Ação Penal de um Corinthiano

Essa quem me contou foi o Dr. Baraúna, velho professor da cadeira de Direito Penal da Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo. A matéria somente era ministrada a partir do segundo ano e, para aquele aluno mais apaixonado, não se via a hora de tratar com os crimes, principalmente os sexuais. O assunto era meio tabu. Falar de sexo na escola, ainda que na faculdade, continha um ar de repressão. Mencionava-se a palavra estupro quase que sussurrando. As risadas só não se continham quando eram relatados os casos policiais onde havia “estrupo”, “estrumpo” ou “estrufo” e, às vezes, lamentavelmente, um caso de estupro de verdade. Os crimes de ordem sexual afetam de maneira profunda a dignidade da pessoa, principalmente quando as vítimas são mulheres e crianças. Mas o mestre Baraúna sempre soube ensinar com maestria. Chegava à sala de aula, subia ao tablado onde ficava a mesa e, lá de cima, iniciava a “conversa”, sempre sentado. Antes, ele ligava o seu ventilador portátil de cor azul e já ia logo reclamando do calor. O vento lhe soprava a face e alguns fios de cabelos grisalhos, que ousavam em desafiar a brilhantina, ficavam esvoaçando. Eu, que sempre fiquei de exame oral, pude conhecer o generoso coração do professor. A alguma formulação feita em que a resposta não lhe parecia a mais adequada, lá estava ele cerrando os olhos e fazendo bico, como quem tivesse comido algo e não gostado. Tornava-se um típico lombrosiano. Mais do que depressa, o aluno já tratava de trilhar outro caminho, buscando a correta resposta, até que seu semblante se transformasse em alegria, para que ele pudesse soltar aquela frase conhecida: “ah, bom!” No fundo, o Doutor Baraúna sabia que os seus alunos conheciam da matéria.

Mas vamos aos fatos. Certo dia, não sei qual ano, mas foi bem antes da criação dos Juizados Especiais Criminais e da chamada Lei Maria da Penha, a Dona Maria, diarista muito da trabalhadora, já cansada de tanto lustrar a casa dos seus patrões, resolveu tirar o sábado de folga para colocar em ordem a própria casa. A vida de empregada doméstica não é fácil, trabalha fora o dia inteiro e ainda tem que arrumar tempo para trabalhar em casa sem nada receber. Mesmo assim, conseguiu sair do aluguel e comprou a casa própria. Passava o pano daqui, esfregava dali e, para ajudar, o Seu João permanecia sentado com os pés em cima da mesinha, tomando cerveja e assistindo aflitamente ao jogo do seu “curintia” pela televisão. Para piorar a situação, a casa era pequena e de qualquer canto onde a Dona Maria estivesse poderia vê-lo ali, sentadão. Não sei quem sofria mais. A garrafa já passava dos ¾, enquanto o saco do aspirador da Dona Maria só ia enchendo. Haja paciência... A primeira garrafa esvaziou e o seu João tratou de gritar:

_ Oh, Maria! Traz mais uma cerveja antes que comece!

Lá foi ela buscar. Abriu a geladeira e, pela quantidade de garrafas, previu que aquela tarde não seria diferente das outras. Tudo era motivo. Bebia-se para comemorar a vitória suada ou então para afogar as lágrimas de mais uma derrota do timão. Corinthiano que se preza é assim, não é nada fácil.

Não foi uma, não foram duas, não foram três. Perdeu-se a conta de quantos “oh, Maria! Traz mais uma antes que comece!” se ouviu pela casa. Só sei que o saco do aspirador estourou.

_ Escute aqui João! Que negócio é esse de ficar me mandando buscar cerveja? Oh, Maria! Oh, Maria! E o que é esse tal de “antes que comece”, heim? Vai começar o quê? Essa porcaria de jogo já não está acabando? Não me diga que o seu “curintia” perdeu de novo? Mas você não me presta prá nada mesmo, né?! Nem escolher time sabe. Vai ficar aí sentado, é?! Ajudar que é bom nada. Era só o que me faltava, ser empregada doméstica na minha própria casa!

– Começou...

– Então era isso seu sem-vergonha!

