Desilusão, desilusão/Dança eu, dança você/Na dança da solidão. (PAULINHO DA VIOLA, Dança da Solidão).
Conheço muito sujeito tirado à valente que diz a torto e a direito que quem mete uma bala na cabeça é porque é frouxo. Estes tais não sabem de nada. Na verdade, os frouxos são eles. Tem hora na vida que só a morte satisfaz. E se a gente chega a esse ponto, esta encruzilhada em que, de um lado, tem um caminho muito bonitinho e arrumado, mas do qual você foi expulso, e outro onde você só serve para ser pasto de abutres, o melhor é se tocar que nada deu certo e mandar o resto para o inferno. Em resumo, este é o meu caso. Policial com quinze anos de trabalho, condecorações suficientes para encher uma parede e um pontapé pelas costas porque descobriram que sou corrupto. Nem passou pela minha cabeça negar o que os engravatados com cara de bonecos de cera da Corregedoria me acusaram. Não ia adiantar. Aqueles filhinhos de papai não entendem que chega uma hora, depois de tomar tiro, porrada, ouvir xingamento de marginal, e no fim do mês receber uma merreca de grana que não dá nem para uma semana, em que é preciso virar a mesa. Peguei dinheiro, sim. Um tanto aqui, outro ali, tudo grana de traficante miserável, desses que vendem ‘crack’ em porta de escola primária como se fosse bala de menta. Meti também uns balaços neles. Não deixei um só vivo para contar vantagem. Tudo serviço limpo, bala sempre no meio dos olhos, viagem só de ida. Atiro bem. Ia adiantar eu discursar para aqueles otários que, na verdade, eu fiz um serviço de dedetização? Corrupto, eles iam responder. Vergonha da polícia, outros iam fazer eco. Então, dane-se. Minha mulher me largou depois que abriram o processo, que eu fui preso, que minha cara apareceu no Jornal Nacional. Foi morar com a mãe, que é cartomante em Santos. Nem levou em conta que a escola dos meninos – escola particular boa, ensino de primeira -, que a casa de três quartos e os dois carros, um meu e outro dela, foi tudo graças à minha competência como dedetizador. Deve estar lá em Santos – com as roupas que eu dei para ela – tentando arrumar macho e aprendendo a jogar tarô com aquela velha fedorenta. E eu estou aqui, neste trecho quase deserto de estrada, a Luger carregadinha, munição nova, tudo nos conformes para o tiro que vai coçar meus miolos sair direitinho. Encostei o carro debaixo de umas árvores e, dentro da sombra densa da noite sem lua, boto um CD no som do carro, Elvis Presley, cantando Suspicious Mind, música do tempo das festinhas, tempo que eu ficava azarando as meninas e sonhando em ser advogado ou médico. Nada. Policial. E segundo os soldadinhos de cera com ternos de mil reais, corrupto, vergonha da instituição. Pois eles vão é gostar quando algum outro policial imbecil achar meu cadáver – tomara que já esteja fedendo que é para o infeliz, pelo menos, sentir náusea e vontade de dar com os burros n’água – porque assim vão poder desfilar aquelas caras barrocas bem mais tranqüilas. Perdi a parada. Não vou ficar por aqui quando a música e a festa – que nem o Elvis no meu som – acabaram.
Saio do carro só para fuçar o ar noturno – sempre gostei da noite, dos cantos escuros, do sei-não-sei que só a noite sabe nos dar – e também para respirar fundo. Pensa que é fácil, compadre? Pensa que é assim, decide e pronto, já vai apertando o gatilho? Não é não, compadre. É minha cabeça, são os meus miolos, é a porra inteira da minha vida. Se pelo menos eu me sentisse, lá dentro, no coração – sei lá se é mesmo no coração que se sente essas coisas – culpado, envergonhado, arrependido, seria até bem fácil. Mas não sinto nada. Só sinto que fiz o que devia fazer e aliviei este mundo de um monte de baratas e lacraias que andam em duas pernas e ganham rios de dinheiro. E cobrei minha comissão.
Enquanto me preparo para voltar para o carro, vejo outro veículo, tipo caminhonete, entrar no acostamento a uns duzentos metros atrás da lingüeta de terra em que estacionei e se aproximar de mim. Praguejei, achando que podia ser algum colega escroto que tivesse na minha cola por ordem da Corregedoria. Vai ver aprovaram alguma lei proibindo corrupto de se matar. Recuo para debaixo das árvores e me deixo encobrir pelas sombras negras. O carro quebra para a direita e para a uns cinqüenta metros de onde estou. Um garoto de uns oito anos salta pela porta do passageiro e o motorista, um tipo alto, corpulento, cabelos crescidos e barba rala na cara quadrada e morena, desce detrás do volante e se aproxima do menino, praguejando. Chama o garoto de ‘idiota’ depois de ‘maricas’ e segura o braço dele – magrinho, frágil – e o sacoleja como se fosse feito de pano. O menino choraminga e tenta se safar. Aí o grandalhão empurra-o para umas moitas à direita do carro, ordenando com desprezo: Mija logo, que eu to atrasado, porra!.
