O vinho mais caro da terra(Primeira parte)
O odor de pele queimada não incomodou Roberto,que permaneceu imóvel enquanto sua dermatologista removia um pequeno sinal de seu dorso esquerdo com um bisturi elétrico.
__Não molhe por vinte e quatro horas e não tire a bandagem;ela vai cair sozinha__orientou a médica enquanto fazia o curativo
__Fique tranquila doutora__disse ele ao vestir a camisa__ Eu sempre sigo suas recomendações à risca.
__A de usar o protetor solar também?
__Ninguém é perfeito..__Roberto esboçou um sorriso de criança que é pega mentindo.
A médica jogou as luvas numa lixeira e concluiu:
__Concordo.Volte daqui a quinze dias para eu te examinar.
__Ok.
Logo depois,caminhando no meio da multidão que lotava as ruas da Tijuca naquele início de noite,o detetive particular relembrava a visita que um cliente incomum fizera ao seu escritório no dia anterior:
A luz matinal teimava em penetrar por entre as lâminas semi cerradas das persianas.
__O senhor me conhece?
O autor da pergunta estava sentado de frente para Roberto,do outro lado da mesa de madeira escura,e se vestia impecavelmente.O detetive reclinou-se na sua poltrona antes de responder:
__Qualquer um que goste de um bom vinho,como eu,tem a obrigação de lhe conhecer,senhor Wallace.
O homem sorriu,apreciando o elogio;depois enfiou a mão direita no bolso esquerdo do paletó,pegou uma goma de mascar e a colocou na boca.
__Me ajuda a controlar a ansiedade__ justificou
__Melhor do que fumar__emendou Roberto,sorrindo.
O cliente passou a mão esquerda pelo cavanhaque ruivo esbranquiçado,comprimiu os lábios finos,respirou fundo e prosseguiu:
__Detetive;eu vim aqui por que, anteontem,tive minha residência assaltada e fui subtraído de um bem muito valioso.
__O senhor estava em casa?
__Não.Visitava uma feira de novos produtos em Porto Alegre.
O detetive tentou imaginar a quantos eventos como aquele o Sr.wallace ia por ano.Como sommelier número um do Brasil,seu elogio catapultava o preço de qualquer vinho,assim como sua desaprovação era capaz de abalar a mais sólida das reputações.Os vinicultores o abençoavam no primeiro caso e o amaldiçoavam no segundo.
__E qual foi o bem valioso que o senhor perdeu?
__Uma garrafa de vinho muito especial:Um Château d'Yquem safra 1811
__respondeu aflito__O senhor sabe em quanto ela está avaliada?
__Desconfio...
__Cento e vinte mil reais.
O celular vibrou e tocou no bolso da calça,trazendo Roberto para o momento presente.Era Randhir,seu colaborador.Randhir estava vigiando uma empregado do sommelier desde a tarde do dia anterior.
__Conseguiu alguma coisa?__perguntou o detetive.
__Nada ainda.Só liguei pra saber quando vou poder sair daqui.É quente pra caramba!
__Por enquanto fique aí.Qualquer novidade me avise.Ok?
__Ok!
Ao desligar,Roberto não conseguiu evitar de pensar na curiosa história de Randhir,um indiano que deixara seu vilarejo no norte do país,onde para cada mil homens haviam 370 mulheres,pensando em encontrar uma noiva no Brasil.
Seu plano inicial era chegar,arrumar uma esposa o mais rápido possível e retornar,mas gostou tanto da nossa cultura que decidiu adiar a busca por um tempo e conhecer melhor o país.
O local da cirurgia começava a arder.Na verdade,ele pensara em adiar o procedimento por causa do novo caso,mas a vontade de se ver livre do sinal o quanto antes fora maior.
Resolveu tomar o rumo de casa e estudar melhor as pistas que tinha.
Mais tarde,sentado em sua cama, examinou as anotações:O vinho fora roubado da adega particular do sommelier durante uma queda de energia na rua da residência,o que desligou todos os alarmes e câmeras da casa.
O mais incrível,porém,foi o pequeno gerador da casa,que teoricamente garantiria a energia até que a luz voltasse, ter apresentado defeito durante o blecaute.
Acessou mais uma vez suas recordações do encontro com o sommelier armazenadas em seu córtex cerebral:
__O senhor desconfia de alguém?__a pergunta era óbvia,mas tinha que ser feita.
O sommelier franziu a testa,acentuando suas rugas de expressão em volta dos olhos.
__Talvez...
Interrompeu a fala como se estivesse calibrando as palavras que diria dali para a frente.Logo depois continuou:
__Tenho um sobrinho chamado Mauro,filho de minha única irmã, já falecida,que é muito problemático.Não trabalha,não estuda...só quer saber de malhar o dia todo na academia.É fisiculturista.
