O vinho mais caro da terra(conclusão)
No início de carreira Roberto trabalhava sem auxiliares;e dizia para si mesmo que fazia isso para economizar.
A verdade,porém,era outra:um individualismo extremo impedia que ele delegasse à alguém a mínima tarefa que fosse numa investigação.
A experiência adquirida ao longo dos anos o convenceu a mudar de atitude.Ele agora tinha uma equipe,e tirava o máximo proveito disso.
Mais uma vez essa decisão mostrou-se acertada,pois Nicolas identificou em pouco tempo o homem das fotos,que se chamava João Vitor de Miranda.
João fora cabo paraquedista.Na sua ficha,constava que era exímio atirador e karateca brilhante,tanto que competia pela brigada em torneios da arte marcial.
__Isso é muito comum__observou o Hacker,enquanto teclava__esses caras são da elite militar,especializados em combate e com inúmeros cursos.Quando saem do serviço militar ficam sem perspectiva de emprego e acabam sendo cooptados pelo crime..
__Calma__ponderou Roberto__Nós não sabemos ainda se ele é um...
Nicolas interrompeu a fala do detetive pedindo que ele olhasse a tela do pc.Uma reportagem de um jornal carioca de dois anos atrás mostrava a foto tirada numa favela carioca com uma teleobjetiva.Nela se via nitidamente João vitor segurando um fuzil e tendo ao lado um homem com um binóculo nas mãos.
__Ele foi identificado como segurança e armeiro do tráfico__explicou Nicolas__Aqui diz também que seu paradeiro é desconhecido desde a implantação da UPP no morro comandado pelo grupo dele.
__Isso é que é histórico__constatou o detetive__Ex- paraquedista,atirador de elite e karateca.Não é um sujeito para se bater de frente.
__Vamos largar o caso?__perguntou Randhir,com os olhos arregalados.
__De jeito nenhum!Quero aqueles sessenta mil!E vocês também,não?
Os dois balançaram a cabeça afirmativamente,embora não estivessem tão certos disso.
__Tem mais uma coisa__ disse Nicolas,apontando novamente para o visor__Olha essa foto antiga de um treino físico dos paraquedistas que eu consegui acessar do arquivo da brigada.
A foto mostrava um pelotão de jovens correndo de uniforme camuflado,fuzil nas mãos e calçando coturnos marrons,marca registrada dos paraquedistas.Até aí tudo bem,mais uma foto de milicos correndo;mas a surpresa era que,na primeira fila,liderando a tropa,lado a lado,estavam João vitor e Mauro Antunes.Apesar de menos anabolizado,aquela cara de maluco era inconfundível para Roberto.
__Fechou!__O detetive bateu com o punho na mesa__O desgraçado conhecia o João do serviço militar,serviu com ele.Quando soube da garrafa rara do tio,propôs o roubo ao bandido,que estava sem "emprego" na ocasião.
__Faz sentido__concordou Nícolas.
__É claro!__continuou Roberto,entusiasmado__E digo mais;foi o João o autor do tiro que matou Jairo.Daquela distância,só acertaria o alvo alguém muito bom...Agora temos que localizá-lo.
__A polícia ignora seu paradeiro__informou Nicolas, invadindo mais uma página que deveria ser restrita.
__Vamos interrogar de novo a Salustiana e monitorar o Mauro;o João vai procurá-lo em algum momento__propôs o detetive
__Se já não procurou__o indiano fez uma expressão de desânimo.
__Não acredito.Eles estão deixando as coisas esfriarem.Além disso,uma garrafa tão cara assim não se vende da noite para o dia.Eu aposto que ela ainda está malocada em algum lugar aqui por perto.Randhir,Vem comigo até minha casa.Vou pegar uma coisa lá e depois vamos juntos falar com a dona Salustiana.
O detetive fez exatamente isso.Passou em casa,pegou sua Beretta e rumou para a casa da empregada.
Encontraram a residência fechada,com todas as luzes apagadas.
__Vamos checar.__disse Roberto,enquanto saía do carro.
Tocaram a campainha,bateram palmas e nada.Uma vizinha da casa ao lado abriu a janela e perguntou ao detetive:
__Vocês estão procurando a Salustiana?
__Estamos sim;a senhora a viu?
__Hoje de manhâ.Ela estava meio adoentada,não foi nem trabalhar.
__Ela está em casa?
__Não.Umas duas horas atrás o sobrinho passou aqui e levou ela ao médico!
Os dois entreolharam-se,temendo o pior.Roberto agradeceu a informação e a dupla voltou ao carro .
