Bella Grega III

Cap. 3 - Uma Partida de Xadrez

Quando se menos espera, o destino lhe prega uma peça. É terrível, mas é verdade. Costumo achar que a vida é como uma grande partida de xadrez, sua única e decisiva partida é a que jogamos todos os dias. Todos somos uma peça diferente, sempre de acordo com o nosso modo vida. Pessoas que não lutam pela felicidade serão sempre peões, prontos a serem sacrificados por um objetivo maior no jogo de alguém mais importante. Podemos deixar de sermos peões e nos tornarmos até o próprio rei, mas será que por dentro deixaremos de sermos peões manipulados pelos outros? Será que fraquezas do subconsciente controlam nossas ações, como dizia Freud?

Dario e Mia acordaram com dor de cabeça. Felizmente para Mia, Dario tinha dotes culinários que utiliza pra preparar uma esplêndida mesa de café da manhã.

__ Você fez tudo isso?

__ Eu não só levava o café pro doutor, eu também preparava.

__ Nunca vi uma mesa tão bem feita e tão cheia. Onde arranjou tudo isso?

__ Na sua geladeira.

__ Tem certeza? Toda manha eu tento mas nunca acho nada, e você encontra tudo isso.

__ O segredo está na imaginação, sabe, o doutor é muito enjoado pra comer. Os ovos têm que estar moles mas perfeitamente fritos, o suco de laranja tem que estar adoçado com determinada quantidade de açúcar equivalente a cada litro de suco, o pão é o pior, tem que ser caseiro. A massa é sovada por exatamente meia-hora, deixada crescer por três horas e assado por 48 minutos em fogo alto e mais doze minutos em fogo brando...

__ Sua vida foi mesmo servir o Rick?

__ Minha vida está naquela mansão senhorita.

__ Pare com essa coisa de senhorita, me chame de Mia.

__ Foi lá que eu nasci e me criei, senhorita. Meu pai trabalhou na mansão por quase trinta anos. Foi lá que nasci, foi lá que minha mãe morreu. Foi lá que vi meu pai definhar com a doença do coração até morrer. Há seis anos eu trabalhava como assessor do Dr.Ricardo, eu não fiz nada alem de morar naquela mansão e servir aos Monteiro. Minha família nunca teve uma propriedade, uma casa ou um carro, um nada que eu possa vender ou usar nesse momento difícil.

__ Estér te tirou tudo mesmo, não é?

__ Tudo e mais um pouco.

__ Mudando de assunto, Seu Jorge já trouxe o jornal?

__ Ainda não.

__ Que estranho! Ele sempre traz antes das oito.

A campainha toca e Mia atende, é o seu Jorge com o jornal. O sorriso de cortesia ao porteiro termina quando seus olhos castanhos avistam a capa da Gazeta Carioca.

__ Mas o que é isso? __ pergunta pasmada. A porta se fecha com força e Mia desmaia no sofá.

__ O que foi srtª.Danglars?

Preocupado, Dario se aproxima e pega o jornal.

__ Mas o que é isso? __ pergunta igualmente pasmado.

Na mansão Monteiro as coisas não estavam melhores, o Dr.Ricardo chega furioso em casa, gritando com Clara e todos os Monteiros. Logo, todos estão reunidos no salão de entrada da mansão.

__ Clara! O que foi que você fez?

__ Eu não fiz nada Ricardo.

__ Por que está falando assim com a minha esposa?

__ Parece que eu estou falando Percival? Eu estou gritando mesmo. Agora me diga Clara: como foi capaz?

__ Mas do que é que você esta falando afinal?

Ricardo tira o bendito jornal da pasta e entrega a cunhada.

__ É disto que estou falando. Como você pode revelar tudo pros jornais? E ainda mais pra Juno Éden, aquela fofoqueira de marca maior.

__ Mas eu não disse nada, eu também não quero que a imagem da nossa família seja enlameada por aqueles dois traidores.

__ Chega de desculpas, não quero ouvir nenhuma das lamentações de vocês, de todos vocês. Vou pro escritório, e não quero sem incomodado, por ninguém. Estou esperando o Camilo, quando ele chegar diga que vá pra lá.

O nervoso pilar financeiro dos Monteiro perdeu a paciência com os acontecimentos, primeiro aquela noite e agora o jornal. Todos na cidade já sabiam sobre seu ex-assessor e sua ex-namorada. A culpa que sentia era tão grande que não se agüentava, quase estragou o próprio plano e agora seus entes queridos estão sofrendo.