__O senhor acha que ele seria capaz de planejar um assalto?
__Apesar de suas limitações intelectuais,é posssível sim...Ele tem péssimas amizades..O senhor sabe...As más influências...
O detetive anotou os endereços da casa do suspeito e da academia;depois continuou:.
__E os empregados?
__Prezo muito minha intimidade;por isso só tenho dois ajudantes:Dona Salustiana e seu jairo.Ela faz a faxina,lava,passa e cozinha;ele fica responsável pelo jardim,por todo o exterior da casa e conserta o que eventualmente quebrar.Devo adiantar,senhor Roberto,que pago regiamente pelos serviços dos dois.
O detetive anotou mais alguma coisa no seu caderno e prosseguiu:
__Mais alguém que deva ser citado?inimigos?parentes?Vizinhos?
__Como eu lhe disse,minha única irmã morreu.Não tenho filhos nem família no Brasil,pois meus pais vieram de Portugal.Devo ter algum parente na terrinha...Quanto aos vizinhos;quando acontece de encontrar com algum,o que é raro devido as minhas viagens,é bom dia,boa tarde e boa noite..
__E os inimgos?
__No meu ramo de atuação,paga-se um preço quando não se faz média com ninguém,mas daí a falar em inimigos...Ah!quase ia me esquecendo de falar;tenho um afilhado chamado Juan,filho de um grande amigo que eu tinha chamado Esteban.Esteban era sommelier também.
__Era?
__Ele faleceu há quatro anos atrás.
__Entendo.E esse Juan?O que ele faz?
__É um dos alfaiates mais promissores do Brasil.
Sommelier número um,alfaiate entre os melhores do país,vinho de cento e vinte mil reais...um caso como aquele não aparecia todos os dias,pensou Roberto.
__Detetive__o sommelier fez uma pequena pausa carregada de angústia__Há alguma chance de resgatar minha garrafa?A polícia não me deu muitas esperanças...
A hora crucial da entrevista havia chegado.Era preciso impressionar o cliente para que ele contratasse os serviços do escritório sem passar,contudo,a impressão de que seria um trabalho fácil.
__Senhor Wallace,meus dez anos de atuação na área de investigação criminal me permitem dizer que temos uma boa chance de resolver o caso.
O detetive pensava exatamente o contrário,mas as contas não paravam de chegar.
__Era isso que eu queria ouvir senhor Roberto.Pode começar a investigação.
__Perfeito.Agora,quanto aos honorários,precisamos combinar..
O sommelier fez um sinal com a mão direita,interrompendo a fala de Roberto.Tirou um talão de cheques do bolso,preencheu uma folha e a deu ao detetive.
Era um cheque no valor de vinte mil reais.
__Lhe pagarei mais quarenta quando o vinho estiver na minha adega novamente.
Neste instante,Roberto sentiu o curativo repuxar,interrompendo o filme mental.Sonado,jogou a pasta com suas anotações no chão ao lado da cama,do jeito que só é permitido aos solteiros.Olhou então para o criado mudo e viu o porta retratos com uma foto sua ao lado de uma ex namorada que não deveria estar mais ali.O sono ou outra coisa qualquer afastou a vontade de rasgar a imagem impressa no papel.
Protegendo o local da cirurgia,adormeceu.
No dia seguinte acordou bem cedo e foi direto para a academia onde malhava o sobrinho de seu cliente.
Por sorte,uma prima sua conhecia um dos professores do local,o que facilitou a abordagem.
Roberto ligara para o profissional,dizendo que estava à procura de um personal trainner.Marcaram o encontro numa lanchonete próxima à academia.
Ao bater os olhos no cara ,Roberto teve que fazer muita força para não rir.Era uma figura:tinha o pescoço comprido,o nariz adunco e mexia no cabelo,já meio ralo na testa,pelo menos cinco vezes por
minuto.Elétrico,o "teacher" perguntou,antes mesmo dos cumprimentos iniciais:
__E aí?Qual é o seu objetivo?Força?Resistência?Agilidade?
Fosse aquele um caso de briga de vizinho,adultério,roubo de carro,herança,estelionato...ele encarnaria um personagem qualquer e fingiria interesse na aulas;mas seu objetivo era encontrar uma garrafa de vinho que poderia ser aberta e consumida a qualquer momento.Optou pela abordagem direta:
__Na verdade,professor,eu queria informações sobre o aluno Mauro Antunes.O senhor o conhece?
O homem,aparentando nervosismo, passou mais uma vez a mão pelo cabelo enquanto respondia com outra pergunta:
__Você é da polícia?
__Não.
Mais uma passada de mão pelos fios ralos.