__E agora?__perguntou Randhir
__Agora vamos seguir o Mauro,como eu disse que faríamos.Tenho o palpite que,mesmo machucado,o imbecil vai na academia esta noite.Esses marombeiros não conseguem ficar longe dos ferros por muito tempo.
Eles ficaram de tocaia na rua da academia e foram recompensados.Por volta de nove horas da noite,com um curativo no nariz,Mauro apareceu.Veio andando e tinha uma bolsa a tiracolo.Ficou na academia até as dez e meia.Quando saiu,um carro importado com insulfilm o apanhou na porta.
__É agora.Aperte o cinto__ordenou Roberto ao auxiliar
Seguiram o carro até o bairro de Madureira.Os suspeitos estacionaram o veículo numa rua próxima a favela da serrinha,região dominada pelo tráfico,depois entraram em uma casa de dois andares que ficava no sopé do morro.Roberto parou o carro a uma distância segura e aguardou.
Minutos depois,um outro carro,também insufilmado, chegava ao local.Dois homens tipo segurança de boate saltaram.Um deles abriu a porta da frente da casa e ficou ali,monitorando a rua,enquanto o outro abriu a porta traseira do veículo e tirou de seu interior,para espanto dos dois,o sommelier.Os três entraram na casa rapidamente.
__Liga pro inspetor,sahib__falou Randhir,sem tirar os olhos do carro.
Roberto procurou o celular primeiro nos bolsos,depois no porta luvas do carro,até reconhecer que havia deixado o aparelho em casa quando fora buscar sua arma.
__Me empresta o seu,Randhir.
O indiano entregou o celular para Roberto,que após uma tentativa de discagem praguejou:
__Essa bosta tá sem carga!__e jogou o aparelho no colo do ajudante,que fez um muchocho de contrariedade__Eu vou naquele orelhão ali.
Roberto saiu do carro e foi até o único orelhão da rua.Para sua decepção mas não surpresa,o fio do fone estava partido.
__Merda!__disse ao entrar no carro__Não temos como ligar...Randhir;eu quero que você ache o telefone mais próximo e ligue para o Murilo,entendeu?
__E você?
__Vou ficar aqui vigiando.Eles podem sair com o Sr.Wallace a qualquer momento,e não sabemos o que pretendem fazer.
Randhir foi procurar um orelhão que funcionasse.
Roberto permaneceu no carro por exatos cinco minutos,quanto ouviu um barulho de tiro vindo de dentro da casa de dois andares.
Saiu do veículo com o coração acelerado e aproximou-se cautelosamente do muro da casa.Tudo era silêncio.Foi quando reparou que a residência vizinha possuía uma placa de aluga-se no pequeno jardim de frente.Estava vazia.
Sem pensar,ajeitou a Beretta por dentro da camisa e pulou o muro,que não era muito alto.Quando tocou os pés no chão,já dentro da residência,sentiu as costelas doerem,sem falar no local da cirurgia,que repuxou bastante.A dor no olho esquerdo ele nem levava mais em conta,apenas procurava suportá-la.
A casa ocupava o centro do terreno.Do lado direito de quem entrava,existia uma pequena garagem,suficiente para um carro apenas,limitada pela parede frontal da casa.Do lado esquerdo,um pequeno portão de madeira que ia só até a cintura separava a parte da frente da residência da parte de trás.
Levantou o trinco,sacou a beretta e avançou até os fundos,vislumbrando,apesar de escuridão, um quintal cheio de árvores. Ali,encostou o ouvido no muro tentando escutar alguma coisa.
Logo depois do gesto,ouviu uma discussão vinda da casa ao lado.Identificou as vozes do Mauro e do sommelier.Outra voz,que ele intuiu ser do paraquedista,misturava-se ao falatório:
__Não foi isso que nós combinamos!__voz do Mauro,extremamente nervosa.
__Você tá falando demais,playboy!Cala a boca!O próximo tiro não vai ser mais de aviso!__voz não identificada
__Fique calado Mauro!Deixa que eu falo!__voz do sommelier__Eu pago o que for preciso para você nos libertar.
__ Não vai ser preciso seu wallace__a voz agora era de Salustiana__ele vai deixar o senhor ir embora em paz e vai devolver a garrafa
__Nem que o inferno congele tia!Estou precisando de grana,sacou?__ Roberto concluiu que era a voz do João
__Maldito!__voz de Salustiana
__Não me chame assim!__voz de João
Um barulho de alguém sendo esmurrado e um grito abafado de mulher.
