Olhos de Gato
Era uma das lojas mais famosas da cidade.
Por ser grande o sucesso, fora preciso inaugurar um segundo andar para o melhor atendimento dos clientes.
Estrategicamente, essa passou a ser a seção dos brinquedos. Atraindo consumidores mirins, que por sua vez enlouqueciam os pais, obrigando-os a lhes presentear com pelo menos um daqueles milhares de brindes.
Mas apesar dos brinquedos e do conforto das instalações, o que realmente encantava a molecada em geral, era um fantoche no formato de gato lá no andar térreo, que através das articulações e da voz que seu manipulador lhe empregava, atraia a atenção de todos para o novo andar que acabara de ser inaugurado.
Tudo ia bem. Até que um dia logo cedo, quando os funcionários chegavam ocupando os seus postos de atendimento, algo terrível sucedeu: Um rapaz novato que à pouco havia sido contratado, tentando ser cordial com uma antiga zeladora da casa - que vinha carregada de utensílios de limpeza e demais apetrechos - abriu-lhe despercebido a porta do elevador que havia caído no dia anterior.
E lá no andar térreo, em meio aos caixotes e produtos de manutenção, o corpo ensanguentado da pobre mulher ficou estendido, próximo ao palco do gato, que se mantinha paralisado diante do triste ocorrido.
Todos os funcionários assustados tentavam compreender o trágico acontecimento, enquanto a dona da loja, amparada pelo sobrinho e sua esposa, e mais o gerente do estabelecimento, buscava encontrar uma solução para aquele inesperado dilema:
- Eu ia ajudar a zeladora a descer no elevador. Mas não sabia que estava danificado! - Argumentava o aflito novato. Ao que a dona da loja ponderou:
- Bem... Ela ia mesmo ser demitida nos próximos dias. Mas que pena! Diremos ao delegado que foi suicídio!
- Mas foi um acidente de trabalho! O elevador havia caído e eu não tinha tomado conhecimento disso! - Contestou o novato.
- Esqueça isso! A faxineira não tinha o costume de usar o elevador de serviço. Um escândalo desses pode acabar com a minha reputação e atrapalhar os negócios da empresa. [...] Ela se matou e está acabado! - Repreendeu avidamente a mulher.
Sendo a superior de todos ali presente, não encontrou maiores resistências quanto a sua decisão. Nem mesmo do novato, que temia pelo emprego arduamente conquistado.
O delegado foi então chamado e minutos depois um laudo técnico foi assinado, baseado nas afirmativas daquela conceituada senhora sempre com o sobrinho e a esposa ao lado.
O novato preferiu se afastar após o depoimento, trancafiando-se no banheiro dos empregados.
E horas depois, quando finalmente o delegado concluiu o caso, a voz do gato foi ouvida contando toda a realidade dos fatos.
A verdade foi então descoberta e a dona da loja junto ao sobrinho, foi acusada de negligência e homicídio culposo, sendo ambos condenados em juizado, à cinco anos de detenção.
O gerente, porém, escapou por não ter participação direta no acidente.
Para sua sorte naquele dia, tinha se atrasado para o trabalho.
O novato foi inocentado. E o homem que dava vida ao gato, recebeu o título de herói da história, por não ter se conformado em ficar calado.
No dia seguinte à tragédia, as manchetes dos jornais local afirmavam:
"Todos já haviam concordado com o mal. Só não contavam com os olhos do Gato, que não é animal!" [...]
Cinco anos se passaram e a loja continuou a prosperar com os produtos que oferecia.
O sobrinho, após cumprir sua sentença, decidiu ir morar com a esposa num luxuoso apartamento no exterior.
A dona da loja, cada vez mais rica, voltou a dominar seu estabelecimento, desfrutando de seus recursos em larga influência.
O gerente, continuou sendo gerente.
Quanto ao gato, coitado!
Foi encostado num canto do armário, enquanto seu manipulador e o amigo novato continuam à procura.
Pois há exatamente cinco anos passados, os dois estão desempregados.