A morte terceirizada

A batina, o hábito são costureiros; fazem a junção de almas, ou de corpos com dor, a quem vem para aplacar os danos, até áreas desgastadas são cerzidas e os laços se estabelecem, o uniforme é um agregador.

Ela chegava de manhã, não como se viesse para prolongar vida, chegava como quem vem para estender vidas unidas, chegava como um conservante.

A empatia era natural, as duas se olhavam e riam, como se um mal não estivesse presente; eram irônicas e falavam de forma sutil de coisas rotineiras, criaram piadas próprias, quase que em um código pessoal, às duas.

Começava a desaparecer o vínculo enfermeira-paciente, dando lugar a um amiga-amiga; fizeram-se companheiras e agradeciam ao mal que as trouxe uma para perto da outra.

De repente ela, em seu jaleco verde, começou a perder a cor, junto com o riso; os sorrisos eram apenas contrações faciais, sem sons, sem brilho e sem o gosto da amizade. Até mesmo foi surpreendida, pela paciente, chorando, mas sempre atribuía as lágrimas a problemas familiares, nunca revelou o que a incomodava.

Naquele dia ela, de forma surpreendente não rumou para a casa de sua amiga/paciente, procurou por um distrito policial, onde se entregou:

-Eu a matei, ou melhor, eu não a deixei sentir as dores que sua doença provocariam, eu não suportaria vê-la sofrer, por um tempo indeterminado.

O advogado da família da morta, imediatamente apresentou à polícia o testamento da vítima, que mencionava a ré como beneficiária de uma parte substancial do acervo que estava sendo deixado.

Todos que acompanharam a “amizade” que se estabeleceu entre as duas fizeram-se de juízes e algozes da enfermeira, uma assassina fria, que matou a amiga por um punhado de moedas, a eutanásia foi descartada, o mal que acometia a enferma não vaticinava dores lancinantes ou que justificasse a ação criminosa, ainda que em nome de uma ternura a preservar.

Era uma cidade pequena, o delegado, conhecendo todas as pessoas envolvidas no processo, negava-se a aceitar, passivamente, aquele assassinato, ainda que as provas fossem cruciais, não havia muito o que se discutir, ou não davam margens a outras ilações.

O médico, que conduzia o processo de recuperação da enferma foi chamado, pelo delegado, para um papo informal, para esclarecer pequenas dúvidas, ou peças que não se encaixavam perfeitamente no quadro montado na cabeça do policial. Foi quando veio à tona que o médico revelou dar, periodicamente, ao marido da paciente, atestados em branco, apenas assinados, a justificarem as faltas do marido à empresa em que trabalhava. O tempo de serviços prestados à família, dava credibilidade ao marido da vítima, que junto com sua amante, uma outra médica na cidade, transformavam aqueles supostos atestados em branco em boletins médicos, que davam à paciente a condição de doente terminal, com prognóstico de dores insuportáveis.

A enfermeira amiga, sugestionável, e ligada por profundo carinho à paciente, dobrou-se às lamentações do cônjuge ardiloso, alegando que não suportaria o sofrimento da esposa enferma

Conduzida pelo carinho que sentia, por um boletim médico forjado e pelas falsas lamentações de um marido que pretendia ficar com toda a fortuna da esposas; a enfermeira matou, ou abreviou o sofrimento de alguém, que à luz da verdade não iria sofrer

O delegado somou o nome do marido e da amante, à peça inicial a ser encaminhada ao Promotor Público, com a qual ofereceria a denúncia do crime em pauta

Roberto Chaim
Enviado por Roberto Chaim em 01/02/2013
Reeditado em 01/02/2013
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