O sequestro de Amadeu

O SEQUESTRO DE AMADEU


Miguel Carqueija


A mulher que se apresentou no gabinete de Astérix Falcão era dessas de “interromper o trânsito”, ainda que usasse um costume discreto e até “démodé”, como diriam os esnobes. Astérix, por defesa mental, utilizava uma caneta de base luminosa para rabiscar num bloco à sua frente, na escrivaninha, fingindo estar tomando notas e assim evitando ao máximo os olhares. Pois de qualquer forma as conversas eram gravadas e depois decodificadas eletronicamente, transformando-se em folhas impressas.
— Ainda não avisei o clube, estou apavorada. Não sei o que fazer! Se avisar a polícia, eles o matam!
— Está bem. Esse caso eu vou fazer pessoalmente, porque é muito sério. Não é todo dia que seqüestram um astro do futebol.
Ela torcia e retorcia um lenço nas mãos manicuradas.
— É a maldição da fama. Se dependesse de mim ele não seria um grande astro. É um inferno! Não se tem privacidade, os filhos não têm a companhia do pai, a esposa fica sem o marido... as concentrações... as viagens... até para jogar na Lua... a violência desse esporte... qualquer dia até para Vênus o levam, agora que estão planejando o Torneio do Sistema Solar...
Astérix fitou a mulher, pois seu pensamento estava já formado:
— Há prós e contras em qualquer profissão. Em todo caso a carreira de um jogador de futebol é curta. Logo ele terá mais tempo para a família.
— Isso se escapar dessa com vida, não é? — a mulher fungou ruidosamente.
— Por favor, não sejamos emotivos — Astérix consultou o seu antiquado relógio de pulso. — Você me dá todos os detalhes e um adiantamento de 500 brasis, e nós começaremos a investigar hoje mesmo.
— Ah, não! Não lhe dou um tostão sem que o meu marido apareça!
— Está bem. Vamos colocar a importância numa conta vinculada ao resultado final, com contrato e tudo, existem esses diplomas legais, como sabe.
Não acrescentou que poderia acionar na Justiça o seu direito a ressarcimento por despesas comprovadas de investigação, isso é algo muito polêmico hoje em dia e muita gente não anda enfronhada. Não valia a pena alertá-la.
Elba, afinal, concordou com o adiantamento que foi logo digitado para o Banco Senegalês Virtual, em conta vinculada. Em seguida ela se pôs a narrar o caso em detalhes:
— O Amadeu saiu de casa pelas dez da noite para tomar os seus porres, e não voltou mais. Foi visto no bar do Zé Bacurau às onze e meia, quando já estavam fechando, e saiu de lá dando ziguezagues pela rua. Parece que ficou lá mais de meia hora, uns dez ou vinte caras o viram. Depois que dobrou uma esquina ele não foi mais visto.
— E isso foi quando mesmo?
— Há dois dias, como eu lhe disse.
— E ninguém se comunicou?
— Até agora nenhum pedido de resgate.
— E por que você acha que ele foi seqüestrado?
— E por que não? Ele não é rico? Já tentaram isso antes.
— Quando?
— Há cinco anos... andaram fazendo ameaças, ele ficou sob observação policial, alguns tipos foram presos... em suma, a coisa passou na época.
— Hum. Vou querer saber todos os detalhes, os nomes dos envolvidos, tenho que saber se alguém está solto. E o que diz a polícia do sumiço do seu marido?
— Não lhe falei que não avisei a polícia?
— Ah, é! Desculpe a distração... bem, o sumiço ainda está fresco. Não devem tê-lo morto ainda.
A mulher estremeceu e gritou com histeria:
— Nunca mais repita isso! Ele não pode estar morto! Não pode! Não pode!
— Está bem, esqueça o que eu disse. Me dê os detalhes que faltam. Quais foram os sujeitos presos há cinco anos?


