Bella Grega V
Cap. 5 - Desmemoriado
Era um quarto simples: duas camas rústicas de madeira enegrecida, um armário pequeno no canto, uma janela dupla de madeira e dois tamboretes de criado-mudo. De iluminação apenas uma lâmpada pendendo de um teto sem forro. Deitado ali ele via velhas telhas de barro enegrecido pelo tempo e um ou outro fecho de luz. Esperando que acordasse estavam dois homens de idade e uma mulher jovem e bonita.
__ Onde estou? Quem são vocês?
__ Não se preocupe, somos amigos __ respondeu Diana.
__ E quem sou eu? __ perguntou intrigado.
__ Deixe-me vê-lo, afaste-se um pouco Diana __ tirou um aparelho da pasta e observou os olhos do desconhecido __ não, pupilas normais. Deve ter batido a cabeça.
__ E então doutor? O que ele tem?
__ A batida deve ter afetado a memória.
__ Ele perdeu a memória?
__ Acho que sim Diana.
__ Ei, eu estou aqui. Posso não saber quem sou, mas sei quando não estou em algum lugar. Eu quero ser consultado e não ignorado.
__ Ele tem razão papai.
__ Esta bem, eu me responda: quem é você e o que fazia boiando no rio.
__ Eu estava boiando no rio?
__ Ahhh compadre, veja o que estou lhe dizendo. O rapaz não se lembra de nada, tudo conseqüência da pancada.
__ Pancada? Disto me lembro, ai como doeu!
__ Lembra-se da pancada na cabeça? __ perguntou o Dr.Gonçalo.
__ Lembro, lembro-me de ver um tronco vindo em minha direção. Depois senti a pancada e...
__ E o que mais? __ disse o velho pai de Diana.
__ É tudo de que me lembro.
__ Ahhh, assim não doutor. Não tem nenhum remédio pra falta de memória?
__ Infelizmente não, a mente humana é um mistério.
__ A mente humana é um mistério indecifrável, seus segredos e mistérios são o que me instiga a continuar a desvendá-la...
__ Sigmund Freud, como sabe disso?
__ Não sei, veio de repente.
Também naquela manhã o Dr.Camilo foi falar com dona Helena:
__ Bom dia!
__ Bom dia doutor! O que o trouxe aqui tão cedo?
__ Preciso lhe falar dona Helena e não será agradável.
__ Já estou ficando nervosa, diga logo o que quer.
__ A senhora soube da viagem do Ricardo para Angra, ontem de manhã?
__ Soube sim, o que aconteceu? Eu sabia que tinha acontecido alguma coisa, o que foi? Diga-me logo.
__ Seu filho sofreu um terrível acidente de carro no caminho e morreu.
__ O que? __ disse pasmada __ não pode ser. Meu filho não, nãoooo! __ terminou chorando.
__ A senhora tem que ser forte e assumir as rédeas da família.
__ Não! Não posso, meu filho querido morreu __ respondeu ainda chorando.
__ O assunto é grave, se a senhora não tomar as rédeas desta casa agora, toda sua família estará perdida, falida e sem ter onde morar.
Seu pranto cessou com essas palavras.
__ Qual é o assunto?
__ O testamento de seu filho.
__ O que tem o testamento do Ricardo?
__ Dario receberia uma grande fatia da fortuna Monteiro, só que agora que ele desapareceu, não sei o que fazer em relação aos herdeiros dele.
__ Explique-se.
O Dr.Camilo conta tudo o que aconteceu no dia anterior, lhe revela o conteúdo do testamento do Dr.Ricardo e o problema pelo qual estão falando.
__ Tem razão Camilo, o assunto é grave.
De seu corpo velho surgiu uma energia que lhe deu forças pra se erguer. Sua voz de comando voltou a boca e seus olhos serenos demonstraram a mulher forte adormecida dentro dela. Sua pose severa de mãe de família tinha voltado a ativa no melhor momento, quando os Monteiro mais precisavam.
__ Henriqueta! Venha cá, agora.
__ Sim senhora.
__ Ajude-me aqui, quero trocar essa camisola por uma roupa melhor. E pegue a minha bengala dentro do armário.
__ Dona Helena, a senhora não tem saúde pra sair de casa.
__ Henriqueta, não lhe pedi. Isto foi uma ordem. Agora faça o que lhe mandei.
__ Sim senhora.
__ É assim que se fala dona Helena, vou te esperar lá em baixo.
__ Aproveite e convoque uma reunião de família, quero todos no salão de entrada dentro de cinco minutos.
__ É claro, farei imediatamente dona Helena.
Mia acordou mal, não tinha forças pra levantar da cama. As marcas das lágrimas em seu rosto denunciavam a noite que passou. Desconsolada pela perda do amado Dario, pela humilhação passada na casa do ex-namorado, pelos pouquíssimos dias de felicidade que passou com Dario e pela humilhação pública dos jornais terem afetado sua empresa. Há cinco dias ela era feliz e agora a mais triste das mulheres. O seu mundo perfeito desmoronou, se transformou em escombros. Não sobrou pedra sobre pedra da sua felicidade. Naquele sábado de tristezas, nada poderia ser pior. Nada poderia acontecer para piorar a situação já catastrófica da pequena empresária carioca a beira da falência. Em uma semana, tudo pelo que ela batalhou a vida toda foi a baixo. Todos os esforços de sua mãe pra que ela estudasse e de seu pai pra mantê-la na faculdade.