Tentando esquecer a bomba solta pela Gazeta, Mia foi trabalhar. Sua pequena empresa era apenas duas salas, a recepção e sua sala. Natacha, a secretária, era eficiente e passara a última hora atendo telefonemas de todo lugar.

__ Bom dia! Algum recado?

__ Todos!

__ Como?

__ Já ligaram: três revistas sensacionalistas, dois jornais, quatro emissoras de TV e um monte de clientes cancelando trabalho.

__ O que? Como assim?

__ Nenhum de nossos clientes aceita que suas casas sejam decoradas por uma mulher que trai o namorado.

__ O que? E quanto os compromissos de hoje?

__ Todos cancelados. Se continuar assim vamos perder todos os clientes até o final do dia.

__ Isso é péssimo! Quer saber, eu vou atrás de alguns. Quero ver se eles têm coragem de dizer isso na minha cara.

__ Sinceramente srtª.Danglars, acho que terão sim.

__ Mesmo assim eu vou, quem sabe se eu explicar o que aconteceu, eles mudem de idéia.

__ Acredita nisso?

__ Não!

E assim foi todo o dia, portas sendo batidas em sua cara, “não’s” por todo lado. Felizmente nem todos a condenaram moralmente, ainda restaram alguns poucos clientes que mantiveram Decoração Danglars aberta. Enquanto isso na mansão Monteiro, Dr.Ricardo recebia o Dr.Camilo no escritório as portas trancadas:

__ Eu quero mudar meu testamento, e quero agora!

__ Calma Ricardo, essas coisas não são assim. Você acabou de fazer isso, quer muda-lo de novo?

__ Quero, quero sim. Tenho que reparar meu erro, errei e não quero que o antigo testamento que fiz comprometa o futuro dos meus entes queridos. Gosto deles demais.

Este pedaço da conversa foi ouvida pela Estér que correu pro jardim, onde estava Clara. Mas a conversa continuou:

__ Você me dará muitas dores de cabeça sabia? A burocracia neste caso é desumana, tem certeza que deseja fazer isso?

__ Absoluta, sei que era hoje que você levaria meu testamento pro cartório pra ser registrado. Eu quero que você substitua aquele por este que fiz a mão. Ainda hoje eu quero o testamento mudado.

__ Ah Ricardo! Sabia que isso vai me dar muita dor de cabeça e lhe custar uma fortuna?

__ Não me importa, você conhece a verdade, sabe por que estou aflito assim. Faca o que lhe pedi o mais rápido possível, por favor.

__ Está bem, eu faço. Mas como lhe disse, lhe custara muito dinheiro. Terei que passar o dia todo indo a vários cartórios e também ao fórum. Fora às taxas, meus honorários serão altíssimos.

__ Já disse que não tem problema, gastarei o que for preciso para reparar meu erro de vinte anos atrás.

No jardim Estér deu a novidade de seu cunhado:

__ Senhora, não sabe o que acabei de ouvir?

__ Se você não me disser, não saberei mesmo.

__ Ouvi o Dr.Ricardo dizendo ao Dr.Camilo que mudasse seu testamento.

__ Mesmo? Que boa notícia! E o que mais?

__ Também disse que não queria que seu antigo testamento comprometesse o futuro de seus entes queridos. Estas são palavras do próprio Dr.Ricardo: “tenho que reparar meu erro” e “gosto deles demais”.

__ Magnífico! Finalmente o juízo voltou a cabeça do meu cunhado e vai tirar Dario e Mia do testamento.

__ Finalmente senhora, o plano surtiu efeito. Não lhe disse que no dia seguinte ele mudaria o testamento, está mudando.

__ Seu plano foi perfeito, assim que recebermos nossa herança, lhe pagaremos o combinado. Juro que fiquei preocupado mais cedo quando chegou furioso em casa. Pensei que pudesse se arrepender no último minuto.

