Viagem de engradado

VIAGEM DE ENGRADADO

Miguel Carqueija


Com os joelhos na boca e lutando por conservar nas narinas os tubos de respiração fixados a dois orifícios na madeira, Toni Remo distraía-se imaginando que fritava Olavo em óleo, Olavo, o autor da genial idéia de descobrir o misterioso paradeiro dos engradados que sumiam daquela fábrica colocando a ele, Toni, dentro de um.
Tentando afastar as palhas do campo de visão, e utilizando uma lanterna-lapiseira com a mão direita, Toni fitou o relógio em seu pulso esquerdo. Meia-noite em ponto, e há duas horas e meia ele se encontrava encaixotado por cima de um tubo de televisão. Então, nesse momento, Toni ouviu ruídos, passos e vozes iradas. Já estava tão tonto de sono que não conseguiu discernir nada direito, mas em poucos minutos começaram os sacolejões. Logo o caixote começou a sacudir com Toni dentro; evidentemente, estavam sendo erguidos por uma das máquinas. “Céus, lá vamos nós”, pensou Toni. Para onde?
A palavra “frágil”, pintada no exterior do caixote, não pareceu impressionar muito aqueles ladrões notívagos; logo nosso encaixotado herói sentia-se jogado com bem pouca delicadeza para o interior de uma viatura qualquer, provavelmente um daqueles enormes caminhões fechados da Princeton. As consequências foram ligeiramente atenuadas por umas almofadas, que o próprio Toni havia providenciado.
Mas, como é mesmo que se metera nessa literal entalada?


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Evidentemente, quando aquele sujeito da firma aparecera no escritório da Rua Buenos Aires.
— O caso — disse Rozendo, com um charuto entre o indicador e o médio da destra — é que os iconoscópios da nossa empresa estão sendo misteriosamente roubados.
— Mas, puxa, há tantos submarinos por aí? — indagou Toni, admirado.
— Hein?
Olavo tossiu e interrompeu:
— Vou precisar dos detalhes, mas não creio que seja difícil dar um jeito.
— Meu caro, eu entendi que o seu assistente não sabe o que é um iconoscópio. Trata-se simplesmente do tubo de imagem ou válvula receptora dos aparelhos de tv, invenção patenteada por Vladimir Zworykin, o pai da televisão, sábio russo naturalizado norte-americano em 1924. Nasceu em 1889 e patenteou o iconoscópio pouco depois da Primeira Guerra Mundial. Em 1929, já requeria patente da tv a cores...
Toni e Olavo se entreolharam espantados.
— O senhor entende mesmo do riscado! — comentou Olavo.
— Eu vivo da televisão, e interessei-me pelo assunto...
— Mas como é mesmo o caso dos roubos?
— Muito simples: temos um depósito e uma fábrica em Angra dos Reis. De uns tempos para cá os iconoscópios vêm sumindo durante a noite na média de cinco por semana, em dias diferentes.
— E não existe vigia noturno?
— Existe, mas a área é muito grande, e ele tem ordem de percorrer toda a sua extensão. Ultimamente ele tem se concentrado no depósito de tubos, mas acontecem coisas...
— Coisas?
— Ruídos nos outros pontos e ele tem de ir ver; quando volta, sumiu outro tubo. Os roubos aumentaram e até oito engradados por noite estão sumindo. Um absurdo! Nosso prejuízo é imenso. Pusemos até dois vigias, mas creio que eles já estão apavorados, com medo de fantasmas.
— Esses ladrões devem gostar muito de ver tv — disse Toni. Olavo cortou rápido:
— E a polícia foi chamada?
— Lógico, mas ela não adiantou nada até agora. Não são muito brilhantes, entende? Passaram um dia inteiro procurando impressões digitais.