Talvez se aqueles caras legais que chutaram meu rabo e disseram horrores de mim no rádio, nos jornais e na televisão, estivessem ali ao meu lado, escondidos na penumbra de uma noite anônima, eles compreendessem. Aposto que iam cair em si e perceber que anda tudo errado, as mesas estão de pernas para o ar faz muito tempo, e nada que a gente faça, nem discurso de honestidade, fé e esperança ou promessa para santo milagroso resolve. O negócio é ficar atento, pegar o que a gente poder pegar, levar uma vida na manha e se puder queimar meia dúzia de vagabundos que inflacionam o equilíbrio mundial cada vez que respiram. Aquele cara é um deles. Precisa ver a caminhonete! Carro que deve custar, por baixo, uns duzentos mil. Novinha em folha! Mas isso não impede o menino de tremer da cabeça aos pés, de não conseguir abrir a braguilha da bermuda, de ficar pálido que nem aparição. E o cheiro de medo que saía dele! Conhece o cheiro? Quem viveu a vida como eu sente esse cheiro de longe. O menino estava morto de medo. Foi então que aquele negócio que às vezes me dá - uma espécie de repuxo nos músculos do pescoço, um calor úmido nas virilhas e aquela saliva que vai se juntando debaixo da língua, grossa e ressecada - fez que eu pegasse a Luger e me aproximasse do grandalhão, a pistola já no rumo da testa dele. O menino tremia a um canto, a bermuda abaixada, mas nada do som típico do jato de urina batendo nas folhas do matagal. Medo demais faz isso. Anda logo, porra! - ele gritou de novo. Foi então que me viu. Não sei se me viu ou viu o cano da Luger. No fim, dá no mesmo. Dei o primeiro tiro. Não pegou na testa, eu devia estar destreinado, mas arrebentou o ombro direito, o fez baquear para trás, a cara apavorada, a voz brava agora fininha, parecendo a de uma menininha de colégio, pelo amor de Deus, cara. Eu pensei até em dizer a ele que não perdesse tempo, que Deus, sem chance, não amava ele de jeito nenhum. Preferi disparar de novo. Desta vez, foi bem legal. A bala foi em cheio no meio do peito e ele caiu que nem um saco de batata. Agora era só fechar a conta. A terceira bala foi bem na cabeça.
*
O delegado chegou à frente da cela e ficou me olhando como quem olha um monte de lixo. Eu estava sentado no chão, pernas encostadas no peito, a cabeça apoiada na parede, parado que nem uma lagartixa prenha.
‘Que merda que tu fez Ramón! Já não bastava a confusão com a Corregedoria? Você ainda me vai pra estrada e me mata um cara no meio da noite?’.
Olhei para ele. Não o conhecia e de graça não gostava dele. Mesmo assim, falei, em minha defesa ‘Ele maltratou o menino. ’.
‘Caralho! O menino era filho dele. Tá ouvindo? Você deixou o menino órfão!’ – e ele meneou a cabeça, como se eu fosse alguma espécie de paciente terminal prestes a bater as botas.
Não desanimei e retruquei com serenidade:
‘Ele não podia tratar o garoto daquele jeito. Não podia. ’.
Ele não falou mais nada. Só golpeou as grades, fazendo-as tremer e foi embora. Dane-se. Como se eu tivesse me lixando pra agradar aquele otário. Vai ver ele deve ser igual ao falecido, gosta de botar moral em cima dos filhos, fazer os bichinhos se tremer de medo e urinar nas calças. Sorte dele que nesta cela aqui eu não tenho mais a minha pistola, senão a dedetização ia continuar e, o que é melhor, a preços promocionais.
De alguma cela próxima ouço o som de um rádio. Marisa Monte cantando Dança da Solidão. Marisa Monte é demais! E ela canta certo. Esse mundo de mentira, de faz de conta, do joguinho escroto do dá e recebe, dos risos amarelos, dos peitos de silicone, de Viagras para retardar a decadência, de homens de Deus com rabo e tridente, é uma desilusão e tanto. Quer ser feliz? Compre uma passagem para a Lua ou então vá para um canto na estrada e estoure seus miolos. Isto se puder, é claro, isto se não aparecer algum pequeno demônio pedindo para ser exorcizado da Terra. Aí, bom, você não vai se negar, vai?
Começo a cantarolar a música, arrumando um dueto meio capenga com a Marisa.
