O GRANDE ENCONTRO ou BUDAPEST

Capítulo I -

O onibus corria em direção a Budapest, trepidando insuportavelmente devido a pequenos retentores no leito da estrada, destinados a evitar derrapagens no inverno, quando o asfalto se cobre de fina camada de gelo.

Devido à obrigatoriedade de descanso a cada duas horas, o ônibus fez uma das chamadas “paradas técnicas” numa das sofriveis lojas de conveniência existentes ao longo das rodovias do leste europeu, nas quais os sanitários situam-se sempre em dependências externas, longe do prédio principal.

Entro na lanchonete aquecida e interesso-me por algo de comer, que se acha fora do meu alcance, dentro da vitrine do balcão.

Dirijo-me à única pessoa que, do lado de dentro do balcão, possivelmente poderia atender-me e, em inglês macarrônico, pergunto-lhe se o estabelecimento aceita pagamento em euros, considerando que a Hungria, embora faça parte da Comunidade Européia, permaneceu com sua moeda nacional.

A mulher, que falava em voz baixa com um homem de meia idade, alto, de aparência germânica, sem olhar para mim responde qualquer coisa em húngaro, que, pelo olhar de comiseração que me lançou o alemão, deve ter sido uma enorme malcriação, tendo em vista que aquela gente só sabe raciocinar sobre uma coisa de cada vez.

Como não entendi nada, fiquei por ali disfarçando,fingindo que procurava alguma outra coisa, quando vi o alemão vindo na minha direção, com a mesma cara de compadecido. Perguntou--me: - Deutsch ? Não sei porque , respondi “Ja”, posto que essa é a segunda palavra que sei pronunciar em alemão. A outra é “Danken” (obrigado) e foi o que eu disse ao homem, apesar de nada ter entendido, depois de ouvir dele como que uma longa explicação, que me soou como se quisesse desculpar-se por algo ofensivo que a balconista me lançara.

Embora estivesse muito frio, resolvi sair da lanchonete e aguardar, fora, a saída do ônibus

Frustrado por ter sido maltratado naquele lugar, dirigia-me à porta de saída quando, subitamente, entraram na loja policiais uniformizados com roupas de combate, armados, que.empurrando-me para dentro, cercaram-me e , de forma violenta prenderam-me com algemas. Eu, atônito, sem saber o que acontecia, pude ver que o mesmo tratamento fora dispensado à mulher do balcão. Ato contínuo, fomos, os dois, empurrados para o frio do exterior e colocados junto ao alemão, que também se achava algemado próximo a um automóvel preto, sem nada que o distinguisse de uma carro comum. Os homens que nos prenderam empurraram-nos para dentro do carro preto, onde nos sentamos no banco de trás, o alemão de uma lado, eu do outro e a mulher no meio. Completamente aterrorizado com tudo aquilo e já começando a sofrer uma ataque de asma, tento perguntar à mulher, em meu sofrível inglês, o que estava acontecendo. Ela, trincando os dentes e quase num sibilo respondeu com algo que, novamente , pareceu me um insulto. Suplicante, olhei para o alemão e ele, com aquela mesma cara de piedade, diz: “Deutsch” ? Já desesperado, viro para ele e grito: “No. No . No Deutsch ! Brasil, I am brasileiro”. Ele, olhando-me com mais comiseração , disse “Oou”, como fazem os estrangeiros quando você diz que é brasileiro. Apesar disso, iniciou outra dissertação, em alemão, como se novamente pedisse desculpas pela malcriação da balconista. Quando terminou, eu, com ar apalermado, sem ter entendido absolutamente nada do que o homem dissera e, com a cabeça vazia de qualquer pensamento, balbucie automaticamente: “Danke”.

E o carro seguiu , trepidando, com os três prisioneiros, a bordo, rumo a Budapest.

Capítulo II –

O carro transportando os três prisioneiros corria pela estrada e eu, um deles, já sofria nos intestinos o pavor que se apoderara de mim. Esforcei-me para lembrar alguma coisa que , antes da viagem, lera sobre a Hungria e , principalmente, sobre a policia húngara, vindo-me à memória algo como “Autoridade de Proteção do Estado” ou simplesmente AVH, que, famosa pela crueldade, era um apêndice dos serviços secretos da União Soviética . Procurei, entretanto, manter a calma e afugentar esses pensamentos , mesmo porque aquela polícia fora dissolvida em 1956, após a insurreição de Budapest.