__Pelo amor de Deus!Ela é sua tia!__voz do sommelier
__Era!__voz do João
__Eu vou quebrar a sua cara seu fdp!__Voz de Mauro,seguida de ruído de luta corporal e de um tiro.Gemidos.Grito de mulher
__Meu sobrinho!__voz do sommelier,em desespero.
Esquecendo todas as regras do bom senso,o detetive resolveu entrar na casa e ajudar seu cliente,embora não tivesse a menor idéia de como faria as duas coisas.
Olhou para o quintal e reparou que uma frondosa mangueira entrelaçava os seus galhos com uma jaqueira do terreno vizinho.Esta,por sua vez,projetava seus galhos quase dentro da varanda sem janelas que ficava no segundo andar do cativeiro,e duas enormes lâmpadas fluorescentes colocadas no alto de dois postes iluminavam o seu quintal,de maneira tão intensa que parte da luminosidade atingia a casa em que estava Roberto.
Ele colocou a Beretta na cintura e escalou a mangueira,alcançando os galhos da jaqueira logo depois.A dor nas costelas era quase insuportável,mas decidira que iria até o fim naquela investigação.
Enquanto se arrastava sobre os galhos da jaqueira,viu que um casal de rotweillers patrulhava o terreno abaixo,mas,para sua surpresa,nenhum dos dois parecia interessado nele.Logo descobriu o motivo:a fêmea estava no cio,prestes a aceitar a cobertura do macho,que aconteceu no exato momento que ele conseguia pisar na varanda.
Extenuado pelo esforço,o detetive ficou agachado por alguns segundos;depois respirou fundo,sacou a arma e caminhou até a escada que levava ao andar de baixo do imóvel.Em silêncio,procurou ouvir a conversa dos marginais:
__Como você pôde matar o Jairo?!__falou salustiana,chorando muito.
__Ele ia roer a corda!__respondeu João__Me ajudou a roubar a garrafa sabotando o gerador da casa e depois teve uma crise de consciência!Ia se entregar e me entregar!Era um mané;igual a senhora!
__Mas como vocês fizeram pra acabar com a luz da rua?__O sommelier falava com um fio de voz
__Bastou um moleque precisando de dinheiro com uma pipa de rabiola de papel laminado.Por cinquenta paus o garoto pôs o papagaio no alto e deixou a rabiola deitar nos fios da rede elétrica da sua rua,fechando o curto...BUM!!__a voz sarcásfica imitava o barulho de uma explosão
__Eu fiz de tudo para você sair dessa vida,meu sobrinho...Paguei seus estudos...rezei pra você tomar jeito...__ lamentou a empregada.
__O que vale é grana no bolso tia,o resto é resto...Galera__olhou para os comandados__vamos apagar todo mundo e sair daqui
Enojado com as palavras do ex-militar,Roberto se preparou para descer a escada e fuzilar os marginais aproveitando o elemento surpresa.Se não fizesse isso,todos morreriam.
Quando ia descer,sentiu uma mordida na sua perna esquerda na altura do tornozelo,forte o suficiente para arrancar-lhe um grito e o fazer deixar cair a beretta nos degraus da escada.Esquecendo-se por um segundo dos bandidos,olhou para o chão ao lado dos seus pés e viu o autor da agressão:um jabuti enorme balançava de um lado para o outro a cabeça esticada para fora do casco marrom com manchas amarelas.
Ao se virar para tentar apanhar a arma encarou um dos capangas,que lhe apontava uma pistola e segurava a beretta na outra mão.
Pouco depois estava no andar de baixo junto com os outros reféns.
__Essa é boa!Os cachorros não te pegaram,mas você não escapou da tartaruga__riu João,num claro deboche,enquanto examinava a beretta__a dona dessa casa era uma escrota mesmo!Criar uma tartaruga...Mas apesar de não prestar pra nada,ela me ajudou mais do que os cachorros,que só sabem cagar e trepar...
__Temos que levá-lo ao hospital!Por favor!Em nome de Deus!__o sommelier interrompeu a fala de João,enquanto amparava o sobrinho desfalecido,que sangrava muito.
