VILA SEM NOME

VILA SEM NOME

Há muitos anos, muitos mesmo, que já não lembro quantos, acho que foi por volta de 1960, lá em Bagé, floresceu e cresceu a Vila Sem Nome. Nascida à beira de um riacho, sua primeira casa, se é que aquele pequeno barraco de paus tortos e lona poderia ser chamado de casa, foi montada por TINOCO. Ninguém sabia nada dele, nem de onde veio muito menos sua família ou amigos, pois ninguém o seguia, nunca. Diziam também que ele furtava algumas provisões nas casas de famílias mais lá da cidade. Falando mais claramente, Tinoco furtava galinhas nos galinheiros. E assim ia levando a vida. Magro, roupas rasgadas, barba crescida, botinas velhas. Aparentava ser um mendigo. Criava alguns cães. Ás vezes caçava bichos nos banhados, comida para ele e para os cães. Cozinhava num fogo de chão próximo do barraco, esse mesmo fogo servia para se aquecer nos frios mais densos. Duas panelas de ferro fundido, uma colher, um garfo e a velha faca, que ele afiava e guardava sempre na cinta. Sujeira não lhe faltava. Dentro do barraco uma profusão de cobertores velhos, casacos puídos, sacos e colchões , pulgas saltavam do chão. Perto da porta, acumulava-se uma quantidade enorme de garrafas de canha, vazias. Ao lado de Tinoco sempre havia uma garrafa cheia, ou pela metade, conforme fosse o dia.

Durante o dia Tinoco permanecia dentro de seu barraco dormindo, saía perto do meio-dia, fazia fogo e aquecia o que comer, voltava a dormir. Quando a tarde começa a cair ele saltava do ninho, tomava um gole forte e descia até o riacho, lavava a cara, alisava a barba e o cabelo, bebia um pouco d’água e voltava. Pegava um saco, enrolava e dirigia-se a passos lentos na direção das outras vilas, por vezes ia ao centro. Perambulava por aí até que a noite se aquietava. Quando já havia visto tudo e sabia o que fazer, então escolhia uma residência, a maioria tinha galinheiros, ficava à espreita até estar certo de que não seria pego. Passava pelas cercas com facilidade e chegava ao galinheiro. Com cuidado subtraía o que podia de gordas penosas e ia embora.

Com o saco nas costas, Tinoco se esgueirava pelas ruelas escuras na direção da casa de um receptador, localizada depois de um arvoredo cerrado, e onde tinha um bolicho. Entrava no galpão e esperava. Dali a pouco ouvia a pergunta.

-Quantas? Tinoco respondia de acordo com a situação, o receptador lhe pagava uns trocados e ele ia embora, deixando o saco com galinhas num canto.

Pois o tal receptador era João Baralho, apelido dado por parceiros de carteado, jogo de sua predileção.

João Baralho era um conhecido calaveira . Era um homem retaco, com abdômen avantajado, bigode grande e calvo até o meio da cabeça. Orelhas grandes onde colocava um lápis. Gostava muito de jogo de cartas, mas arriscava também um jogo de osso e, bem escondida nos fundos de sua casa, mantinha uma pequena cancha. Diziam que era um cara perigoso, de forma que lá não iam senhoras, nem crianças, a frequência era de homens. Comprava tudo que lhe oferecessem, não perguntava a origem. Ele não tinha esposa, nem filhos.

Desta forma, Tinoco viveu alguns meses sossegado, em seu barraco à beira do riacho. Saía apenas para praticar seu “ofício”. Certo dia, porém, acordou-se com barulhos e foi olhar. Era um grupo de pessoas que descarregavam tábuas e telhas, abriam buracos na terra e colocavam moirões. Eram novos moradores. Depois vieram outros e, quando Tinoco se deu conta estava rodeado por muitas pessoas. Ele não estava acostumado com isso. Era um solitário. E como faria seus furtos? Suas idas e vindas furtivas? Ficou pensativo. Mas mesmo assim continuou ali. Em poucos dias a pequena vila cresceu. Isso atraiu a Polícia. As viaturas começaram a passar ali umas duas vezes por semana, no mínimo. Alguém colocou uma tábua como balcão e começaram a vender cachaça, crianças brincavam por toda a parte e davam mergulhos barulhentos no riacho. Gritarias. Os cães de Tinoco latiam muito. A situação não estava boa. Às vezes ao longe ouvia tiros.