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Toni Remo viajava.
A viagem prolongava-se já há bastante tempo. Toni sentia-se um pouco como o Capitão Vexame (*), embora a Luger lhe desse uma pequena sensação de confiança. O que atrapalhava era que a bexiga começava a incomodar. E não havia jeito: decididamente, o caixote não tinha espaço para um W.C.
Toni suava em bicas. Fazia muito calor naquele engradado mal ventilado. O herói tinha a impressão de ter sido abandonado até pelo anjo da guarda, tamanha era a falta de espaço. “Mas tenho de me manter atento”, pensou. “Precisarei entrar em ação ao final da viagem.”
Finalmente pareceram ter chegado a algum destino. O carro já tinha parado várias vezes, mas dessa vez a parte de trás foi aberta. Logo o herói escutou vozes grosseiras e sentiu-se novamente transportado. A hora de agir seria quando aquele iconoscópio, todo especial, fosse depositado em algum lugar, e sossegasse a agitação em torno.
Um safanão barulhento a mais e Toni Remo soube que suas agruras estavam terminando — pelo menos aquelas. Tinha a impressão de que aqueles sujeitos dificilmente poderiam lucrar com os tubos, após semelhante transporte.
Assim que sentiu o silêncio em torno de si, nosso herói dispôs-se a agir. O primeiro passo era sair do caixote. Havia um meio de fazê-lo, é claro. Toni só tinha que desaparafusar umas tábuas especialmente preparadas, mas embora tivesse uma chave de fenda, o suor nos dedos atrapalhava. Assim, a operação demorou um pouco mais que o previsto. Toni Remo, porém, não podia desistir tão facilmente, e com um pouco de persistência, conseguiu se libertar. Agora era sair sem fazer muito barulho.
Estava na penumbra. Toni, respirando fundo de alívio, moveu-se para fora do engradado, dando adeus ao iconoscópio, sem sentir saudades. Olhou em torno. Não havia ninguém: ótima oportunidade para esvaziar a bexiga! Todos os heróis têm que fazer isso, até o Nick Holmes (**) — ainda que os quadrinhos não mostrem.
A hora da verdade chegara. Toni Remo, pé ante pé, saiu do tosco depósito de paredes escarunchadas, onde se encontrava, passando para um corredor e daí para uma escada suja. Havia vozes vindas lá de cima, mas ninguém à vista. Chegando ao patamar Toni deparou com uma porta entreaberta, por onde vinham as vozes. Tirou a pistola do bolso e pulou para o interior.
— Mãos ao alto, seus ladrões!
Os dois homens olharam-no com susto no olhar. Um deles escrevia sobre uma mesa; o outro, refastelado numa poltrona, deixou cair o cigarro.
— Ladrões?
— Está louco?
— Não tentem desconversar, seus ladrões de iconoscópio! Estão presos! Sua carreira de larápios acabou! Não é à toa que sou Toni Remo, o herói...
O barbudo da mesa parecia indignado, apesar da arma do detetive.
— Que quer dizer com isso? Esses iconoscópios são meus!
— É muito cinismo, mas não adianta! Foi o próprio dono da Princeton quem nos contratou!
— E qual é o nome dele?
— Rozendo, é claro. Você sabe muito bem, pois vem roubando o coitado há semanas.
Começo a ver a luz. Não é, Tennyson?
— Claro! Mais uma do velho maníaco! Mas essa, convenhamos, é demais!
Haveria alguma coisa errada? Toni Remo fitou um e outro.
— O que querem dizer?
— Meu caro senhor, eu sou Amaro Bueno, e este é Tennyson Princeton, sócio principal da Princeton Aparelhos Eletrônicos Ltda. O senhor Rozendo é nosso sócio, mas é meio maluco e vive fazendo brincadeiras idiotas para se divertir. Costuma fazê-las principalmente no dia primeiro de abril, que é hoje.
— Além disso — acrescentou o outro — talvez o senhor não saiba, mas aqui é o depósito de nossa firma, no Rio de Janeiro. Como entrou aqui?
— Depois eu conto. E agora se levantem e me acompanhem!
— Mas...
— Nem mais, nem meio mais! Acham que eu vou engolir uma história dessas? Expliquem isso ao delegado!
— Vai se arrepender — disse Amaro.

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— E me arrependi mesmo — terminou Toni Remo sua triste história.
— E que fez você depois? — perguntei.
— Bem, quando consegui sair da cadeia, onde me puseram por ter prendido gente inocente, tive uma conversa com o Olavo. Queria passar-lhe a maior descompostura pela encrenca em que me meteu, mas ele foi logo dizendo: “Toni, vamos arquivar o assunto. Afinal, eu paguei a sua fiança e posso descontar do seu salário”.
— Mas foi você quem me meteu na encrenca!
— Não fui eu, foi o Rozendo. Ele nos ludibriou. Mas não se preocupe: ele pagou e muito bem. Afinal ele contratou os nossos serviços, não foi?
— Tinha esquecido esse detalhe.
— Ele até me disse que pagava com o maior prazer, pois nunca tinha se divertido tanto. Até colocou aparelhos de gravação no local e gravou a sua conversa com os sócios...
— Tem doido para tudo, mesmo. Mas se ele pagou bem, me dê logo a minha parte. Estou sem dinheiro e ainda tenho que comprar linimento!

(*) e (**) — à época em que essa história foi escrita (década de 1980) o Capitão Vexame e Nick Holmes apareciam em quadrinhos publicados no Brasil pelo jornal “O Globo” do Rio de Janeiro.

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"O estigma do feiticeiro negro" é um romance de fantasia de Miguel Carqueija e Melanie Evarino, publicado pela Editora Ornitorrinco.

Livros virtuais de Miguel Carqueija:

"O fator caos" no Portal Cranik
"A face oculta da Galáxia" na Casa da Cultura
"As portas do magma" (co-autor Jorge Luiz Calife) em scarium.com.br
"A cidade do terror" em contosgrotescos.com.br
"Neblina e a Ninja" no Recanto das Letras


 
Miguel Carqueija
Enviado por Miguel Carqueija em 04/07/2013
Reeditado em 28/08/2017
Código do texto: T4371765
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