__Daqui vocês só saem para a cova!Além do mais,esse monte de estrume não serva pra nada mesmo.Não vai fazer falta.
__Maldito!__Salustina mais uma vez amaldiçoava o sobrinho
Em resposta ao insulto João atirou no pé da tia,que caiu no chão gritando de dor.Logo depois o bandido deu a ordem:
__Agora vamos queimar todos os arquivos,pessoal!
Os bandidos sacaram as armas e apontaram para os reféns;mas antes que atirassem,uma saraivada de balas estilhaçou o vidro da janela da frente e atingiu um dos capangas na cabeça.Raptores e reféns jogaram-se no chão enquanto mais balas atravessavam a sala.João e o capanga que não fora atingido rastejaram até a janela para tentar ver de onde vinham os tiros.Aproveitando a confusão,Roberto apanhou sua beretta que caíra das mãos do ex-militar e atirou no capanga restante,matando-o.Antes que conseguisse atingir o paraquedista,o detetive foi atingido no ombro esquerdo por uma das balas perdidas e caiu.Quando tentava se recuperar do choque,sentiu a bota de João no pescoço,empurrando-o para baixo e tirando seu ar.O meliante,sem se importar com as balas que continuavam a voar,colocou o cano da pistola na testa do detetive e falou:
__Você quase conseguiu,amigo.Quase..
Roberto fechou os olhos e rezou,coisa que ele não fazia há muito tempo.Um barulho de tiro foi ouvido,mas a bala não saiu da arma do malandro.
Salustiana,apesar de ferida,pegara a arma do capanga morto pela bala perdida e atirou na cabeça do sobrinho,para logo depois desmaiar.
Ao cair sem vida no piso escuro,pode-se ver na nuca do bandido uma tatuagem.Em tinta preta estava escrito: "Livrai-me de todo o mal".
As balas pararam de entrar pela janela.Roberto abriu os olhos e demorou alguns minutos até acreditar que estava vivo.Com dificuldade,empurrou o cadáver de joão para o lado,tirando-o de cima dele.Olhou em volta e viu os dois capangas mortos,Salustiana inconsciente com o pé esquerdo sangrando e o senhor wallace amparando a cabeça do sobrinho desacordado.Uma poça de sangue começava a se formar embaixo do corpo do fisiculturista.O sommelier levantou-se devagar,tomando cuidado para não causar dor ao parente.Depois foi até onde estava o detetive e disse:
__Eu vou procurar ajuda__ao falar, o senhor wallace tocou no ombro do detetive,procurando passar confiança.No momento seguinte,tentou abrir a porta da frente,mas constatou que ela estava fechada sem a chave na fechadura.
__A chave deve estar com algum deles__falou Roberto,apontando para os bandidos__Vê se consegue encontrar um celular no bolso da calça desses fdps!
Depois de procurar um pouco,wallace descobriu um mole de chaves no bolso de joão e dois celulares nos bolsos dos capangas.
__Liga para o detetive Murilo.O número é 99..
__Não liga não!
Uma voz familiar aos ouvidos dos dois reféns ecoou pela sala.Ao virarem-se na direção dela,Roberto e o sommelier deram de cara com Juan.O alfaiate,sempre elegante com sua camisa de seda,calça de veludo e sapato social,segurava na mão esquerda uma pistola com silenciador.Passado o choque,ele iniciou seu discurso:
__O joão e os capangas eu ia matar mesmo.Ele me ajudou no início,quando eu precisava de dinhero para montar meu primeiro atelier.Eu dava as dicas para ele assaltar as casa dos magnatas.O dinheiro a gente dividia...Ele reforçava o caixa da boca,eu investia em novos produtos que encantavam os meus clientes.Genial não?
Os dois reféns nada falavam.Ele continuou
__Quando eu soube da garrafa raríssima,pensei:é a chance de mais dinheiro fácil e de vingança.
__Vingança de quê,meu afilhado?__o sommelier rompeu o silêncio
__Vou fingir que não ouvi essa pergunta.__o tom do alfaiate era sério__Bem;continuando:depois desse último roubo,resolvi terminar a sociedade com meu amigo paraquedista.Ele estava ficando muito saidinho há tempos;queria a maior parte do dinheiro dos golpes e acabaria mais cedo ou mais tarde colocando tudo a perder com o seu excesso de confiança.Convenci o otário a trazer os envolvidos no caso para essa casa e apagar todos.Eu apenas não lhe disse que ele e seus amigos também seriam apagados.Isso não incluía você,detetive.Eu nada tenho contra a sua pessoa. As circunstâncias,porém,tornam necessária a sua morte.
Mauro dá um gemido de dor.