E me sinto feliz que nem um superstar!
Conheço muito sujeito tirado à valente que diz a torto e a direito que quem mete uma bala na cabeça é porque é frouxo. Estes tais não sabem de nada. Na verdade, os frouxos são eles. Tem hora na vida que só a morte satisfaz. E se a gente chega a esse ponto, esta encruzilhada em que, de um lado, tem um caminho muito bonitinho e arrumado, mas do qual você foi expulso, e outro onde você só serve para ser pasto de abutres, o melhor é se tocar que nada deu certo e mandar o resto para o inferno. Em resumo, este é o meu caso. Policial com quinze anos de trabalho, condecorações suficientes para encher uma parede e um pontapé pelas costas porque descobriram que sou corrupto. Nem passou pela minha cabeça negar o que os engravatados com cara de bonecos de cera da Corregedoria me acusaram. Não ia adiantar. Aqueles filhinhos de papai não entendem que chega uma hora, depois de tomar tiro, porrada, ouvir xingamento de marginal, e no fim do mês receber uma merreca de grana que não dá nem para uma semana, em que é preciso virar a mesa. Peguei dinheiro, sim. Um tanto aqui, outro ali, tudo grana de traficante miserável, desses que vendem ‘crack’ em porta de escola primária como se fosse bala de menta. Meti também uns balaços neles. Não deixei um só vivo para contar vantagem. Tudo serviço limpo, bala sempre no meio dos olhos, viagem só de ida. Atiro bem. Ia adiantar eu discursar para aqueles otários que, na verdade, eu fiz um serviço de dedetização? Corrupto, eles iam responder. Vergonha da polícia, outros iam fazer eco. Então, dane-se. Minha mulher me largou depois que abriram o processo, que eu fui preso, que minha cara apareceu no Jornal Nacional. Foi morar com a mãe, que é cartomante em Santos. Nem levou em conta que a escola dos meninos – escola particular boa, ensino de primeira -, que a casa de três quartos e os dois carros, um meu e outro dela, foi tudo graças à minha competência como dedetizador. Deve estar lá em Santos – com as roupas que eu dei para ela – tentando arrumar macho e aprendendo a jogar tarô com aquela velha fedorenta. E eu estou aqui, neste trecho quase deserto de estrada, a Luger carregadinha, munição nova, tudo nos conformes para o tiro que vai coçar meus miolos sair direitinho. Encostei o carro debaixo de umas árvores e, dentro da sombra densa da noite sem lua, boto um CD no som do carro, Elvis Presley, cantando Suspicious Mind, música do tempo das festinhas, tempo que eu ficava azarando as meninas e sonhando em ser advogado ou médico. Nada. Policial. E segundo os soldadinhos de cera com ternos de mil reais, corrupto, vergonha da instituição. Pois eles vão é gostar quando algum outro policial imbecil achar meu cadáver – tomara que já esteja fedendo que é para o infeliz, pelo menos, sentir náusea e vontade de dar com os burros n’água – porque assim vão poder desfilar aquelas caras barrocas bem mais tranqüilas. Perdi a parada. Não vou ficar por aqui quando a música e a festa – que nem o Elvis no meu som – acabaram.
Saio do carro só para fuçar o ar noturno – sempre gostei da noite, dos cantos escuros, do sei-não-sei que só a noite sabe nos dar – e também para respirar fundo. Pensa que é fácil, compadre? Pensa que é assim, decide e pronto, já vai apertando o gatilho? Não é não, compadre. É minha cabeça, são os meus miolos, é a porra inteira da minha vida. Se pelo menos eu me sentisse, lá dentro, no coração – sei lá se é mesmo no coração que se sente essas coisas – culpado, envergonhado, arrependido, seria até bem fácil. Mas não sinto nada. Só sinto que fiz o que devia fazer e aliviei este mundo de um monte de baratas e lacraias que andam em duas pernas e ganham rios de dinheiro. E cobrei minha comissão.
Enquanto me preparo para voltar para o carro, vejo outro veículo, tipo caminhonete, entrar no acostamento a uns duzentos metros atrás da lingüeta de terra em que estacionei e se aproximar de mim. Praguejei, achando que podia ser algum colega escroto que tivesse na minha cola por ordem da Corregedoria. Vai ver aprovaram alguma lei proibindo corrupto de se matar. Recuo para debaixo das árvores e me deixo encobrir pelas sombras negras. O carro quebra para a direita e para a uns cinqüenta metros de onde estou. Um garoto de uns oito anos salta pela porta do passageiro e o motorista, um tipo alto, corpulento, cabelos crescidos e barba rala na cara quadrada e morena, desce detrás do volante e se aproxima do menino, praguejando. Chama o garoto de ‘idiota’ depois de ‘maricas’ e segura o braço dele – magrinho, frágil – e o sacoleja como se fosse feito de pano. O menino choraminga e tenta se safar. Aí o grandalhão empurra-o para umas moitas à direita do carro, ordenando com desprezo: Mija logo, que eu to atrasado, porra!.