Foi aí que a rebimboca comeu. A Dona Maria não parou mais de elogiar o Seu João. Era xingamento daqui e “pára...” dali, quando mais, um “cala boca...” Mas a Dona Maria não suportava aquela passividade do Seu João, nem mesmo na hora da briga e foi prá cima dele. Não deu outra. O Seu João, que não é bobo nem nada, não quis sair com cara de gato arranhado e tratou de arrumar a cara da Dona Maria que, aquela altura, já parecia com o capeta. Foi uma só, mas certeira, e a Dona Maria apagou.

Alguma vizinha já foi logo tratando de ligar para o 190.

– Tenho uma denúncia. Sim, falo sim. Sou vizinha. Não, não, tá tudo quieto agora, mas eu ouvi tudinho. É sempre assim, o vagabundo bebe e aí, do nada, bate na mulher. Está bem, o endereço é ...

Não passaram vinte minutos e a baratinha já encostou em frente a casa. Os policiais quase não conseguiram entrar com a viatura na rua de tantos que eram os curiosos.

Lá se foram os dois. Podia-se ver pelo vidro traseiro, apertadinhos no banco de passageiros do Fusca, a Dona Maria de um lado e o Seu João do outro. A sirene gritou para que os curiosos saíssem da frente e retiraram-se em disparada, mas ainda deu tempo para que o Seu João pudesse levantar os braços e mostrar seus pulsos algemados para a multidão, como quem quisesse dizer: “olhem só a injustiça que fizeram comigo!” As reações foram as mais diversas, podiam-se ouvir gritos, aplausos, vaias e assovios.

Tarde da noite, a Dona Maria retornou sozinha ao lar. Quase não conseguiu pegar o último ônibus. Ainda havia trabalho a fazer. Que atraso de vida, pensou.

O domingo foi só sossego. Ainda bem que as crianças foram passar o fim de semana na casa da avó. Aquilo tudo só fez aumentar o vazio e a Dona Maria não via a hora de voltar ao trabalho.

Antes, porém, na segunda-feira de manhãzinha, se dirigiu à 27ª DP e logo foi ter com o Delegado de Polícia de plantão.

– Doutor, é o seguinte, eu vim soltar o meu marido.

– Bom dia, dona ... - o delegado, já acostumado a estas situações, vendo a simplicidade nos olhos da mulher e a sua determinação, tentou amenizar a tensão que já se anunciava.

– Maria, eu me chamo Maria, e o meu marido está preso aqui já tem quase dois dias. O nome dele é João. A gente teve uma briguinha sábado à tarde, mas já está tudo resolvido.

– João, não é? Deixe me ver... Aqui está. Lesão corporal, agrediu a esposa. O delegado levantou a cabeça e pode ver melhor o olho esquerdo da mulher que teimava em abrir. Daqui alguns dias seria roxo na certa.

– Dona Maria – disse o delegado em tom sério – o caso não é tão simples assim.

– Eu sei, o senhor não sabe o trabalho que esse homem me dá, mas se ele ficar aqui não vai resolver nada. Aí é que o vagabundo não vai trabalhar mesmo. Vê se pode, comida e bebida de graça. Só falta ter televisão e cerveja na cela!

– Ôpa! Olha lá senhora, mais respeito com a instituição! O negócio aqui é sério!

– Pois é seu delegado, mas eu vim retirar a “queixa”.

– A senhora quer dizer “noticia criminis”, suponho – disse o delegado agora em tom de arrogância.

– “Noti” o quê? Não senhor, eu vim retirar o meu marido mesmo!

– Infelizmente, Dona Maria, não será possível...

– O senhor não está entendendo. O meu marido é uma boa pessoa, o problema é só quando ele bebe. Quem já não teve uma briguinha de casal? A gente se gosta muito e sabe como é, né?

Agora a autoridade se incorporou de vez:

– A senhora é quem não está entendendo. O crime que o seu marido cometeu é de ação pública incondicionada e a senhora não poderá retirar a “queixa”!

A Dona Maria mais uma vez não se conteve e argumentou com a maior indignação do mundo:

– O quê! Mas era só o que me bastava, que país é esse em que o homem não pode bater na própria mulher?!!!

O delegado não entendeu nada e eu nunca mais me esqueci dos ensinamentos sobre a aula de ação penal do professor Baraúna.