Já era noite quando chegamos à cidade e devido ao trânsito congestionado, o carro demorou cerca de uma hora para atingir a chefatura de polícia, não sem antes passar pelo número 60 da Rua Andrassy , onde se situa a ‘Casa do Terror”, quartel general da AVH, hoje transformada em museu.

Ao chegarmos ao nosso destino, nós, os três prisioneiros, fomos empurrados por um corredor estreito e mal iluminado e, logo , fizeram-me parar frente a uma porta, enquanto os outros seguiram adiante. A porta se abriu e alguém puxou-me para dentro de um quarto sem janelas, fazendo-me sentar em um cadeira de metal , à qual me ataram com cintos de couro, um no peito e outro na barriga, com as mãos para trás, ainda algemadas. Pendia sobre minha cabeça, há uns cinqüenta centímetros de altura , uma luminária da qual jorrava uma luz intensa, que, à primeira vista, quase me fez rir, posto que não compreendia como fora meter-me naquela enrascada e, ainda, por cima, preso numa câmara de tortura perdida no tempo.

Nesta altura, tanto os intestinos como a bexiga já me incomodavam bastante e, pior, não podia usar a minha bombinha de asma, que fora confiscada na revista a que fui submetido, na qual subtraíram o meu passaporte e minha carteira, contendo euros e cartões de crédito. Além disso, levaram minha mala, que foi retirada do bagageiro do ônibus. De todo modo, mesmo que a bombinha tivesse ficado, como de costume, no bolso de trás das minhas calças, não poderia usá-la com as mãos presas à cadeira metálica.

Entra na sala um policial fardado e, de maneira brusca diz-me alguma coisa em húngaro, que, evidentemente, não entendi. Tentei comunicar-me com o meu inglês fajuto , dizendo: ‘ I am brazilian. I don’t know what I am doing here”. O policial iniciou então, uma gritaria que durou pelo menos meia hora. Não me bateu. Só gritou, sob aquela lampada que torrava meus miolos. Veio-me, então, à memória, mais alguma coisa que lera sobre a tal “Autoridade de Proteção de Estado” : tortura psicológica, para extrair confissões, cujas sessões duravam as vezes mais de um ano.

Mas, no meu caso, confessar o que?

CAPÍTULO III –

Acredito ter permanecido naquela sala a noite toda, submetido à gritaria do policial fardado, que repetiu-se , seguramente, por umas dez vezes, entre intervalos.

Não sei quanto tempo se passou depois daquela sessão de tortura quando alguém entrou na sala dizendo, com uma voz cordial: “Buenos dias.!”

Eu, no meu torpor , já com a bexiga instintivamentte esvaziada, com os olhos inchados e fechados, exausto e com o corpo totalmente adormecido, respondi , baixinho: “Buenos dias”, certo de que falava com um camareiro de hotel na Argentina.

E o homem continuou: “Que horror, este ambiente está fedendo.”

Ele aproximou-se de mim e perguntou: “Como estás ?”.

Ao que respondi, em portunhol:“Como estoi”. Éres alguna espécie de idiota?”

“Calma. Estou aqui para ajudá-lo”, disse ele, agora tentando falar um português lusitano.

Lembrei-me dos filmes da televisão, em que , nos interrogatórios dos suspeitos, primeiro vem o policial “mau” e depois, o “bonzinho”.

“Como manter a calma se não sei porque estou aqui.” “Quero falar com alguém da embaixada do Brasil”.

“Você sabe, sim, porque está aqui”. “Diga quais foram as instruções que Helmut Reines lhe passou e você vai embora.”

“Instruções de que, puta que o pariu! “Não conheço nenhum Helmut”.

“Claro que conhece. Você manteve com ele um grande diálogo lá na lanchonete da estrada.

“Pelo amor de ... ! Aquele alemão ? Nunca tinha visto aquele cara antes. Nem sei o que foi que ele me disse! “Achei que ele estava pedindo desculpas pela malcriação da balconista”.

“Ah sim,” disse o policial. “ Maria Antonieva, que faz parte do esquema”. “Você foi visto falando com ela.” “O que foi que ela lhe disse?”.

