Psicopata Genealógico

Caro leitor, este conto que vou lhe narrar, faz parte da arte incomparável da tragédia humana.

A tragédia é um gênero que sempre me fascinou; e para alimentar este fascínio eu cultivei o dom de ouvir as desgraças alheias...

De início, sutilmente, comecei a abordar pessoas que viviam por aí cabisbaixas, carrancudas... com olhos em esferas distantes – olhos d’alma... - Depois de certo tempo, percebi que as histórias destas pessoas, que eram de origem imaginárias, eram estórias... enfim, era apenas algo parecido com a hipocondria. Em resumo, perdi meu tempo com pessoas covardes o bastante para não viver na pele a emocionante sensação de carregar o peso de uma enorme tragédia na consciência. Então resolvi buscar na fonte, ou seja, onde são colocados estes artistas incomparáveis – nos presídios.

Ouvi histórias patéticas de maridos que matavam as esposas e os amantes destas, no próprio leito dele, o “corno”. Histórias de fratricídios por um simples porre, ou talvez o porre seja o de menos, ele é apenas o veículo condutor, pois este anátema pesa sobre a humanidade desde os primórdios... mas todos os protagonistas destas, eram homens rudes, que não sabiam olhar embevecidos para o quadro da consciência e se deleitarem com tão sublimes feitos artísticos.

Mas, como toda regra tem exceção, eu conheci um homem, apenas um que tinha noção, minto, ele compreendia, ele sentia todo o valor de sua obra. Este homem chamava-se... bem, não me lembro do seu nome, mas que importa um nome , diante desta maravilhosa tragédia que vou lhes narrar? Bem, para começar, eu direi que, apesar desta geração de homens descartáveis, o homem de quem falo, caro leitor, é um desses que só aparecem de século em século. Eu o descobri em um presídio, no Rio de Janeiro. Após conversar com o Diretor do presídio e expor-lhe o intento de minha visita, ou seja – desculpe-me leitor, mas eu tinha que dar uma explicação convincente a este vândalo da arte – que eu viera ali para aliviar um pouco a consciência dos presos, que era como uma terapia para aquelas mentes conturbadas. – Que blasfêmia!

Desculpe-me novamente, paciente leitor, por omitir-lhe um fato de suma importância: para alimentar minh’alma nesta límpida fonte, digo forma de arte, eu tivera que tornar-me Sacerdote, pois, só assim, poderia conhecer extra-judicialmente, estas delícias que habitam a alma do homem. – Pecador?!

Casualmente, após conversar com uma meia dúzia de presidiários, dirigia-me despreocupadamente – nenhum deles dissera algo que valesse a pena – por uma estradazinha, quando me chamou a atenção um homem que cuidava de um jardim, como amante algum jamais cuidou da amada! Com que ternura ele sulcava a terra aos pés das flores... com que leveza ele amalgamava, à terra, o estrume necessário... Sua dedicação era tanta, que ele misturava à água que preservava a vida daquelas plantinhas, algumas – que mistério! – lágrimas... Então pensei comigo: É neste amor, nesta profunda dedicação, que está amalgamada a verdadeira tragédia. E não me enganara. Após minha abordagem e as apresentações necessárias, tornei-me todo ouvidos. Ah, que recompensa, que prazer! Após tantos anos de pura imitação de arte, ali, naquele jardim paradisíaco, estava o mais sublime artista que eu jamais vira.

Que o leitor julgue por si mesmo: aí vai a mais bela Obra que ele apresentou aos meus ouvidos, aos meus olhos e, sobretudo, à minh’alma!

“Caro Padre, o que vou contar-te, jamais contei à pessoa alguma... agora dar-te-ei: mesmo antes de eu decifrar os caracteres que compõe a escrita, o que aprendi, só depois de minhas doze primaveras, eu me interessava pelo que de mais real e puro há no ser humano: A Dor! Lembro-me que, quando minha mãe contava-me a história de Jesus, eu ficava sempre em êxtase, quando ela chegava à crucificação. Então, ela me dizia: -"Ah! Como você é emotivo, meu filho!.... " Se ela soubesse que aquela emoção era um frêmito de prazer que me inundava a alma... Mas era um prazer infantil, sem lascívia...

Após terminar o curso secundário, procurei informar-me dos melhores livros de tragédias disponíveis nas Bibliotecas. Devorei-os todos, com um prazer luxuriante! Maravilhoso.... Por muito tempo, o genial Inglês saciou-me a alma ávida! Tive momentos de incomparável doçura, lendo os trágicos Gregos! Com que ardor! Acompanhei os passos de Édipo na sua maravilhosa sina. Voltando de tão longínqua data, deparo-me, extasiado com o demônio do amor e da morte numa encarniçada luta nas veredas do Sertão...

Durante toda minha juventude, e boa parte da minha mocidade, eu me saciei nas límpidas fontes destes gênios incomparáveis! Mas, chegou uma época em que minha alma pedia algo de mais concreto. Foi aí que arquitetei minha própria Tragédia.

Num final de semana, quando minha família estava toda reunida a festejar não sei o que em nossa casa de campo, eu, que sempre me conservava à parte de toda aquela alegria bestial, vinhos capitosos, risos estrepitosos, conversas, ou melhor, muitas vozes e nenhum ouvido, perguntei, com um sorriso, minto, com um meio sorriso:

Como vocês gostariam de morrer? Quando chegar a hora, é claro!

Começaram todos a falar ao mesmo tempo, entre sorrisos e piadas. Mal sabiam eles que estavam profetizando suas próprias vidas.