Na fazenda as coisas não estavam tão ruins. É claro que perder a memória é ruim, mas de resto tudo ía as mil maravilhas. Diana ficava o tempo todo ao lado do desmemoriado, deslumbrada pela sua beleza e pelo modo como surgiu em sua vida. Depois da mesa farta do café da manhã, o sem-nome foi conhecer o rio:
__ Então foi aqui que me encontrou? - disse o sem memória.
__ Foi, aquele é o tronco no qual estava agarrado.Ficou preso naquelas duas rochas do outro do rio.
__ E o que fazia aqui de noite?
__ Ah, é, nada!
__ Nada?
__ Tá, pra você não consigo mentir. Estava nadando.
__ Nadando? De noite?
__ Algum problema?
__ Não, não, nenhum. Foi até bom que estivesse aqui na hora que passei boiando no tronco. Já imaginou se não estivesse aqui? Há esta hora eu estaria morto, afogado no fundo desse rio.
__ Pois é, romântico não?
__ Romântico por que?
__ É que dizem que aquelas duas pedras são na verdade Fred e Isaura, dois jovens que se apaixonaram. Mas sendo de famílias que se odiavam decidiram fugir bem na hora que caiu uma terrível tempestade, muio parecida com aquela que caiu ontem a noite. Ele atravessou o rio, mas a correnteza estava forte e Isaura não estava conseguindo. Fred voltou pra busca-la, mas já cansado acabou se afogando antes que alcançasse a amada. Morreram os dois afogados, dizem que o espírito do rio teve pena dos dois e os transformou nessas duas pedras. Eternamente juntos e eternamente separados.
__ Bonita estória, se parece com a de Romeu e Julieta.
__ Taí um bom nome.
__ Que nome?
__ Pra você, já que não se lembra do seu verdadeiro você podia se chamar Romeu. Que acha?
__ É um bom nome, está bem. A partir de agora, até descobrir o verdadeiro, meu nome será Romeu.
Dona Helena ficou no quinto degrau da escadaria pra ficar mais alta e todos, Percival, Clara e Carlos, se reuniram a sua frente.
__ Mamãe, o que está fazendo fora da cama? Volte pra lá agora.
__ Calado Percival, eu chamei vocês aqui por um motivo muito importante.
__ E que motivo é este? __ perguntou Percival.
__ Eu já disse: calado! Não lhe permiti falar. Muito bem, agora tenho atenção e o silencio de vocês, o caso é o seguinte: Ricardo estava muito nervoso quando fez seu último testamento. Acabou se exaltando e colocando varias clausulas importunas, que atrapalharão nossa vida.
__ Posso falar?
__ Agora pode Percival.
__ Pode nos explicar melhor estas tais clausulas?
__ O Dr.Camilo fará isso.
__ Bem, algumas são apenas relacionadas à burocracia do testamento, mas uma m especial foi estipulada pelo próprio Dr.Ricardo.
__ E que clausula é esta?
__ Todos os herdeiros devem estar presentes na abertura do testamento e se todos não estiverem presentes, o testamento não pode ser aberto.
__ E qual o problema? Só por que Silvia esta no hospital?
__ Acontece que o Dario é um herdeiro também e como ele está desaparecido...
__ Desaparecido? Pelo que ouvi, ele morreu __ afirmou Carlos.
__ A perícia concluiu que ele pode estar vivo, só esta desaparecido.
__ Eu ouvi muito diferente.
__ Não importa se você ouviu diferente, o que importa é o que disse a perícia que examinou o carro. E tem mais. Diga a eles doutor.
__ Bem, pelo testamento há um período de espera pra que todos os herdeiros se reúnam. Depois desse tempo, o testamento pode ser aberto mesmo com herdeiro faltando.
__ E de quanto tempo é essa espera?
__ De um mês.
Já deve conhecer esta família o bastante pra prever a reação deles.
__ O que? __ disse Carlos.
__ É um absurdo! __ disse Clara.
__ Não podemos ficar um mês esperando um milagre que não vai pra acontecer só pra termos perdido tempo __ disse Percival.
__ Chega, calados todos vocês. Como matriarca desta família vou tomar as rédeas da situação e decidir o que faremos.
__ E o que será?
__ Nós esperaremos.
__ O que? __ disse Clara.
__ O que? __ disse Percival.
__ O que? __ disse Carlos.
__ Cybele pode muito bem administrar Bella Grega e a mansão tem vida própria sem um dono. Ficaremos bem por um mês.
__ Mamãe, não pode nos fazer esperar tanto tempo assim.
__ Ah eu posso, e tanto posso que estou fazendo.Reunião encerrada.
Dona Helena é uma mulher que tem classe, vê-se pelo carro pessoal. Um Rolls Royce preto ano 54, que só é usado por ela. Em Bella Grega, os funcionários já sabem, é ela. A matriarca dos Monteiro chegando. E já fazia muito tempo que ele não desfilava pelas ruelas internas de Bella Grega com seu belíssimo automóvel.
