermelhas e azuis. Tinha um walkie talkie na mão que desligou quando cheguei. Acenou para eu me aproximar.
'Estamos nos vendo muito hoje, não?' - perguntou, cara enfezada, sem me convidar a sentar.
'Coisas do destino. ' - respondi, encolhendo os ombros.
''Acho que devo agradecê-lo por agir tão rápido. Se não fosse por você... ' - abriu os braços de paquiderme, por um lado me agradecendo e por outro tentando mostrar o quanto ele esteve à beira de ser riscado da face da terra.
‘Foi um prazer. ’ – respondi meio irônico. Olhei para trás. O capanga se deslocara um pouco para a direita, e a metralhadora, apontada para o chão, já não parecia tão ameaçadora.
Decidi arriscar a sorte.
‘Por que matar Mustapha?’ – lancei, sem rodeios – ‘Ele era um cara legal. E me ajudou a achar aquela estátua horrível!’ – eu logo pensei que podia ter parado na pergunta, porque o resto era quase uma tentativa de suicídio. Paciência. Minha língua sempre me colocou – e ainda vai me colocar – em muitos apuros.
Surpreendentemente, Boggs não ficou zangado. Ao contrário, pareceu até penalizado e, convidando-me a sentar, explicou:
‘Não tenho nada a ver com a morte do seu amigo. O problema é que minha busca pela estátua provocou – digamos - certo rebuliço em Noirland. Até os tiras andaram xeretando mais que o normal em minha vida... ’
‘Não será porque você despachou alguns parceiros para o outro mundo?’ – provoquei, sentando e olhando-o com um riso indiferente.
Boggs negou com a cabeça.
‘Eram só uns dois ou três vagabundos que não mereciam viver. Ladrões, assassinos, sequestradores’ – pensei se Boggs acreditava naquilo porque, caso acreditasse, ele mesmo já deveria ter subido na fumaça há muito tempo. ‘Gente que queria me prejudicar. Mas, veja só, eu tinha um inimigo bem aqui, entre meus homens. ’ – entrecerrou os olhos, abalado – ‘Um ingrato. ’.
‘Então ele deu fim no Mustapha por conta própria?’ – indaguei, desconfiado.
Boggs confirmou.
‘O infeliz queria que Mustapha dissesse se há outra estátua como a minha. Para vender por uma boa grana, creio. Como não recebeu a resposta que queria, perdeu a cabeça... ’ – meneou a cabeçorra, em censura – ‘Coisa de amador... Depois tentou levar a minha estátua, imagine! A minha!’ – ele se recostou na cadeira, apoiando as mãos sobre a barrigona e concluiu, com um riso cínico – ‘O resto da história você já sabe... ’.
Acendi um cigarro e deixei a fumaça separar-me, por segundos, do imenso Boggs. O gorducho estava certo. O resto da história eu já sabia. Mais que isto. Eu participara diretamente.
Dei outra tragada no cigarro e me despedi, levantando-me. Boggs fez sinal que eu esperasse, falou com alguém no walkie talkie e me pediu para sentar. Minutos depois outro empregado chegou, trazendo um envelope, que Boggs me repassou. Mais dinheiro. 100 denares. Pensei em recusar, mas ele explicou:
‘Como compensação pelos seus aborrecimentos. ’
Queria dizer muito obrigado, mas agradeci com uma pergunta:
‘Será que você pode me dizer uma coisa?’.
Boggs fez um gesto com a mão rechonchuda, como se dissesse vá em frente.
'O que diabos têm esta sua estátua para custar a vida de dois homens?'.
Boggs me olhou com ar de paciente tolerância, fazendo com que eu me sentisse um imbecil completo, já arrependido de ter feito a pergunta.
Mas ele se levantou com esforço de sua cadeira – o que só conseguiu depois da terceira tentativa – e me tomou pelo braço, sussurrando baixinho o bastante para que só eu ouvisse:
'Venha comigo'.
Desta vez a expedição pela mansão foi longa. Subimos escadas de mármore, atravessamos corredores atapetados em que os pés afundavam, até que, muito depois – tempo que daria para percorrer o meu apartamento umas quinhentas vezes – chegamos aos aposentos de Boggs.
O quarto era tão grande que parecia um teatro; uma janela ao fundo abria para um balcão que dava vista para a piscina e um jardim com uma fonte de água luminosa; ao centro, uma cama com dossel que daria para uma família inteira dormir. E no criado mudo ao lado da cama megalômana, a estátua repousava sozinha, soberana.
Boggs aproximou-se e tomou-a nas mãos, com o mesmo fascínio que eu vira em meu escritório. Olhou para mim e, extasiado, disse:
'Ouça!'.
Revirou a estátua nas mãos e com um zelo religioso, pressionou um pequeno botão bem no centro do que seria a barriga da estátua ou da aranha, como o cliente preferir. O quarto silencioso encheu-se com uma vozinha doce e infantil, cantando:
A Dona Aranha
Subiu pela parede
Veio a chuva forte e a derrubou
Já passou a chuva o sol vem surgindo
E a Dona Aranha continua a subir
Quando se fez silêncio, confesso que tive vontade de dar uma gargalhada. Aquela monstruosidade pela qual Mustapha, um cara legal, e o idiota de cabelo vermelho, um cara nada legal, haviam perdido suas vidas, era uma droga de caixa de música!
Veio à cabeça a vontade de perguntar a Boggs se ele não estava ficando doido, mas ele, como percebendo meu desconforto – revolta seria a palavra certa – explicou, em um tom entusiasmado, quase delirante:
'Esta música era a música que me ninava quando eu era criança. Minha avó me deu uma aranha como esta quando eu tinha três anos. Era só ouvir esta música que eu dormia como um anjo!' - ele olhou para a aranha, extasiado, depois prosseguiu -'Desde que a perdi, quando tinha uns doze anos, nunca mais consegui dormir bem. Procurei durante décadas por outra igual, mas não achei. Encontrei porquinhos cantando 'A Fazendinha' e galinhas cantando 'Pintinho Amarelinho', mas a minha aranha nada! Só você conseguiu. Eu lhe sou eternamente grato. Você devolveu minha infância, entende? E também meu sono. Obrigado!'.
Em mais de dez anos de trabalho, nunca havia visto algo parecido. Sem palavras e atordoado pelo resultado daquele mistério, despedi-me, desejando bons sonhos a Mr. Boggs. Fiquei imaginando se aquela montanha de banha tinha um pijama de ursinhos para combinar, mas achei melhor ficar calado.
'Os rapazes lhe darão uma carona. ' - disse Boggs, conduzindo-me para fora do quarto.
Enquanto voltava para o escritório, lembrei que havia dispensado Astor. Ia ser uma longa tarde solitária. Melhor assim, pensei, olhando as ruas cinzentas do centro de Noirland se aproximando. Eu poderia dar o expediente por encerrado, tomar umas boas cervejas no Leary's e depois ir para casa e dormir até o dia seguinte.
Dormir como uma pedra. Como sempre faço. Sem música e sem aranhas.