O caçador
Conheci Irineu e desci aos meus infernos , numa manhã idiota como tantas outras . Fui procurado por um sujeito gordo, ofegante , baixote , cabelos crespos salpicados de tinta acaju, sorriso espástico de apresentador de TV , num terno azul -marinho testemunha de dias melhores , nariz achatado tal um velho boxeador, apoiando um ray-ban autentico como uma nota de três reais ; um bom - dia deslizou - lhe com a saliva , pelos cantos da boca : um figuraço , Pedro Toledo , o caçador de provas , dizia o cartão de visita , provavelmente impresso em casa , em tonne agonizante .
A atendente o acompanhara , abrindo a porta no seu melhor sorriso maroto , tipo vai que é tua , bonitão . Agora , Pedro Toledo, o caçador de provas,á minha frente, encadernado em azul – marinho de liquidação suburbana ; sob o paletó , um volume na cintura que não era a varinha de Harry Potter de jeito nenhum ; plena eloqüência de desmazelo boçal e tupiniquim .
Indiquei – lhe uma cadeira , sentou – se , exibindo um riso avariado de nicotina , alcatrão e prótese dentária que oscilava precariamente naquela boca que já parecia um ferro – velho.
- Doutor Clóvis Matos ? Prazer em conhece- lo . Meu nome verdadeiro é Irineu , mas por questão de sobrevivência mercadológica, virei Pedro Toledo . Passei uma vez por uma rua em São Paulo com esse nome , achei bonito e tasquei no cartão ; melhor que Irineu , o caçador de provas , não acha ?
Concordei com a cabeça e o Pedro Irineu vendeu seu peixe , sem delongas :
- Doutor Clóvis , minha dentadura não é nenhuma Brastemp , mas vim procura – lo por um motivo que talvez tenha a ver com o seu sorriso ou não ...
Dei de ombros, lembrando um personagem judeu , do filme assistido noite passada ; instintivamente meu olhar buscou a foto de uma pichação , sobre um muro , souvenir dos anos setenta , mantida sobre minha mesa : “vem aí uma tempestade de merda...” , escrita em inglês , relíquia do ano da reeleição de Nixon , profética na caligrafia apressada das pichações ; esfreguei o nariz meio que inconscientemente, pedi que continuasse ; a anta prosseguiu :
- ...venho rastreando este senhor , a pedido da mulher dele , a doutora Ana Maria Mendes , para esclarecer suspeitas de traição que estariam azedando o relacionamento conjugal - colocou sobre a mesa, bem á minha frente , uma foto de um sujeito branquela,magro , nariz adunco , vestido em terno elegante , caminhando taciturno numa rua central da cidade ; em seguida , colocou uma segunda , ladeando a anterior : o mesmo sujeito num carro importado , beijando tipo respiração boca a boca , uma mulher de rosto inclinado para trás , sentada no banco do carona ; sacou uma terceira foto , disposta ao lado das outras duas, num gesto de crupiê mal ajambrado , de cassino clandestino : em cores , Carolina , minha já não muito digníssima esposa, saindo de um motel , mesmo carro , mesma placa , ladeando aquele cavaleiro de triste figura , para quem sorria tão ternamente , lindos dentes , que ultimamente eu só via na cadeira do meu consultório.
Fotos de excelente qualidade, indicativas de equipamento bem caro e uma perícia até então inesperada , naquele duende . Alguém falou que apenas os imbecis não julgam pelas aparências e eu não era a exceção. Enviou – me um olhar sutil tal uma sonda de petróleo ; tentava tomar o pulso da situação , sentir o efeito daquela latrina despejada sobre minha mesa .
Tirou os óculos, ostentando o olhar caolho e endurecido pela bandalheira em alto estilo , curiosamente escarnecedor e cúmplice .
- Conhecedor de sua integridade e hombridade , resolvi após muita ponderação , procura – lo ,antes de levar o material á doutora Ana Maria .
Fitei uma ruga entre seus olhos , pensei que hombridade era uma palavra – fóssil , hilária, até emoldurando uma chantagem . Não seria Irineu meu condutor nos meandros da sacanagem nossa de cada dia :
- Senhor ou doutor Irineu ? O senhor me parece um profissional exemplar, íntegro e conhecedor de sua arte . O relacionamento afetivo com minha esposa acabou há muito ; mesmo convivendo sob mesmo teto , vez por outra conversamos assuntos de ordem prática , nada além . Adultério deixou de ser crime ,putaria não é crime ; é putaria .Carol não depende financeiramente de mim , muito menos eu dela ; sinto frustrar seus negócios , mas a saída é pela mesma porta por onde entrou . Em relação ás fotos, faça delas o uso que quiser.