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Naquela noite Astérix e Berinjela Gomes estavam na esquina da Rua dos Mortos com a Travessa das Almas, onde Amadeu fôra visto pela última vez. Astérix contemplava os prédios, postes e fios, os globos de luz e as antenas parabólicas que captavam as transmissões da Cosmonet.
— Eu gostaria de saber — resmungou ele — onde é que esses detetives de ficção, tipo Hercule Poirot, enxergam pistas onde eu só enxergo tralhas...
— Não desanime, Astérix — Berinjela Gomes bocejou ruidosamente. — Se ele veio por aqui, alguém o viu. Há muitas janelas...
— E eu imagino que você está sugerindo que a gente vá de prédio em prédio, perguntando em todos os apartamentos...
— Ora, só aqueles que têm janelas nessa direção!
— Esqueça. Deixa ver se eu localizo a Elba...
Pelo visocelular, Astérix logrou falar com a esposa do futebolista. Esta então confirmou ter recebido a mensagem dos seqüestradores:
— Querem vinte milhões. Imagine, vinte milhões!
— Deram provas de que o seu marido está vivo?
— Ah, sim. Falei com ele, o sem-vergonha...
— Sem-vergonha?
— É claro! Um homem que larga a família para se embebedar tarde da noite... bem merecia...
— Pois bem. Você o viu?
— Não. Ninguém apareceu na tela.
— Você gravou a mensagem?
— Não, eu nem pensei...
— Mas isso era imprescindível!
— Mas então por que você não me instruiu a fazer isso?
— Bem... bem... vamos mudar de assunto. Disseram como querem receber o dinheiro?
— Marcaram um ponto de encontro, sim. Ficaram de ligar para confirmar...
— E você tenciona pagar?
— Em princípio não! Você não descobriu nenhuma pista?
— Eu mal comecei a investigar.
— Lembre-se do dinheiro que estou lhe pagando!
— Não posso me esquecer disso, não se preocupe.
Nesse ponto Astérix resolveu encerrar a conversa, que já lhe parecia irritante, e retornou ao botequim para algumas averiguações. Berinjela seguiu-o com o estado de espírito sombrio próprio dos que andam de noite, após certa hora.
Astérix dirigiu-se ao dono do bar:
— O senhor notou se alguém seguiu o Amadeu?
— Ô raios. Já me perguntaram isso umas vinte vezes.
— Quem perguntou?
— Primeiro a mulher dele, é claro. Depois, como muita gente escutou ela falar, foram passando de boca em boca...
— Já vi tudo. Berinjela, temos um segredo de Polichinelo.
— O que, meu senhor? — disse o homem do bar, admirado.
— Esqueça. Afinal ele foi ou não foi seguido?
— É claro que foi. Uns quatro sujeitos o seguiram. E todos os cinco cantavam “Mamãe eu quero”.
Astérix abriu a boca para falar, mas apenas conseguiu dar um longo bocejo. Só depois perguntou os nomes dos quatro sujeitos. Por sorte o homem conhecia todos. Astérix voltou-se para o ajudante:
— Isso é um dado novo, Berinjela. Eles devem tê-lo seguido até além da esquina.
— Bem, então nós só temos que procurar o Chocalho, o Barril de Chope, o Cara de Muamba e o Diabo da Tasmânia. Só que eu acho que não vai ser fácil achá-los na lista visofônica...


