O FACÍNORA
Por: josafá bonfim
...Elemento frio e cruel; tinha uma extensa lista de antecedentes criminais e mesmo assim vivia à solta. Acabara de praticar mais uma de suas barbáries: entrara numa residência para assaltar e ali encontrando apenas uma senhora em meses de gestação com uma criança pequena, não hesitou, além de saquear, estuprou a mulher, que amarrada e amordaçada nada pode fazer para conter o instinto sujo e selvagem do facínora.
Certo de mais uma impunidade, atravessava uma rua do residencial, para adentrar no mato e ganhar fuga, quando fora abordado por uma equipe de policiais à paisana, que por coincidência transitava nas imediações. Já tinha mudado as características, disfarçando-se de pintor de paredes. Trazia um balde encardido nas mãos, com as roupas apresentando vestígios de tintas. Tocados pelo tirocínio, e não satisfeitos com a versão dada, os policiais detiveram-no para uma abordagem mais apurada. Ao entrarem na viatura descaracterizada, não se sabe como, uma arma surgiu na mão do suspeito, que começou a disparar, atingindo primeiro o motorista, em seguida o que estava no banco traseiro, ao seu lado, e por ultimo, atingiu o terceiro policial que ainda nem conseguira entrar na viatura. Este consegue ainda reagir, ferindo-o com dois disparos.
Criou-se pequena aglomeração na rua pouco movimentada. Cambaleando e sagrando bastante o policial aproxima, encosta sua arma no bandido ao chão, e atira mais uma vez. – Pronto... esse infame não mais atacará ninguém, desabafou com a voz ofegante, saída entre os dentes semisserrados. E, em melhor condição de dirigir, reúne forças e ampara os demais colegas levando-os de imediato para o atendimento no pronto socorro.
Estirado no chão, fingindo-se de morto, ao notar a ausência dos policiais,- dissimulado -, o bandido passa a clamar por socorro, invertendo os fatos, dizendo ter sido vítima dos assaltantes, que acabaram de fugir.
Alguns incautos, sem saber o que na verdade ocorria, se compadecem do individuo dando-lhe a assistência possível, até que outra viatura policial, desta feita ostensiva, atraída pela movimentação chega ao local, recolhe a suposta vitima levando-a às pressas para o pronto socorro. No hospital, deparam com colegas de outra equipe, e enfim ficam sabendo a verdadeira versão dos fatos que envolveram a equipe policial e o assaltante. Indignaram-se por terem sido ludibriados pelo pilantra, mas nada mais restava fazer; o individuo já estava sob cuidados médicos e a proteção de escolta.
No rastreamento investigativo, foi confirmado que o meliante fazia parte de uma quadrilha organizada, envolvida com tráfico de drogas e assaltos, com um vasto histórico de antecedentes criminais. Era fugitivo de justiça por crimes de tráfico de drogas, latrocínio e o assassinato de um policial. Ousado, o marginal destoava do bando, em certas ocasiões agia sozinho, dando vazão a sua índole perversa.
Passaram-se os dias, e aos poucos o enfermo começa a melhorar. A maneira como o preso era tratado no ambiente clinico, intrigava a equipe policial. Nada lhe faltava. Tinha atenção especial de toda a classe hospitalar. As enfermeiras dispensavam ao paciente um tratamento especial de causar estranheza; o que não ocorria com os demais hospitalizados.
Com a saúde do preso restabelecida, e por ter prisão decretada, a policia monta operação para levá-lo ao presídio onde iria cumprir pena. Foram escolhidos a dedo os componentes da equipe, tamanha a preocupação com o conduzido. No deslocamento, quando alcançavam o meio do percurso, ao passar por um quebra-molas, de repente aparecem dois motoqueiros bem camuflados, disparando vários tiros, atingindo somente o preso, que se encontrava algemado no banco traseiro.
Os atiradores fogem e a equipe policial opta por levar o preso, ferido de morte, para atendimento num hospital mais próximo. Permanecera imóvel, fingindo-se de morto, até se sentir dentro do ambiente hospitalar, onde eufórico pede por socorro, e denuncia que parte dos tiros que levara, fora disparado por um policial que se encontrava na própria viatura que o conduzia.
Por arte do destino, um dos médicos da equipe de atendimento era vitima do bandido; que invadiu sua casa, violentando sua família. Contudo, não cedeu aos apelos tresloucados dos policiais que cobravam uma atitude do médico que levasse o assaltante a óbito, na hora da cirurgia. Manteve-se firme em sua conduta, dizendo que mesmo indignado, jamais ultrajaria o juramento profissional que um dia fizera.