__Por outro lado,esse idiota__o alfaiate apontou o cano da pistola para o marombeiro__já vai tarde.
__Juan!__O sommelier ajoelhou-se aos pés do alfaiate__Eu lhe imploro,nos deixe sair!Você não pode ser assim tão frio!
__Eu vou vingar meu tio!
__Você não Sabe de toda a verdade!
__Já sei o suficiente.Boa viagem aos dois.
O alfaiate rosqueou um pouco mais o silenciador no cano da pistola,como se quisesse ter certeza que o apetrecho não falharia na hora do tiro.Ao levantar a arma para fazer mira,foi surpreendido por Randhir,que apareceu na escada,vindo do andar de cima.O indiano tirou-lhe a arma das mãos com um chute.Os dois iniciaram violenta luta corporal,na qual em pouco tempo a vantagem estava com o alfaiate,que exibia técnica refinada,alternando socos e chutes precisos,nocauteando o ajudante do detetive em menos de dois minutos.
__Com quem vocês acham que o João aprendeu a maioria dos golpes que ele usava nos torneios?__falou enquanto procurava sua arma,dando uma risada característica das pessoas sofisticadas e cruéis,o pior tipo de gente.
__Não me interressa nem um pouco se você é parente do Bruce lee ou do Rambo__falou Roberto,que aproveitara os minutos da briga para apanhar a arma do paraquedista,que caíra perto dele.O detetive,apesar da dor que sentia praticamente no corpo todo,conseguiu acertar o alfaiate na altura do abdômem.
A voz de Murilo,turbinada pelo megafone, invadiu a casa nesse momento:
___Roberto!Você está aí? Você está bem?
Roberto juntou todas as suas forças e respondeu:
__Entra logo!Estamos feridos!
Segundos depois,a porta da frente era arrombada e Murilo entrava com vários policiais.
O tiroteio,Roberto soube depois,fora causado pela invasão dos bandidos de um morro rival na comunidade.
Randhir encontrara um botequim aberto e ligara para Murilo,que encaminhou-se com uma equipe imediatamente para lá.O indiano retornou ao carro e como não encontrou o patrão,deduziu-lhe os passos e entrou,em meio ao tiroteio, na casa vizinha,repetindo todo o trajeto do detetive,menos a parte em que ele era mordido pelo jabuti.O resto vocês já sabem.Espreita,aparição,luta,derrota.
Os policias conseguiram levar Mauro,Salustiana,Roberto e o alfaiate para o hospital a tempo.
O fisiculturista e o alfaiate eram os casos mais graves,e ambos ficaram vários dias no CTI até estarem fora de perigo.
A empregada estava mais ferida na alma,o pé seria fácil curar.
Roberto não chegou a ir para o CTI,mas precisou retirar a bala alojada no seu ombro.Não ficaria com sequelas,mas usaria uma tipóia por um bom tempo.
O sommelier estava arrasado emocionalmente.
Randhir ganhou alguns hematomas e arranhões pelo corpo,mas a dor maior foi por não ter conseguido vencer o alfaiate na briga.Seu orgulho de praticante da luta tradicional indiana estava arranhado.
Roberto apurou depois que Mauro encontrara João ao sair da taverna,logo depois do marombeiro levar a garrafada no nariz.O bandido prometera ajudar o colega de caserna a dar um susto no detetive,nada mais,e marcaram um encontro para mais tarde,na academia em que o fisiculturista malhava.
O sommelier contou ao detetive que fora capturado pelos capangas do criminoso ao ir na casa de Salustiana para conversar com a empregada.
O cativeiro pertencia a uma senhora de oitenta anos que morava ali desde criança e recusava-se a sair,pois não tinha nenhum parente vivo.O bando de João matara a senhora,a enterrara no quintal e tomara posse do imóvel.Os animais da casa,incluiindo os cães e o jabuti, eram da antiga moradora.
A garrafa estava numa pequena adega no escritório particular do alfaiate.
Ao retornar para a avaliação na dermatologista,Roberto deu um susto na doutora.Após a explicação dos acontecimentos recentes e do exame,ele saiu do consultório tranquilo.O local da cirurgia estava cicatrizando normalmente,apesar de tudo.
O detetive recebeu,dias depois, um convite para participar da degustação do vinho roubado.Com todos os salavancos pelos quais passara a garrafa,era de se esperar que o sommelier a abrisse o quanto antes.
No dia combinado,num final de tarde,Roberto e Randhir compareceram à cerimônia.
