A Tela de Ouro
Agora contarei o história da tela de ouro. Era um grande suporte, internamente novo, preso a uma elegante armação móvel. Cássio tinha todos os motivos para ficar boquiaberto quando viu-a em casa. A tela que ele acabou de pintar, um artista iniciante que fez uma obra prima em menos de três horas. Seria ilusão de seus olhos? Não era: a tela estava ali, presa no cavalete da alcova, a olhar para ele, talvez tão espantado, como ele, da imagem pintada e da situação.
A mulher não estava no dormitório, nem na casa. Deixou-se ficar na praça central, a folhear um romance, sem corresponder muito nem pouco as fitadas de quem passava. Pois era uma moça bonita, ainda que um tanto pálida, ou por isso mesmo. Era pequena e forte: de longe parecia uma criança; de perto, quem lhe examinasse o corpo apenas, veria bem que era uma mulher como mutias, mas que gostava de ler como poucas. Estava molemente reclinada no banco, com o livro aberto, e os olhos no livro, os olhos apenas, porque o pensamento estava além dele.
Cássio lançou mão do celular com uma expressão que não me atrevo a descrever. Nem a imagem da tela que ele acabara de pintar era compreensível, apesar do hiperrealismo de sua pintura. Tratava-se de algo surrealista. Cássio gostava de surrealismo, e passava horas estudando e praticando, chegando a ficar várias noites sem dormir.
Por esse motivo, e outros que são óbvios, compreenderá o leitor que o pintor se entrasse a passear pelo quarto, com o celular no ouvido, esperando a ligação ser completada.
Daniela acabava justamente de ler uma página e voltava a folha quando seu celular tocou como um trovão.
Cássio, depois de dar duas voltar no dormitório e passar a mão nos cabelos, parou defronte a ligação:
--- Oi.
O silêncio era profundo. Cássio foi o primeiro a romper, repetindo a fala anterior e virando os olhos a tela.
--- Oi. Disse uma voz doce e meiga.
--- Por favor, venha pra cá agora. Disse Cássio que novamente passa a mão no cabelo.
--- Mas por qual motivo? Pergunta com ar de indiferente e de quem não foi convencida.
Cássio não respondeu a interrogação da mulher; olhou algum tempo para a tela; deu mais uma volta no quarto, depois tirou o suor do rosto com a mão, por modo que a moça de novo lhe pergunte:
--- Porque queres que eu vá?
--- Eu preciso de sua opinião.
Ela mordeu os beiços e se levantou.
Cássio puxava raivosamente os cabelos, batia com os pes no chão, e tentava lançar o fatal objeto pra cima da cama mas não conseguia. A tela era sua obra prima, algo que se dedica uma vida inteira para ser completa e que não deve ser tocada, só vista. Terminada esta primeira manifestação de furor, Cássio se pôs ao objeto e examinou-o, ação que lembrou de não ter feito após terminá-lo. Cruzou os braços durante algum tempo e refletiu sobre a imagem, interrogou todas as suas recordações, e concluiu no fim de tudo que, sem uma explicação da moça qualquer procedimento fora baldado ou precipitado.
Uma moça chega á casa de Cássio, uma moça diferente a da praça; essa é mais velha, mais bronzeada e morena. È recebia imediatamente com alvoroço e arrastada até o local do crime. Na alcova Cássio agarra-se a pintura para mulher ver, que ergue lentamente os olhos para grande tela; Seus olhos parecem perder-se em tantos detalhes,é tanta informação que eles captam que ela para de olhar, se dirige ao Cássio e diz:
--- Foi você que pintou isso? disse a mulher, com a voz igual a do telefonema de Cássio.
--- Sim. Responde rapidamente enquanto olha para tela também procurando respostas.
Ela se volta a pintura e utiliza toda a sua habilidade lógica aprendida, para tenta ligar todo tipo de detalhe que ali se apresenta e, de canto de olho, espia as reações de Cássio, que parece tão perdido da realidade quanto a sua pintura.
--- Que enigma é esse? Perguntava a si mesmo Cássio. Se não era um mimo de anos á arte, que explicação pode ter a tal pintura.
--- Pintasse isso quando? Pergunta ela com ar de desconfiança.
--- Logo depois de acordar.
O silêncio obscuro tomou conta do local; apenas os olhos se mexiam, observando a complexidade da imagem e o espanto em ver uma pintura hiperrealista de um assassinato á tiros de uma moça dentro de uma cozinha.
Assim acabou a historia da tela de ouro.