O Covil dos Inocentes (Cap. 1)
Morar no escritório nunca é uma opção. Ninguém gosta de misturar vida profissional com vida pessoal, não que eu tenha tido vida pessoal, ultimamente.
Como Silvana descobriu que eu estava em meu gabinete, àquela hora da noite, é difícil determinar. Talvez ela estivesse passando na rua lá embaixo e tenha visto a luz acesa; mas o mais provável é que o desespero a tenha feito tomar uma decisão sem sentido, porém, que gerou resultados. Era meia-noite quando a silhueta surgiu na vidraça opaca, onde meu nome insistia em estar gravado pelos últimos seis anos.
Ela bateu na porta e não aguardou resposta. Entrou.
— Desculpe-me incomodá-lo esta hora, Vico, preciso de ajuda.
Silvana não era uma mulher de fazer cerimônias, pelo menos não na cama. Anos podem afastar duas pessoas, mas não a ponto de fazê-las parecerem completos estranhos.
— Não é incômodo. — pus a garrafa de conhaque de lado e me sentei no sofá que me servia de cama.
Ela estava maravilhosa, vestido preto e seios saltando para fora do decote, o cabelo mais louro do que nunca
— As coisas não andam fáceis para você, hein... — ela murmurou.
— Parece que os problemas do mundo desapareceram nos últimos meses. — respondi, e, para mim, era uma verdade. Há três meses não investigava caso algum, nem mesmo um mísero adulteriozinho; era como se todos os cornos houvessem se reconciliado com as esposas, e todas as crianças desaparecidas houvessem saído de seus esconderijos em poços. O aluguel atrasado redundou em despejo; o sofá no escritório era melhor que a sarjeta, mas o dinheiro do conhaque nunca faltou. — Meio tarde para contratar os serviços de um detetive. — ri com um desdém que não me convenceu, não poderia esperar que a convencesse também.
— Não vim contratá-lo. — ela respondeu, meu sorriso desapareceu.
— O que quer, então?
Silvana hesitou, olhou ao redor e, sem convicção, disse — Procurava um lugar para passar a noite.
Também olhei ao meu redor. Até poderia deixá-la dormir aqui, mas isto significaria dormir no chão, ou sentado. Estendi os braços, como se perguntasse “Aqui? Aonde?”
O escritório estava uma zona: nem se o olho dum furacão houvesse rodopiado sobre minha escrivaninha haveria tanto estrago, minhas anotações todas espalhadas, a máquina de escrever soterrada sob papel e garrafas vazias de Hennessy, o chão imundo, sem saber o que é uma vassoura há mais de ano.
— Entendo. — Silvana estava arrependida.
— Se quiser ficar, podemos dar um jeito. — eu disse, e, inevitavelmente, esta frase tinha conotação sexual. Não era minha intenção, mas o decote de Silvana me tirava do sério.
— Posso ao menos deixar algo com você? — ela perguntou, desconfortável.
— Não costumo fazer este tipo de favor, mas, para você, abrirei uma exceção. — ela me entregou, então, um embrulho.
— Cuide disto para mim, Vico, caso alguma coisa aconteça comigo.
Ri do clichê. Nove em dez pessoas que pensam estar em perigo não passam de paranóicas. Lancei o embrulho no interior duma gaveta.
— Não se preocupe, isto estará seguro. E você, provavelmente, também.
Ela me fitou com medo.
— Ou não?
— Tenho de ir, Vico. Obrigada por seu tempo.
E Silvana desapareceu porta afora e escada abaixo. Acompanhei-a, através da persiana, enquanto ela cruzava a rua e tomava um táxi. Que mulher fascinante, desfilando em salto alto e vestido semitransparente. Fui estúpido quando lhe recusei pouso, teria sido uma noite e tanto, mesmo que eu acordasse moído após dormir no chão.
Não consegui descansar. A lembrança da inusitada visita de Silvana me atormentava. Ela era uma mulher de fibra, porém, estava sensivelmente abalada, tinha medo. Seria um medo justificado? Não teria eu errado ao ignorar seus temores? A incerteza me remoia e, quando o telefone tocou, tive certeza de que algo estava errado. Ninguém liga para outra pessoa às duas da manhã se não for algo sério. Era Silvana.
— Vico, estou com medo! Você pode vir até aqui? Por favor. — Silvana demonstrava estar mais aterrorizada do que antes. Isto bastou para que me levantasse, lavasse a cara e corresse para o hotel onde ela estava hospedada. Paranóia ou não, a moça precisava de companhia.
O hotel era um pulgueiro, nada apropriado para Silvana, a notória amante de Giuseppe Carregno, o chefão da máfia italiana da cidade. Imaginei que o medo dela devia-se a alguma briga com Carregno. Ela devia ter fugido durante a noite e, agora, temia que os capangas do carcamano botassem as mãos nela e, quando ela estivesse novamente na presença de Carregno, da surra que levaria dele. Natural, eu também teria medo se fosse mulher, ainda mais se fosse mulher de quem ela era.
Não havia ninguém na recepção, por isto, subi sem ser anunciado. Terceiro andar. A porta do quarto estava entreaberta, bastante inusitado para quem está com medo.
Espiei pela fresta e vi um corpo nu, estendido sobre a cama.
Saquei meu revólver. Ninguém haveria de estar lá, eu tinha certeza, mas não custava nada ser precavido.
Entrei com cautela; na cama, Silvana jazia inerte. Vasculhei o quarto e, realmente, não havia mais ninguém. Então, fui verificar os sinais vitais de Silvana.
Uma das mulheres mais lindas que conheci, mais sexy, mas completamente desprovida de senso do perigo, estava morta.
(Para ler a continuação...)
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