Talvez se aqueles caras legais que chutaram meu rabo e disseram horrores de mim no rádio, nos jornais e na televisão, estivessem ali ao meu lado, escondidos na penumbra de uma noite anônima, eles compreendessem. Aposto que iam cair em si e perceber que anda tudo errado, as mesas estão de pernas para o ar faz muito tempo, e nada que a gente faça, nem discurso de honestidade, fé e esperança ou promessa para santo milagroso resolve. O negócio é ficar atento, pegar o que a gente poder pegar, levar uma vida na manha e se puder queimar meia dúzia de vagabundos que inflacionam o equilíbrio mundial cada vez que respiram. Aquele cara é um deles. Precisa ver a caminhonete! Carro que deve custar, por baixo, uns duzentos mil. Novinha em folha! Mas isso não impede o menino de tremer da cabeça aos pés, de não conseguir abrir a braguilha da bermuda, de ficar pálido que nem aparição. E o cheiro de medo que saía dele! Conhece o cheiro? Quem viveu a vida como eu sente esse cheiro de longe. O menino estava morto de medo. Foi então que aquele negócio que às vezes me dá - uma espécie de repuxo nos músculos do pescoço, um calor úmido nas virilhas e aquela saliva que vai se juntando debaixo da língua, grossa e ressecada - fez que eu pegasse a Luger e me aproximasse do grandalhão, a pistola já no rumo da testa dele. O menino tremia a um canto, a bermuda abaixada, mas nada do som típico do jato de urina batendo nas folhas do matagal. Medo demais faz isso. Anda logo, porra! - ele gritou de novo. Foi então que me viu. Não sei se me viu ou viu o cano da Luger. No fim, dá no mesmo. Dei o primeiro tiro. Não pegou na testa, eu devia estar destreinado, mas arrebentou o ombro direito, o fez baquear para trás, a cara apavorada, a voz brava agora fininha, parecendo a de uma menininha de colégio, pelo amor de Deus, cara. Eu pensei até em dizer a ele que não perdesse tempo, que Deus, sem chance, não amava ele de jeito nenhum. Preferi disparar de novo. Desta vez, foi bem legal. A bala foi em cheio no meio do peito e ele caiu que nem um saco de batata. Agora era só fechar a conta. A terceira bala foi bem na cabeça.
*
O delegado chegou à frente da cela e ficou me olhando como quem olha um monte de lixo. Eu estava sentado no chão, pernas encostadas no peito, a cabeça apoiada na parede, parado que nem uma lagartixa prenha.
‘Que merda que tu fez Ramón! Já não bastava a confusão com a Corregedoria? Você ainda me vai pra estrada e me mata um cara no meio da noite?’.
Olhei para ele. Não o conhecia e de graça não gostava dele. Mesmo assim, falei, em minha defesa ‘Ele maltratou o menino. ’.
‘Caralho! O menino era filho dele. Tá ouvindo? Você deixou o menino órfão!’ – e ele meneou a cabeça, como se eu fosse alguma espécie de paciente terminal prestes a bater as botas.
Não desanimei e retruquei com serenidade:
‘Ele não podia tratar o garoto daquele jeito. Não podia. ’.
Ele não falou mais nada. Só golpeou as grades, fazendo-as tremer e foi embora. Dane-se. Como se eu tivesse me lixando pra agradar aquele otário. Vai ver ele deve ser igual ao falecido, gosta de botar moral em cima dos filhos, fazer os bichinhos se tremer de medo e urinar nas calças. Sorte dele que nesta cela aqui eu não tenho mais a minha pistola, senão a dedetização ia continuar e, o que é melhor, a preços promocionais.
De alguma cela próxima ouço o som de um rádio. Marisa Monte cantando Dança da Solidão. Marisa Monte é demais! E ela canta certo. Esse mundo de mentira, de faz de conta, do joguinho escroto do dá e recebe, dos risos amarelos, dos peitos de silicone, de Viagras para retardar a decadência, de homens de Deus com rabo e tridente, é uma desilusão e tanto. Quer ser feliz? Compre uma passagem para a Lua ou então vá para um canto na estrada e estoure seus miolos. Isto se puder, é claro, isto se não aparecer algum pequeno demônio pedindo para ser exorcizado da Terra. Aí, bom, você não vai se negar, vai?
Começo a cantarolar a música, arrumando um dueto meio capenga com a Marisa.
E me sinto feliz que nem um superstar!