Mas a vida continuava e Tinoco saía quase todas as noites para efetuar seus furtos e, naquele dia encheu dois sacos de galinhas, pois o galinheiro escolhido era grande, tinha muitas galinhas. Não havia cães e ele pode ficar tranquilo. Como de costume seguiu para a casa de João Baralho, entrou no galpão e esperou. O tempo foi passando e João não se manifestava. Quando despontaram os primeiros raios de sol, ficou preocupado. Nada do João aparecer. Deixou os sacos com galinhas num canto e foi embora. Deitou e dormiu. Foi acordado a golpes de cassetetes e vários policiais a seu redor, derrubam seu barraco, tocaram fogo em tudo e o carregaram a ferros para um Jeep. Perto do meio-dia estava na Delegacia, em uma cela imunda. À tarde foi tirado de lá, perguntaram algumas coisas que não respondeu e entrou numa roda de pau, tapas e botinadas que o prostraram por terra em poucos minutos. Alguém o puxou pela barba. Confessou que furtava galinhas e entregava para João Baralho. Apenas galinhas. O que ele não sabia era que João Baralho já havia confessado seus crimes antes, eram muitos crimes que cometera e dera Tinoco com o seu cumplice em todos. Mas estranhamente João foi solto. Tinoco ficou mais uns dias e também foi liberado. O que fazer? Não tinha mais seu barraco, seus trastes. Então Tinoco nunca mais foi para os lados do riacho. Não existia mais o seu barraco. No local já se formara uma vila, sem nome.

Caminhou sem destino e chegou a uma fazenda onde arrumou serviço e lá permaneceu. O patrão gostou dele, deu-lhe roupas novas, botas , um chapéu e um cavalo.A fazenda tinha muitos cavalos. Passaram-se alguns meses. Tinoco nunca esqueceu de João Baralho, passava os dias remoendo as mágoas enquanto trabalhava. Juntou todo o dinheiro que recebeu. Certo dia disse ao patrão que iria embora.

-O cavalo baio então é um presente meu, pode levar. Disse o patrão.

Agradeceu, encilhou o cavalo e foi embora. Seguiu para a cidade, pelos seus cálculos chegaria na casa de João Baralho à noite. Apeou nos fundos de um potreiro, sentou-se e esperou. Quando tudo era só silêncio, Tinoco então levantou-se calmamente e verificou o fio da faca. Estava decidido. Dirigiu-se até a casa de João Baralho, entrou no galpão, empurrou uma janela, estava só encostada. Tinoco pulou dentro da casa, silencioso como um gato. Foi verificando peça por peça até chegou num quarto onde havia uma fraca claridade. Era ali. Ouviu e olhou bem. Era ele. Reconheceria João Baralho até na mais profunda escuridão. Entrou decidido. Tapou a boca de João Baralho num golpe certeiro da mão esquerda e lhe disse:

-Ladrão de tudo, não. Sou ladrão de galinhas.

Ato contínuo, Tinoco lhe cortou a garganta num golpe certeiro. Retrocedeu em seus passos, saiu pela mesma janela por onde entrara, atravessou o potreiro, montou em seu cavalo e despareceu.

A morte de João Baralho nunca foi elucidada.

A vila à beira do riacho foi batizada pelo povo como Vila Sem Nome. Diziam lá, que certa feita um cavaleiro, de barba longa e grisalha, vestido de preto, lenço vermelho e chapéu preto, montando um cavalo baio bem encilhado, passou pela vila, esteve naquele barraco em que haviam feito um balcão de uma tábua, pediu uma canha, bebeu, pagou e foi embora.

drmoura
Enviado por drmoura em 08/07/2013
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