O disfarce da mentira
1
Juarez está sofrendo. Suzete, mais conhecida por Suzy, está traindo-o com o patrão dela, o doutor Barros, o homem grande, moreno, risonho, “charmoso” (segundo a definição da mulher)...
A dor de cabeça. Os gestos nervosos. Ah, por que a Suzy não lhe propõe a separação, para cada um traçar seu próprio caminho, como seres civilizados, modernos? Será mais compreensivo...
O mutismo dela. O próprio evitar do amor. As desculpas. As horas extras na Companhia. O celular que toca de repente. A voz sussurrada respondendo.
- Tá bem. Entendi. Não, não faltarei.
O rosto de lado, no disfarce da culpa. Ele então aos poucos, foi juntando os detalhes e a certeza foi dominando-o: Suzy o traia. Mas, para ser sensato, uma mulher nova, esguia, morena, bonita, sem filhos, com o marido branco, “coroa”, meio gordo, de estatura pequena, um tipo comum, e no mundo atual onde não mais há moral, os tabus são derrubados... Sofre com tudo isso, mas, como um homem que preza o amor próprio, necessita tomar uma decisão prática, realista. Se falasse com ela, num jogo aberto, lhe dissesse que o mais sensato será mesmo o desquite, cada um seguir seu próprio destino?
- É, conversando, a gente se entende.
Diz em voz baixa, já enrouquecida pela embriaguês e, sorrindo conclui:
- Besteira ficar “encucado”. Bola pra frente.
O garçom se avizinha solícito, profissional:
- Mais alguma coisa senhor?
- Moreno me traga outra dose, reforçada.
- Tudo bem.
Responde o rapaz, afastando-se em sentido do balcão, no fundo do salão que começa a se encher ante a chegada da noite.
- Outra dose pra mesa daquele cidadão ali.
Pede o garçom ao proprietário, um sujeito amarelo, gordo e envelhecido que sorri:
- O “coroa” tá enchendo a cara. Parece que tá com “dor de corno!”.
Gargalham, enquanto o outro à mesa, fita-os perplexo. Desconfiado. Será que eles também já sabem?
2
O Barros que é grande, moreno, risonho, “charmoso”... É mesmo um canalha! Usou-a como pôde no leito. Aproveitou-se de sua “queda” por ele!
- Cafajeste.
O rosto do homem se volta e sua voz indaga, numa perplexidade:
- Falou Suzy?
Ela sorri, disfarçando-se. Para que lhe dizer o que pensa, a conclusão que já chegou ao seu respeito? Não, por enquanto, não. Depois... Sim, sempre há um depois, que tudo soluciona em nossa vida.
O carro segue na noite alta. Os edifícios modernos, imponentes, bonitos nas laterais. As calçadas praticamente vazias. As luzes dos automóveis e motos como olhos acesos, numa seqüência poética. Tudo como num filme assistido. Bonito. Até quando assim?
- Suzy vou ter de viajar amanhã. Vou passar uma semana fora, no Rio.
Ela não responde. É mentira! Ele está evitando-a, já se inicia o jogo de quem vai se afastando, de quem está...
- Você não diz nada não, querida?
A voz aveludada, numa mentira do disfarce.
Mantendo o rosto ao que o carro vai deixando para trás, ela responde:
- O que posso dizer? Você vai a trabalho. Eu entendo.
Silenciam, voltados aos mundos íntimos.
A que ponto ela chegou! A decepção ante a convicção de que o Barros está aos poucos, fugindo, evitando-a... Enquanto o marido, Juarez, anda esquisito. Mais calado, como se já soubesse de tudo e apenas esperasse o desfecho da separação entre ambos... Ela então, toma a decisão de lhe propor o desquite. Será um gesto sensato, leal e bonito. Sim, lhe falará abertamente...
- Vai sentir a minha falta Suzy?
O sorriso irônico, os olhos que brilham mais, a voz de novo aveludada? Ah, Barros, agora eu lhe entendo. Sei quem você realmente é, um “conquistador”, que só deseja (e consegue) satisfazer seus atos sexuais...
- Vou, claro que vou!
O rosto dela retorna à fingida atenção ao que vai ficando para trás e, de repente, as mãos grandes, morenas do homem pressionam com força a direção, no comando que faz o veículo entrar à esquerda, ganhando o novo bairro. Vencendo a noite que como sempre, indiferente a tudo, envelhece.
Egoisticamente envelhece.
3
Tudo resolvido, com a separação entre ele, Juarez e Suzy.
- Vamos dar um “tempo”...
Ela dissera e ele, aquiescendo, com o coração pesado, pois lhe queria bem, apesar dela se tornar amante do homem grande, moreno, sorridente, “charmoso”... Prostituir-se. Mas, assim era o mundo atual, onde tudo acontecia. Ele era de outro tempo, onde tudo era diferente, a moral, a vergonha...
Seis meses decorridos da separação e agora, defronte à televisão, assiste ao noticiário policial, que de repente trata do corpo do rico industrial encontrado morto, com um tiro na boca, em seu apartamento no Bairro de Boa Viagem. O corpo do homem alto, moreno, bonito...
- Até o momento, a policia não sabe com exatidão quem seja o verdadeiro assassino. Apenas suspeita de uma mulher bem vestida que o visitou na noite anterior ao crime... A investigação prossegue, com esse mistério que a autoridade espera solucionar em breve.
Então os comerciais.
Juarez pressionando o controle desliga o aparelho e continua no sofá, refletindo. Será que foi a Suzy quem matou o doutor Barros? Fecha os olhos e continua refletindo.
Sim, o ser humano é capaz de tudo.
- Tudo!
A repetição, no desabafo do sujeito vivido, prático, enquanto mais do que nunca, sente a própria solidão.