Mesmo resoluto, o meio policial começa a ficar perplexo com aquela série de acontecimentos misteriosos, sempre com o bandido se safando. Imaginaram-se impotentes frente às adversidades dos fatos. Pareciam diante de um inimigo invulnerável.
Corriam rumores que o marginal recebia uma certa proteção sobrenatural de uma tia macumbeira, que o garantia invulnerabilidade enquanto esta fosse viva. E que armas de fogo não eram capazes de eliminá-lo. Questionava a equipe policial: qual seria a forma eficaz de eliminar aquele maligno, sem deixar vestígios que pudessem incriminá-los numa possível ação judicial. Um atentado em pleno hospital, não era uma opção inteligente; fosse com uso de arma, ou por meio de sabotagem na medicação, seria um risco tremendo. Alguém imaginou contratar um pistoleiro, mas o risco era maior, porque a situação sairia do controle corporativo. Estava, portanto, difícil ir à desforra. Enquanto isso, em outro hospital, dois dos policiais feridos, continuavam em situação de saúde delicada.
Por seu turno. com várias perfurações à bala e a perna fraturada, o facínora aos poucos voltava a se recuperar.
Bastante vigiado, com visitas restritas; um dia tentou subornar um dos vigilantes do hospital, para apossar da arma acautelada; o funcionário não aceitou a proposta, delatando-o a equipe que montava a guarda.
Em conversa reservada com uma das enfermeiras, disse-lhe se achar praticamente recuperado; que apenas a perna fraturada o impossibilitava de eliminar a equipe de escolta e ganhar a liberdade.
Na ultima vez que sua companheira esteve a visitá-lo, conseguiu levar por baixo da peça intima, uma pequena pistola 6.36mm, que só não passou ao domínio do cúmplice por ação da atenta vigilância. O fato foi descoberto e a partir de então, medidas mais restritivas foram tomadas quanto às visitas.
Virava mexia, estava o marginal astuciando alguma coisa, e a força policial temia a qualquer instante eclodir um novo desfecho trágico. A tentativa de um resgate não era descartada.
Um dia, numa levada de surpresa, a equipe de enfermagem que atendia o preso foi substituída por outra. No segundo dia dessa mudança, pela manhã, o paciente começou a apresentar sintoma de febre alta, calafrios e por fim convulsões. Médicos e enfermeiros se revezavam no atendimento, mas a cada dia que passava ia piorando o quadro clinico.
Medicação cientifica a base de fortes antibióticos era usada no paciente que passou a definhar, acometido de uma infecção bacteriológica sem meios de ser debelada.
Já haviam passado dois meses desde o dia do primeiro episodio e agora a situação de saúde do individuo agravava-se. Perdera bastante peso, apresentando um aspecto cadavérico. Passara a viver um calvário, contudo, em instante algum, fora visto reclamando da sorte, ou ao menos esboçando gemidos.
Corria o tempo, e quando em estado gravíssimo, moribundo, somente aguardando o sopro da morte, recebeu a visita da tia, a bruxa, que disse ter ido somente para liberar as correntes de magia negra das forças ocultas que retardavam a sua partida, pois sabia que a trajetória do sobrinho chegara ao fim . A idosa aproxima-se do leito de morte, dizendo: ainda bem que vocês me chamaram... o suplicio chega ao fim, ele tem o corpo fechado e só minha reza é capaz de desencarná-lo. Mas antes... continuou: retirem todas as armas que tiverem aqui neste recinto. Os policiais se entreolharam... afastaram-se um pouco, discutiram alguma medida, e terminaram por concordar, deixando todo o armamento nas mãos dos colegas que se postavam no corredor.
A guia espiritual aproximou-se da figura esquálida, untando a parte superior do corpo com unguento, colocando a mão direita sobre sua cabeça. Fechou os olhos, como se tivesse concentrando em algo, e comprimindo os lábios, proferiu sua oração. Todos os presentes ao ritual sentiram um arrepio nos poros; e logo o moribundo começa a se inquietar, forçando a respiração, elevando o volume do tórax como se fora explodir... Por fim, brada um gemido estarrecedor..., que mais pareceu o grunhido de um bode. Um alvoroço contagiou o pavimento da enfermaria, deixando a todos confusos e perplexos. A feição da mulher se descontrai e duas gotas de suor escapam-lhe da testa percorrendo toda extensão lateral de sua face exausta. Agonizante, a criatura escancara a boca e dar o ultimo bocejo, tornando fechá-la, para sempre. Todos entreolham-se e não puderam conter o alivio estampado em cada feição.