Mesmo longe de todo este interesse, havia inveja também na Fazenda Recomeço. Um dos peões que serviam ao coronel João Dias estava de olho na neta do coronel, Lucas era apaixonado por ela desde criança. Por isso quando viu aquele estranho desmemoriado ao lado de sua mulher amada, foi tomado por uma imensa inveja e por um incontrolável ciúme.
__ Mas não consegue se lembrar de nada? Nada mesmo?
__ Não, com a execão de certos lapsos de conhecimento que me vem de vez em quando.
__ Vamos pra dentro.
Dentro da casa grande do dono da fazenda, eles conversam com o próprio coronel:
__ Confesso que já estava curioso para conhece-lo rapaz.
__ Eu também, Diana me falou muito sobre o senhor.
__ Nada de senhor, senhor está no céu. Chame-me apenas de coronel. Sabe o que é um coronel?
__ Ah vovô, não venha agora com suas estórias. Desculpe o vovô, ele tem mania de sempre perguntar isso pra demonstrar que sabe sobre seu titulo.
__ Cargo! __ afirmou Romeu.
__ O que? __ perguntou Diana.
__ Na época do Império, certos homens de lugares afastados eram chamados a organizar e comandar a milícia local. Os chefes eram os coronéis.
__ Muito bem rapaz, sabe de História.
Com essa, as coisas estranhas por trás do curioso Romeu aumentam ainda mais. E isso por que o almoço ainda não tinha chegado. Na grande mesa estavam: o coronel, seu João (pai de Diana), dona Maria (mãe de Diana), Neta (irmão de Diana), Regina e o padre Quirino. É claro, o coronel na cabeceira junto com o filho e a nora ao lado. Os outros dispostos de forma que Regina, Diana e Romeu ficaram e de um lado e Neto e o padre Quirino do outro.
__ Minha irmã, só me responda uma coisa que não entendi: o que você fazia no rio àquela hora?
__ Eu, eu, eu...
__ Vendo a lua, ela se torna muito mais bonita quando é visto também seu reflexo nas águas e principalmente uma lua cheia como a de ontem __ interrompeu Romeu.
__ Sì, io immagino quello che questo giovane era fare nel fiume. Con loro sono usciti con certezza e loro stanno alterando per noi per essere insieme __ disse o padre (tradução: “Sim, imagino o que esta jovem foi fazer no rio. Com certeza são namorados e estão fingindo para ficarem juntos”).
E inesperadamente, todos se espantaram quando o rapaz sem memória disse:
__ Prete, io non gli permetto di parlare come questo circa lei. Diana era molto genere con me in questo io concio periodo. E lui non può fabbricare italiano oratoria un errore __ disse Romeu em italiano (tradução: “Padre, não permito que fale assim dela. Diana foi muito amável comigo neste curto período. E não pode me enganar falando italiano”).
__ Romeu? Você fala italiano? __ interrogou o padre intrigado.
__ Acho que sim.
__ Será que você não é estrangeiro?
__ É claro que não padre Quirino __ interviu Diana.
__ Não acredito padre, mesmo que eu fosse eu acho que estaria falando italiano desde que acordei e não somente agora.
__ Faz sentido __ disse seu João.
__ Pode ser, mais se for assim, onde aprendeu a falar italiano?
__ Sinceramente não sei. É uma língua importantíssima nos dias de hoje, poderia ter aprendido em qualquer lugar.
A vida pode nos pregar peças bem interessantes, não acha? Uma semana atrás, quem poderia dizer que Dario perderia memória, Dr.Ricardo morreria, Silvia estaria numa cama de hospital e a alegre e despreocupada Mia estaria deitada numa cama em depressão por isto tudo. A contagiante energia dela sumiu como o Dario. Em seus olhos reinam a tristeza e o desalento. Dario manteve seu jeito sério, coisa que não mudaria se fosse Dario ou Romeu. O mundo da voltas e mais voltas. Algum dia eles estarão frente a frente de novo, mas será que isso acontecerá mesmo? Será que Mia suportara os problemas e se erguerá das cinzas? Será que Romeu será para sempre Romeu em vez de Dario? Certamente ninguém pode responder a estas perguntas, mas por um milésimo de segundo, um ínfima fração de minuto, pense se você poderia entender o sofrimento deles.
Ninguém quer se colocar no lugar de alguém que sofre, só no lugar de alguém que é rico ou jovem ou bonito ou numa situação invejável. Pense, reflita sobre si mesmo e descubra se poderia suportar ou prefere continuar lendo só pela aventura. Descubra a si mesmo e reflita sobre suas próprias ações de vida, que gerarão conseqüências boas ou más, dentro dos limites de sua bondade ou de sua... maldade!
continua...