Somente os amigos mais íntimos do sommelier estavam presentes.
Randhir encantou-se pela substituta temporária de Salustiana.A velha empregada estava de férias e retornaria após esse período.O indiano foi atrás da moça,deixando Roberto só.
Depois dos procedimentos normais para a abertura de um vinho daquela idade,os quais não vou narrar aqui para não aborrecer aqueles que não se interessam pelo assunto,uma pequena quantidade do líquido secular foi distribuida por várias taças.
O primeiro a experimentar o vinho foi o sommelier.Ele fez o líquido girar dentro do cálice de cristal,o cheirou,depois bebeu uma parte e a manteve na boca por alguns segundos,inundando suas papilas gustativas.
Depois de engulir,ele deu a declaração bombástica:
__Senhores;sinto afirmar,mas esse vinho é falso.Não é um vinho ruim,mas definitivamente não é um Château D'y Quem 1811.Eu sinto muito.Vou mandar servir outros vinhos de excelente qualidade para os senhores.
O silêncio que se fez em seguida foi longo.
O sommelier veio falar com Roberto e trazer o cheque com o resto do pagamento.
_Aqui estão os seus honorários,detetive.
Roberto pegou o cheque e não acreditou quando leu o valor:estava dez mil acima do combinado.
__Isso é pela sua dedicação.
__Obrigado mas...__O detetive não conseguia tirar os olhos do cheque__A garrafa é falsa mesmo?
O sommelier deu um suspiro e respondeu:
__A garrafa é verdadeira,o vinho é que é falso...É uma técnica de falsificação muito difícil de ser descoberta,até por especialistas como eu.O falsário consegue uma garrafa da safra antiga em excelente estado e a preenche com outro vinho.Nesse caso,ele até que foi camarada;colocou um substituto de boa qualidade.
__Mas o senhor nem parece abalado...
__Nunca fiz o que faço por dinheiro.Faço pelo amor que tenho pela vinicultura.Não se pode acertar sempre...Além disso,perdi o vinho mas ganhei uma nova chance de me aproximar de meu sobrinho.Ele é meu único parente vivo.
__Fico feliz pelo senhor
__Ele está de repouso forçado.É difícil para ele,acostumado a malhar todo dia.
__Imagino.O Juan..
__Já está na cadeia aguardando julgamento.Vou tentar explicar tudo que aconteceu com Esteban para ele.
__Faça isso..__falou Roberto,não querendo ser indiscreto e perguntar o motivo daquele segredo todo.
O sommelier ficou um tempo calado e depois explicou por vontade própria:
__Esteban estava com Alzheimer na época que fora convidado para o cargo na vinícola.Eu,inclusive,o estava ajudando nas últimas avaliações em que ele participara,para manter sua fama.Ele me pediu para não revelar sua doença,era muito orgulhoso,então inventei uma história que justificasse a sua recusa pelo cargo.O resto o senhor já sabe.
Os três ficaram em silêncio.O sommelier voltou a falar:
__O senhor gosta de ler?
__Menos do que deveria.
__No final do romance"As memórias póstumas de Brás Cubas"de Machado de Assis,o personagem principal,do seu descanso eterno,diz que não teve filhos para não transmitir a nenhuma criatura o legado da miséria humana.Não concordo com ele,apesar de admirar o escritor.Temos que fazer o melhor que pudermos dentro das nossas limitações.É isso que procuro fazer.Aceite o conselho desse velho sommelier,detetive:Faça o melhor possível sempre.
__Eu farei.Prometo.
Os dois se cumprimentaram e o sommelier foi explicar a fraude aos outros convidados.
Roberto ficou sozinho com seus pensamentos.Daria as partes devidas do dinheiro aos seus auxiliares e ao detetive Murilo um agrado.Era o correto e o melhor possível a ser feito.
A tarde caía deliciosamente fresca e ele viu,através das janelas da casa,gaivotas voando pelo céu azul com tons amarelados.
Sentia-se feliz por ter resolvido o caso,apesar da maneira não ter sido tão brilhante como desejava.
Bebeu mais um gole do vinho "falso" e deixou seus pensamentos vagarem soltos.
Queria relaxar.
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Obs.do autor:
Não pude publicar a conclusão domingo passado(29/06),pois fiquei sem internet.
Publiquei outros contos policiais aqui no recanto:
Tigresa(três partes)
Sadomasoquismo(duas partes)
Inexperiência(duas partes)
Boa semana para todos!