Eu, já cansado daquilo tudo, respondi: “Olha, quer saber? “Quero alguém da embaixada brasileira aqui, imediatamente. Eu não falo mais nada, porque vi que não adianta.”

“Está bem”, o policial disse. “Mas, quero lhe fazer a última pergunta e se você responder direitinho, sai daqui agora mesmo.” “Onde será realizado o ‘Grande Encontro?”

Já de saco cheio, respondi com outra pergunta: "Quer mesmo saber? Vai ser realizado em Estocolmo! Vai estar todo mundo lá. O Lula, o Chico Buarque, o Zé Dirceu, o Obama. Sem contar o Chaves, que ainda não confirmou. Vai ser um grande evento.”

O policia olhou-me espantado e saiu da sala. Pouco depois entrou outro policial, que, sem dizer nada, soltou as correias de couro que me prendiam e libertou-me das algemas, levando-me para outra sala no fim do corredor. Lá, um homem apresentou-se a mim, dizendo chamar-se Amilcar não sei de que e que era funcionário da embaixada do Brasil.

Ele me disse: “Você está livre para ir embora. Vou levá-lo a um hotel, onde está reservado quarto para uma noite. Sua mala já estará lá. Descanse e, se aceitar um conselho, vá embora deste pais o mais depressa possível. Aqui estão o seu passaporte e sua carteira. Conte o dinheiro para ver se está certo. Confira também os cartões de crédito.”

“Espere um pouco”, respondi. “Então é assim? Sou preso e torturado sem ter feito nada que justificasse isso e tenho de ir embora, quietinho? Que negócio é esse de Grande Encontro ? Que é que tem o alemão a ver com isso? “

“Olha”, disse ele. “O alemão estava sendo procurado por toda a Europa. Dizem que ele é o mentor do Grande Encontro. Não me pergunte mais nada porque trata-se de assunto muito sério, de segurança mundial e eu não tenho autorização para falar sobre isso.”

Sujo e cheirando a urina seca, fui colocado no assento de trás do carro oficial da embaixada brasileira e levado ao hotel, passando, no caminho, pela “Casa do Terror, onde se prendiam judeus para interrogatório e “confissão”. Pensei comigo: “Será que mudou alguma coisa?”

Depois de um banho , de um sono agitado mas reparador e com roupas limpas , coroados com razoável café da manhã, deixei o hotel cuja diária já estava paga e , num taxi, eu e minha mala rumamos para o aeroporto, com a promessa íntima de nunca mais voltar àquele país.

EPÍLOGO

Desde os acontecimentos narrados já se passaram dois anos, sem que, nunca, alguém tenha se interessado em saber sobre o que ocorreu em Budapest. Se porventura me tivessem perguntado, contaria esta mesma história.

A verdade, porém é que, quando aquele policial “durão” começou a interrogar-me, logo percebi tratar-se de um tolo, que não tinha a menor idéia sobre o que , aos gritos, queria que eu “confessasse”. Pensei : “bem, a coisa não está tão ruim quanto eu temia.” “Dá para agüentar”. Daí, quando veio o outro palerma falando espanhol, resolvi inventar aquela bobagem do Lula,Obama, etc. Não sei se ele acreditou, mas o fato é que fui solto logo em seguida.

Nunca mais tive qualquer contato com Helmut Reines e Maria Antonieva. Aquilo que meus inquisidores chamaram de “O Grande Encontro’ acabou não se realizando devido ao cerco que se formou por toda a Europa.

Se a policia de Budapest tivesse pesquisado mais a meu respeito, teria descoberto sobre os cinco anos em que vivi em Berlim, especializando-me nos idiomas germânicos, eslavos e urálico, este último, raiz da língua falada na Hungria...

FIM

Nota do autor: Este conto é puramente ficcional, nada tendo a ver, na verdade, com o amável povo húngaro.

Budapest ou Budapeste é uma bela cidade, cortada no meio pelo Danúbio , no qual Strauss enxergou algum azul. Dizem que, às vezes, ao entardecer de um dia extremamente claro, é possível vislumbrar nas águas mansas do rio alguns matizes de azul , mas fica nisso. De um lado do rio acha-se o Distrito de Buda e do outro, o de Peste, correspondentes a duas vilas que se incorporaram , formando a cidade batizada com a junção daqueles nomes.