__ Mas não aconteceu senhora e o meu futuro estará assegurado com o meu meio milhão de dólares.

__ É claro que estará Estér, é claro que estará.

No terceiro andar, no aposento visinho do Dr.Ricardo fica o quarto de Dona Helena. Quase oitenta anos e tão lúcida quanto uma pessoa de trinta, dona Helena falava com sua enfermeira pessoal. Não que ela precisasse de cuidados em tempo integral, mas além de outros motivos, dona Helena se sentia sozinha e Henriqueta Souza era uma ótima compania:

__ Que coisa, não?

__ Sim senhora, terrível o que aconteceu com seu filho.

__ Não se engane Henriqueta, às vezes nada é o que parece.

__ Mas foram encontrados pelo seu filho, eles estavam nus na cama dele.

__ Exatamente, na cama dele. Foram entregues de bandeja para que Ricardo os encontrasse.

__ São abusados isto sim, queriam provar que podiam se safar e perderam.

__ Conheço Dario desde que nasceu, jamais faria algo contra o Ricardo.

__ Pode ser que a iniciativa tenha sido da Mia, mas ele aceitou e pagou o preço por isso.

__ Ainda não consigo acreditar. Escreva as minhas palavras, ainda vamos descobrir que são inocentes.

No final do dia quando Mia voltou pra casa, recebeu outra noticia ruim.

__ Como despeja da?

__ No seu contrato de aluguel diz que você tem que obedecer ao regulamento interno e o regulamento diz que se o comportamento do condômino não corresponder a moral e os bons costumes estabelecidos pelos donos, você poderá ser despejada.

__ Não acredito nisso! Não, é brincadeira. Só pode. Essa maré de má sorte já está ficando ruim demais. Mas por que o Rick publicou isso tudo?

__ Não foi ele, conheço o Dr.Ricardo. Mesmo com raiva, ele é contra vingança. Nunca faria isso, nunca publicaria a história toda nos jornais. Ele não é vingativo.

No jantar da mansão, toda a família compareceu. Como imagina não foi lá muito animado. O clima ainda tenso deixou o silêncio imperar. Tanto na mansão quanto no apartamento da Mia.

De madrugada, alguém se esgueirou pelos corredores e salas escuras da mansão até chegar no escritório. A figura abriu o cofre atrás do quadro de dona Helena, pegou o rascunho do novo testamento do Dr.Ricardo e o leu todo. Após a leitura ele pôs o documento de volta no lugar e retornou pro anonimato das sombras.

De manha as coisas tomaram outro rumo. Dario criou coragem e se declarou a Mia depois do café da manhã:

__ Outra mesa maravilhosa, assim eu você vai me acostumar mal.

__ Mia eu te amo!

__ Esse chá está uma deli... O que? __ disse gospindo o chá __ o que você disse?

__ Eu te amo!

__ Como assim me ama? Você não pode me amar, definitivamente não.

__ Eu te amo desde que te conheci, há um ano atrás.

__ Como pode ser? Você nunca demonstrou.

__ Logo você começou a namorar o Dr.Ricardo. Não tive coragem de falar e passei a disfarçar.

O choque da revelação durou alguns minutos das mesmas perguntas que já escrevi. Ela perdeu a fome e foi logo trabalhar. Dario ficou sozinho no pequeno apartamento ainda não pago. Ficou pensando se não fez mal em revelar seu maior segredo. O aniversário não aconteceu, Ricardo estava tão deprimido que cancelou a festa que haveria na mansão e mandou devolver tudo que já havia sido comprado. O fiasco estampou todas as colunas sociais da cidade do Rio de Janeiro. Mesmo assim, pelo luxo da Bella Grega, os negócios continuaram bem. À noite quando Mia chegou, ela estava bêbada. Passara num bar e bebeu muito. Chegou em casa por milagre, sem bater nem levar multa. Chegou cantando:

__ A ponte de Londres está caindo... __ soluçou __ ...está caindo... está... __ soluçou __ ...caindo. a ponte de Londres está. Oi Dario! Tudo bem?

__ Onde você estava Mia?

__ Por aí. Andando de bar em bar pra esquecer.

__ Esquecer o que?

__ Você, e o que você me falou. __ soluçou __ ops, desculpe!

__ Quer esquecer?

__ Sabia que nunca na vida alguém disse que me amava. Sabe, já me disseram de tudo: me disseram que sou linda, que sou __ disse sussurrando __ gostosa, que sou bonita. Até já me disseram que tenho um bom sexo, mas nunca alguém me disse que me amava.

__ Nunca mesmo?

__ Nunquinha, não mesmo. Não acredito no amor, acredito na atração, mas não no amor. Você provou que me ama há tanto tempo que é de verdade, não é paixão. E isso dá má sorte! Dá sim.

Mia beijou suavemente o homem que a amava e ele correspondeu.

No jantar da mansão daquela noite, todos os Monteiro estavam presentes:

__ Meu filho, mude essa cara triste.

__ Não posso mamãe, dói demais. Dói muito aqui dentro.

__ Você tem que esquecer meu irmão, esquecer aqueles dois traidores.

Inesperadamente Silvia tomou a palavra.