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Quando, dias depois, eles obtiveram os endereços e nomes de todos aqueles desocupados, foram de casa em casa para interrogá-los. Já haviam constatado que os envolvidos na velha ameaça de seqüestro encontravam-se todos em liberdade. Astérix já esperava por isso pois, como ele costumava dizer, “no Brasil não se consegue prender ninguém por mais de cinco anos.” Mas ainda não fôra possível localizar aqueles suspeitos. Enquanto isso os seqüestradores mantinham-se silenciosos.
Primeiramente os detetives foram à residência do Cara de Muamba, situada na Rua Frei Henrique, em Piedade. Uma ladeira de 45 graus ou quase, cheia de ventiladores públicos, pois a região era sufocante. Subindo a bufar, Berinjela reclamou:
— Puxa vida, Astérix. Nós somos ou não somos detetives? Por que é que não andamos de carro?
— Porque o Plano Novo Brasil acabou com o nosso dinheiro, é por isso — respondeu Astérix, de mau humor.
Cara de Muamba não estava. Tinha ido a Santa Cruz, jogar xadrez com os golfinhos treinados. A mulher que atendeu nada sabia sobre o craque desaparecido.
O Diabo da Tasmânia foi encontrado em Quintino, mas afirmou que se havia separado de Amadeu cinco minutos após dobrar a esquina.
— Ele seguiu com os outros — explicou. E não foi possível arrancar mais nada. Estava visivelmente com medo.
Quando porém saíram na vila a filha dele, que os acompanhou até a porta, sussurrou:
— Vão até a casa do Chocalho. Ele sabe onde o safado se encontra.
— Mas... — começou Astérix.
— Schiu! Eu não deixei meu pai tomar parte nessa sujeira. Adeus! Boa sorte!
— Que coisa esquisita, hein, Astérix?
— Tem razão, Berinjela. Como dizia o Trancado das histórias do Guiaroni, “aí tem jacutinga”.
O Chocalho morava na Rua Xavier dos Pássaros, perto da Universidade Gama Filho, e como era cedo para “estacionar” em bares, ainda se encontrava em casa, uma arruinada casa de vila, mas com dois andares, muito anacrônica em pleno meio do século XXI.
— Não, eu não sei onde ele anda — falou da porta, entre dois arrotos.
Astérix resolveu bancar o durão.
— Olhe, eu não quero saber de negativas. Já sei que você sabe onde ele está, o que lhe aconteceu. Se você insistir em negar será pior. Agora deixe-me entrar!
— Olhe aqui...
— Não olho coisa nenhuma. Você está frito, homem. Vai pegar no mínimo quinze anos de cadeia, porque seqüestro é crime federal. E saiba que os presos são frequentemente espancados e torturados. Não queira ir parar na polícia!
Astérix exagerava um pouco, embora conhecendo certos casos de abuso de autoridade, mas queria desconcertar o sujeito para levá-lo a uma confissão.
O Chocalho começou a chacoalhar, isto é, a tremer, por isso Astérix, sentindo-se mais confiante, afastou-o e penetrou na residência, disposto a se plantar lá até obter um esclarecimento. Como não estava sozinho, mas acompanhado pelo Berinjela, tinha mais coragem para coisas desse jaez.
— Senhores, parem com isso! — implorou o Chocalho. — Isso não é legal! Afinal esta é a minha casa!
— E ainda bem que é sua e não minha, porque é bem mambembe — respondeu Astérix, recostando-se num sofanete desconjuntado, esburacado e empoeirado.
— Chocalho, não adianta mais! Isso já foi muito longe e é hora de falar a verdade!
Olharam todos para cima. E lá vinha o Amadeu, de ceroulas e sem camisa, fumando um charuto repugnante.
Berinjela olhou para Astérix:
— Não consigo acreditar! Você solucionou mesmo o caso?
— Espere!
Amadeu veio cambaleando, agarrando-se no corrimão, e chegando ao andar térreo explicou-se, perante a perplexidade dos detetives:
— Sabem como é... às vezes fico farto da minha mulher... eu e os meus amigos fizemos uma grande farra, e a ressaca foi tão grande que eu não tive coragem de voltar. Ela ia me receber com o cabo da vassoura ou o rolo de pastel. Ou pior, ia atiçar o robô-aspirador contra mim. Eu estava tentando bolar a história do seqüestro e da minha fuga.
— E foi para isso que eu trabalhei tanto? — explodiu Astérix.
— Ora vamos, colega — interveio ironicamente o Berinjela. — se isso que nós andamos fazendo foi trabalho...
— Bom — Astérix começou a raciocinar de forma pragmática. — E como é que fica o meu pagamento, a história do seqüestro e etc. e etc. e etc.?
— Só vejo uma solução, seu detetive. Invente que me libertou, que me achou amarrado em algum lugar, que os seqüestradores fugiram. Senão a minha mulher vai me matar e depois ainda me chutam do clube! Sabe como é... a vida de um atleta deve ser mori... mori... como é que é?
— Morigerada – ajudou o Berinjela.
— Isso aí.
Astérix suspirou.
— Oh, está bem. Prepare o cheque. Ou melhor, tem um terminal cosmonet aí? Transfere logo.
— Quanto?
— O meu aluguel, é claro, que vence amanhã e eu estou a zero. E mais uns trocados para pagar o Berinjela e para a manutenção do meu criado-robô... e mais uns seis meses de aluguel como reserva de segurança...
— Olhe aqui, não podia ficar...
— Estou sendo generoso. Berinjela, vamos embora.
— Espere! Eu transfiro! Eu transfiro! Faço qualquer coisa, mas não contem a ela, por favor, não contem a ninguém!
Astérix permitiu-se um sorriso:
— Bom. Mais um dia, mais um tostão ganho nesse ramo honesto. Vamos, rapaz, mostre-me o terminal.

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"O estigma do feiticeiro negro", de Miguel Carqueija e Melanie Evarino - a saga da elfa Gislaine Pétala e seu dragão de estimação - está à venda pela Editora Ornitorrinco e outros pontos da internet.