Ensaio de Carnaval
O marinheiro olhava fascinado as mulatas que requebravam sob a cadência do samba, faceiras e alegres, sacudindo as ancas como jamais ele vira em parte alguma do mundo. Ritmo louco, batuque louco, louco aquele povo todo e, o pior - aquela loucura o estava contagiando: ele batia o bico do sapato no chão duro da rua, tentando, desesperadamente, acompanhar o compasso do samba gemido pelos sons roucos das cuícas e cantado pelos tamborins e pandeiros barulhentos.
Chegara naquela manhã. O "Titã" ancorara no porto do Rio: ficaria dois dias. Trouxera um carregamento de bacalhau norueguês e azeitonas de Portugal, onde o "Titã" fizera escala também durante dois dias.
O capitão do navio avisara aos marujos que, no Rio, as escolas de samba faziam ensaio para o carnaval que se aproximava, quem o quisesse presenciar poderia passear pela cidade à noite.
Holdenis conheceu Esmeralda e pôde assistir àquele ensaio. Ele olhou a mulata que rodopiava à sua frente. Linda, muito linda. E Esmeralda caprichava nos requebros para o gringo ver o que é que a mulata tem.
Nenhum marinheiro estava com ele; os outros se dispersaram na imensidão daquele mar de luzes que se agitava com o ensaio carnavalesco.Holdenis não tirava mais os olhos da mulata de saia curta e belo par de pernas que batia os tamancos mágicos junto aos pés dele, sorrindo. Seguia a moça com os olhos e esperava o samba terminar para seguí-la com os pés.Esmeralda o provocava lançando-lhe, de longe,olhares de fogo.
A cuíca gemia, os tamborins repicavam e os pandeiros cantavam, mas o samba não chegava ao fim.Holdenis, que agora trocara o desejo de sambar pelo desejo de falar a Esmeralda e seguí-la, ansiosamente esperava. Sem outro jeito, recebia os olhares da cabrocha e devolvia-lhe outros mais expressivos. O estranja estava fascinado;bem lhe disseram que a mulata brasileira era fora de série.Agora ele comprovava e só tinha olhos para aquela, por isso não viu um mastodonte plantando-se a seu lado e continuou bebendo os sorrisos da mulher.
Enfim, o samba cessou. Os passistas cansados e ofegantes buscariam suas moradas.Holdenis procurava Esmeralda.Naquele tumulto, o zum-zum das conversas e os gritinhos estridentes e gaiatos das mulatas o deixavam impaciente.Onde estaria Esmeralda? Perdera-a de vista. Dali não se afastaria enquanto não a encontrasse.Recebia empurrões e seu olhar se estendia pela amplidão de gente. Buscava a mulata até que a viu.Mas, o que havia com Esmeralda? Falava irritada e gesticulando para um mulato gigante que procurava segurar sua mão sem conseguir.
Holdenis esperou.Esmeralda, alguns minutos depois, saiu balançando as nádegas bem feitas e deixou o mulato já bastante irritado, gritando:
- Vamo embora, Esmé, tu lembra do passado? Quer fazer a gente sofrer outra vez?
Esmeralda não o escutava. Seguiu por um lado e por outro, até que Holdenis a encontrou. O mulato os viu e, espumando, desapareceu na multidão.
Ao ver o marinheiro, Esmeralda sorriu provocante. Olhava-o com olhos quentes e sedutores.Holdenis tocou-lhe o braço:
-Sambas maravilhosamente!
Esmeralda riu cheias de dengues.
- Posso te acompanhar?-disse Holdenis.
- Se tu não tem o que fazer!...
Segurando-a pelo braço, ele se desviava de um e outro passante, procurando um lugar mais isolado. O casal se distanciava e era seguido por dois olhos raivosos. O mulato Tião estava transtornado. Recordava o passado.Há anos, Zizi, sua irmã mais velha, desaparecera. Fora em vão o esforço da família e da polícia para encontrá-la. A última notícia foi dada por um amigo de Tião, morador em Bangu, que dizia ter visto Zizi,no dia do seu desaparecimento, abraçada a um marinheiro, no porto do Rio.Zizi não o vira, tão enlevada estava. Três anos após aquele dia, a mãe de Zizi morrera e, pouco tempo depois, seu pai.
Tião relebra tristemente: um dia, o correio trouxera uma carta da irmã, endereçada à mãe, suplicando que fosse vê-la, dizia que estava à morte.Anexo, seu endereço. Mas a mãe já estava morta e Tião, que era o homem da casa, fora visitá-la e encontrara Zizi cadavérica, moribunda, em Belém do Pará, no meretrício. Ela narrara sua história: havia amado um marinheiro inescrupuloso que a enganara. Trouxera-a para aquela cidade prometendo-lhe casamento, porém já era casado. Abandonara-a, assim que Zizi lhe lançara no rosto sua infâmia. A moça reconhecera o quanto fora ingênua. Queria tanto se casar!Reconhecia que era romântica.Ela não tivera coragem de se comunicar com a família.Aquela vez era diferente pois Zizi sentia a morte se aproximar e não queria deixar esse mundo sem rever sua mãe.Porém morrera sem ter satisfeito seu último desejo.
A morte da irmã deixara Tião traumatizado.Desde aquela época tinha fobia a marinheiros e jurara a si próprio nunca deixar mulher de sua família enrabichar-se com marujos.Não por preconceito mas pela voz da experiência.Por isso, despejava nos ouvidos dos amigos sua mágoa contra os homens do mar.Pobre Tião!Não atinava que não se pode generalizar as pessoas pela profissão nem por nenhum aspecto.E dizia aos amigos:
- Gente que presta não anda com esses homens. Todo mundo sabe que marinheiro em cada porto tem um amor!
E, odiando tanto os marinheiros, como deixar Esmeralda com um deles? Não consentiria nisso.O gringo veria do que ele era capaz!- eram os pensamentos que passavam por sua mente doentia.
Ao fixar os olhos no casal que ria e conversava a raiva de Tião aumentou.
- Tu fala nossa língua, onde aprendeu?- ela dizia.
- Morei em Portugal alguns anos antes de viajar.
O vento trazia aaos ouvidos do mulato essas palavras mas Tião não as entendia bem. Resolveu seguir por onde pudesse ficar mais próximo dos dois, um local mais escuro, e esperá-los.
Alguns minutos se passaram e o mulato na tocaia.Avistou o casal abraçado e seu coração bateu descompassadamente. Alisou o cabo da faca.Não hesitaria.Esmeralda desconfiaria dele mas não teria coragem de denunciá-lo.
Quanto Holdenis passou no local onde o mulato se escondia, este pulou nas costas do marinheiro e o esfaqueou uma, duas, três vezes.Desapareceu mais rápido do que viera, na escuridão da noite. Esmeralda, horrorizada, fugiu também, antes que aparecesse alguém.
Infeliz Holdenis! Buscara o amor e encontrara a morte.E quando o apito do "Titã" soasse estridente avisando sua partida, seus ouvidos não ouviriam;à noite, quando as cuícas gemessem e passistas vibrassem no ritmo do samba, seus olhos não mais veriam os requebros provocantes das mulatas. Não mais, nos outros dias, ele fitaria o azul do oceano, ora tranquilo, ora revolto, seu companheiro durante tantos anos.
O "Titã" partiria sem um dos marinheiros louros.Os outros marujos sentiriam sua morte, mas os homens do mar procuram esquecer as tristezas. Logo ele cairia no esquecimento. Só Esmeralda se lembraria com tristeza e pesar daquele marinheiro estrangeiro que perdera a vida por ter se embriagado nos olhos quente de uma mulata.