A mão gorda ,luzidia, de dedos manicurados, recolheu as fotos da mesa , enfiando-as num bolso interno do paletó , levantou-se, colocou os óculos , um rápido cumprimento de cabeça e saiu da sala , faceiro e macio .
Irineu foi embora, deixando no ar um tom cinzento de escárnio ,além da trilha sinuosa de perfume barato .Imaginei- me convincente ; àquela altura , para ele, mais um corno manso lhe fechara a carteira . E não se falava mais nisso . Simples , até demais. Correram os dias e aquela conversa revirava na minha cabeça, tal um cubo mágico, piruetando entre os hemisférios cerebrais.
Comecei a sentir o que há muito tempo era uma mera constatação, sem peso emocional , etéreo , flutuando em vôo livre pela consciência ; o pensamento virava um sentimento de tristeza e perda de tempo,a existência batendo de cara contra o muro.
Logo percebi a tristeza transmutada em ódio . Uma tarde após o almoço, Carol reclamando de um molar cariado ; erosão mínima , liberando uma obsessão .
Na tarde seguinte , Carol na cadeira , boca aberta , lindos olhos , de tédio castanho e autocomplacente . Marisa do meu lado, toda atenção de quem conhecia a rotina com a agilidade dos anos a meu serviço ;preparou e passou -me a seringa com anestésico que troquei pela seringa contendo escopolamina pura.
A seringa penetrou a gengiva rosada com precisão obsessiva ; em poucos segundos, um raio em céu azul: parada respiratória, em vão a angústia de Marisa e meu simulado desespero .
O socorro de urgência constatou o óbito ; a polícia chegou pouco depois, na pressa inútil e cara amuada de mecânica incompetência . Não teriam a mínima condição material de detectar escopolamina , pouco fariam além de emitir um laudo inconclusivo. Chega o Irineu á reboque ou quem sabe, á cavaleiro do meu caos ,paletó aberto , um distintivo brilhante pendente do cinto, pistola .9 mm descaradamente reluzente , olhar pesaroso afivelado na cara cínica , deu – me pêsames fingindo não me conhecer . Rápido olhar em torno,mandou–se daquele ambiente,agora irrespirável. Fiquei entregue a mim mesmo , como sempre estivera , sem sentir , percebendo ... “it’s coming a shitstorm..” , lá na foto .
Alguns dias depois, á custa de muito teatro amador, vi – me apaziguado . Voltei á rotina do consultório , de pacientes pontuais e solidários .
Exatos sessenta dias após a deliciosa viuvez , veio ter comigo um Irineu mais sorridente, mais meganha e menos duende ; nas mãos , a cópia de um laudo de exame processado em laboratório toxicológico do exterior, referindo positividade em alta dosagem para escopolamina , no corpo de minha ex mui digníssima esposa e senhora . Dez dias de prazo e a grana ; senão, prováveis vinte e um anos de xilindró fedorento, com enrabação a cada seis horas, regular tal antibiótico – complementou o radiante crápula, olho no olho. Quatrocentos mil reais pela permanência na minha doce vida. Mantive a calma , chequei a autenticidade do documento com um velho colega de secundário , ex-policial, movido á propina e bacardi carta ouro .
Trinta mil reais mais pobre e dez dias depois revejo o meu algoz , agora encadernado em terno preto risca de giz , gravata vermelha , cigarro apagado entre os dedos .
- Meu prezado doutor Clóvis , o tempo fluiu, seu dinheiro parece ter refluído da minha vista e minha paciência acabou,seu doutor escroto ! – brandia a cópia do laudo e seus nove milímetros de persuasão eram exibidos pendendo do cinto , paletó aberto , de pé ; eu sentado sobre onerosa tranqüilidade, contemplando o rosto boçal .
A ficha demorou , mas caiu . Irineu apenas notou as cortinas da janela se mexer menos suavemente : agora, dois policiais lhe davam voz de prisão por prevaricação e abuso de poder ; um deles aliviou – o do distintivo e da arma , o outro algemou – o , enquanto me pedia desculpas por existirem ainda policiais daquele tipo ; mas para isso mesmo , existia uma Corregedoria .
A sala de espera estava vazia, um Irineu cabisbaixo saía do meu consultório , algemado e pra lá de humilhado. Fui até a janela , contemplei um bom tempo a avenida e o formigueiro humano lá embaixo ; umas duas horas depois, vejo-me na tela do computador, uns bons trezentos mil reais mais pobre , na conta do consultório . Acionando o interfone , ordenei á Marisa a entrada do primeiro cliente do dia.
O trabalho dignifica o homem .