__É da Anvisa?
__Não!Sou detetive particular.De onde você tirou esse negócio de Anvisa?
__Muitos alunos usam hormônios e suplementos contrabandeados ilegais para aumentar a força e a massa muscular.De vez em quando bate a fiscalização lá.
__Isso não me interessa.Só quero informações sobre o aluno Mauro Antunes
__Olha;minhas alunas disseram que ele é um marombeiro que frequenta a academia e até compete em torneios de fisculturismo.É a única informação que eu posso te dar.
__Não sabe nada sobre alguma atitude suspeita dele,companias estranhas,confusões?
__Sou professor de aeróbica;você....Qual é mesmo a sua graça?
__José carlos
__Pois então,José Carlos;sou professor de aeróbica e não frequento a parte dos caras que puxam ferro;agora você vai me dar licença que eu tenho que dar uma aula daqui há vinte minutos e ainda nem tomei café da manhã.Um abraço e sorte na sua investigação.
O professor apertou a mão de Roberto e levantou-se com uma agilidade impressionante,afastando-se sem olhar para trás.
Como pretendia passar na loja do alfaiate ainda de manhã e não queria ir em jejum,pois saíra de casa sem tomar café,o detetive resolveu forrar o estômago.
Acabado o lanche foi pegar seu carro,estacionado em frente a lanchonete.
Ao começar a abrir a porta do veículo foi empurrado pelas costas e caiu.Ao virar-se,ainda no chão,encarou um homem trajando camiseta e short,cujos músculos,hipertrofiados ao máximo, pareciam querer explodir.
O agressor não lhe deu tempo sequer de falar e o levantou facilmente pela camisa como se ele fosse um travesseiro de penas,para depois o arremessar contra a lataria do carro.
Tonto pelo impacto,o detetive ainda esboçou uma reação tentando ficar de pé e levantando a guarda,mas recebeu um direto no meio do rosto que o jogou no chão novamente.Em seguida,um chute nas costelas tirou todo o seu ar e o deixou como um bebê indefeso a mercê de seu algoz,que pela primeira vez falou:
__Não sei quem você é nem quem te mandou xará,mas se eu te encontrar novamente xeretando vou pegar pesado de verdade,entendeu?
Impossibilitado de dar qualquer tipo de resposta,o detetive levantou o olhar e encarou por alguns segundos a face transtornada de Mauro Antunes,que ainda lhe cuspiu antes de afastar-se.
Sem outra opção,ele ficou ali ,encostado no carro,até que o ar voltasse.
Agora,além do incômodo no local da cirurgia ,seu olho esquerdo latejava e sentia uma dor intensa na região das costelas.
Pouco tempo depois,vomitou parte do lanche que havia comido.
Uma mulher loira vestida com calça e blusa brancas,de uns trinta e poucos anos,passava pela calçada na hora e veio falar com ele:
__Você está bem?
__Não é o meu melhor dia moça__ao responder,deu uma golfada e expulsou de seu estômago o resto do lanche.
__Escuta__falou ela,penalizada__Eu sou médica e vou começar o meu plantão agora no posto de saúde ali na esquina.Se você quiser,posso te examinar.
Roberto aceitou de pronto a oferta,pois lembrou de um colega de profissão que morrera,anos atrás,depois de levar uma surra.Não queria para si destino parecido.
Depois do exame clínico,deitado na maca e sem camisa,ele ouviu o diagnóstico:
__O local da cirurgia dermatológica recente não foi afetado.Terei que dar uns pontos no supercílio,e você deveria tirar um raio x das costelas.
__Por qu...AIIII!__ele gemeu ao movimentar-se
__Talvez o chute tenha fraturado alguma delas..ou algumas.Vou suturar o supercílio e te dar um encaminhamento...
Roberto levou quatro pontos e recebeu o papel com a requisição do exame.Agradeceu a médica e,com dificuldade razoável,saiu andando do posto.
Entrou no carro e ligou para Nicolas,seu especialista em internet.No segundo toque ouviu a voz de locutor de aeroporto:
__Fala Roberto.
__Novidades?
__Vasculhei todos os sites de leilões...Contactei meus camaradas do contrabando e nada...Essse vinho não foi vendido ainda,posso te assegurar.Se pintar alguma coisa entro em contato.
__A gente se fala,até!
O detetive encostou a nuca no banco e fechou os olhos por alguns minutos.Estava com raiva de si mesmo.Não deveria ter aberto o jogo com o professor de aeróbica e não podia,com toda a sua experiência,ter sido surpreendido daquela forma.
Segundos depois,lembrou que reclamar do azar jamais o ajudara a resolver um caso.
Deixou as lamentações de lado,girou a chave na ignição,passou a primeira e foi visitar o alfaiate.
OBS:O conto será dividido em quatro partes.As três restantes serão publicadas sempre aos Domingos.
Um abraço!