__ Papai, tem certeza que eles são culpados?

Como se tivesse matado uma pessoa, todos a olharam em discriminação num silêncio total.

__ Que foi? Por que estão me olhando assim? Eu acho sinceramente que eles têm que ter o direto de se defenderem, pelo menos o Dario.

__ Por que o Dario? __ perguntou Percival.

__ Por que se meu pai o vê como a um filho, eu o vejo como a um irmão. Nós fomos criados nesta mesma casa, nós brincamos juntos quando éramos crianças. Pelo menos a ele você ter que dar o direito de se defender.

__ Concordo! __ disse dona Helena __ Silvia e eu conversamos a tarde toda sobre o assunto e concordamos deste ponto, Ricardo, pelo menos ao Dario você tem que dar o direito de defesa.

Como se esperassem uma resposta, todos olharam pro Dr.Ricardo.

__ Não sei, vou pensar.

Depois do jantar pai e filha conversaram longamente no escritório:

__ E então meu pai?

__ Não sei Silvia.

__ Papai, por favor. Eu não acredito na inocência da Mia, mas o Dario é diferente. Ele é quase meu irmão.

__ Também acho isso. Lembro-me do Dario correndo pela mansão, cheio de vida, com o pai atrás pra impedi-lo.

__ E então papai? Deixa ele se explicar. Pensei muito nesses dias e foi a essa conclusão que cheguei.

__ Mesmo que lhe dê uma chance, não quero faze-la nem aqui nem em Bella Grega. E é claro, não pode ser no apartamento da Mia.

__ E em Angra dos Reis? Eu vou pra lá todo fim de semana. É calmo e não tem nenhum parente ou conhecido.

__ Pode ser, mas só quero falar com ele quando chegar lá.

__ Por que?

__ Por que podemos nos emocionar no caminho e talvez voltemos no meio do caminho. Eu quero poder conversar com ele com calma, sem me preocupar com dirigir ou voltar antes de falarmos tudo que temos pra dizer.

__ Eu levo ele.

__ Você o leva?

__ Dirijo bem, o senhor sabe. Eu o levo até lá e depois eu volto.

__ Faria isto minha filha?

__ Pelo meu pai e pelo meu irmão sim.

__ Obrigado! Você é uma filha tão boa, não mereço tanto.

Enquanto isso em um dos quartos da mansão:

__ Será que ele vai voltar atrás e recolocar o Dario no testamento. __ perguntou Percival.

__ Não acho meu amor, se reconciliarem é uma coisa mas recoloca-lo no testamento?

__ E se acontecer?

__ Se acontecer, bem, a única maneira seria se ele não tivesse tempo pra isso.

__ Não entendi?

__ Digamos, e se ele morrer. Afinal quem faz um testamento, é por que sente que vai morrer.

__ Impossível, Ricardo tem uma saúde de ferro. Eu gosto dele, afinal é meu irmão. Mas de vez em quando não me importaria se morresse de uma vez e nos deixasse em paz vivendo da herança que vai nos deixar.

__ Seria capaz Percival? Seria capaz de matar o próprio irmão pra ficar com a fortuna dele?

__ É claro que não, confesso que já me senti tentado a isso mas nunca, nunca poderia fazer uma coisa dessas. E você? Seria capaz de matar o Ricardo?

__ É claro que também não, jamais. Nem consigo manejar uma arma.

__ Mas tiros de um revolver não são a única maneira de matar uma pessoa.

No andar inferior, na ala dos empregados, em seu quarto simples, Estér falava sozinha:

__ O plano vai por água a baixo, não posso deixar que aconteça. Não, não posso. Já vejo meu meio milhão de dólares indo embora, voando cada vez mais alta e desaparecendo entre as nuvens. Tenho que dar um jeito do doutor não falar com Dario. É o método mais fácil.

As peças de xadrez estão se movimentando rápido numa mesma direção, demonstrando um futuro confronto entre as peças brancas e negras. Na área tem peões, cavaleiros e bispos. Uma luta grande que será decidida logo. Sacrifícios serão feitos e algumas peças sairão do tabuleiro, as lágrimas serão servidas igualmente entre ambos os lados.

continua...

Thiago A Almeida
Enviado por Thiago A Almeida em 19/03/2007
Reeditado em 19/03/2007
Código do texto: T417838
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