Meu irmão mais velho, muito sádico, dissera em tom de ironia que gostaria de morrer como Cristo e, como não tinha certeza se agüentaria a dor em silêncio, como o Cordeiro, que lhe colocassem na boca uma rolha. O mais novo, um libertino lascivo e luxuriante, babando vinho pelos cantos da boca pegajosa e nojenta, dissera que gostaria de morrer com o membro intumescido nas entranhas de uma cadela! Minhas irmãs, que eram três devassas ! Pensavam com o sexo. Escolheram, ou melhor, desejavam que a ceifadeira viesse durante seus sonos, que eram tão puros como o eram suas promiscuidades em hora de vigília. Minha mãe, esta não escolhera, dissera simplesmente que seria como Deus desejasse. Minha sobrinha, esta tinha apenas dois anos. Era órfã e morava conosco, e não tinha livre arbítrio, eu teria que decidir por ela.

Foi-se o final de semana e todos foram para a cidade novamente. Eu fiquei com o pretexto de descansar e meditar um pouco. Após as empregadas – digo empregada por força de expressão, eram duas mulheres das redondezas que faziam a limpeza aqui e acolá para alimentarem meia dúzia de bocas famintas – terminarem o trabalho, despachei-as e comecei a planejar minha grande obra.

Primeiro arrumei madeira e fiz uma cruz. Depois fui à dispensa e separei os cravos. Não havia ninguém para surrupiar nenhum deles! Meu mano velho teria um a mais que seu “Grande Cristo”! Que honra! Levei tudo para um dos quartos, tranquei-o e guardei a chave. Saí à procura de uma fêmea. Não encontrei nenhuma rapariga a soldo nas redondezas. Fiquei a meditar longamente... como um poeta à procura de uma rima perfeita que teima em fugir-lhe da mente... De repente! Veio a luz: para que procurar fêmeas alhures? Haviam três na família, que poderiam servir aos meus intentos... após a resolução deste ponto, passei ao próximo: como ou qual o método eu usaria para cortar o fio da existência de minha querida sobrinha? Após meditar longamente, achei que o mais lógico seria improvisar na hora H. Passei à minha mãe. Uma senhora tão entregue à vontade de Deus, merecia uma passagem para o Paraíso mais condigna de tamanha devoção... Ah, que momento de iluminismo para minha arte! “Sete Chagas, sete punhaladas”.

Tudo planejado, nos mínimos detalhes. Deleitei-me antecipadamente com a que seria a mais real das tragédias: eliminar o criador e a criatura. Reinar sozinho no paraíso de minha mente.

Dois meses depois daquele fim-de-semana sabe , foi programado outro. Com o coração aos saltos, tal qual a noiva que recebe o tão almejado pedido do amante, recebi a notícia em êxtase. Finalmente chegara o dia D. Dissimulei o mais que me foi possível as emoções e, tal qual Judas, tomei e brindei com eles um copo daquele vinho, que saboreavam tanto nos finais de semana. Todos me aplaudiram com os olhos brilhantes, afinal, achavam que finalmente eu me tornara membro daquela familiar festinha báquica! E para comemorarem, beberam mais que das outras vezes.

Impaciente com tantos brindes e gracejos idiotas, eu já confundia o vinho com o sangue que tingiria minha obra máxima.

Extenuados, foram todos para seus quartos. Ao cabo de meia hora, ressonavam estrepitosamente! Com o coração aos saltos, fui até o quarto de minhas irmãs. Todas dormiam numa confusão de lençóis, cabelos e membros. Peguei a mais nova nos braços, com todo cuidado, e levei-a para o quarto contíguo, onde dormitava, como um porco, meu lascivo irmão ;despi-a e coloquei-a junto a ele que, sonolento, sentiu apenas um monte de carne morna a seu lado. Sentei-me tranqüilamente e esperei. Após alguns minutos, percebi um brilho inequívoco em seus olhos. Logo se despiu com uma pressa animalesca e projetou seu corpo sobre o de nossa irmã... que apenas gemia entrecortadamente, imaginando um sonho erótico. Após algum tempo, levantei-me e retirei do bolso do casaco o revólver e disparei alternadamente sobre as duas cabeças. Eles soltaram apenas alguns estertores que se confundiram com o orgasmo. Deixei a arma sobre eles e dirigi-me para o quarto do mano mais velho...

Ele roncava estupidamente, num ror!... ror!... ror... nauseante. Sua boca exalava um cheiro acre de vinho e gordura. Busquei a cruz que estava no quarto ao lado e deitei-a no chão. Peguei o cordeiro que seria imolado e o deitei sobre ela. Formei outra cruz com seus membros; enfiei-lhe, na bocarra asquerosa, uma estopa, e logo comecei a crucificação: a mão direita, o sangue esguinchou! Seus olhos abriram-se desmesuradamente. Tentou gritar! Mas a voz, como fora seu desejo, ficara embargada... Peguei outro cravo. Seus olhos me acompanhavam com um terror indizível! A outra mão, outro cravo; o pé direito, contorções; o outro pé; respiração entrecortada, a dor confundia-se com o prazer! (Todos sabem que no ápice da dor...) a lenta agonia, o coração parando, o cérebro ficando vazio, como se passasse uma esponja sobre uma mancha de pó, a completa inércia. Por um momento, imaginei-o como o Salvador, ali, aos meus pés, mais logo a imaginação se esvaeceu, pois sua expressão era mais de alguém que implorava clemência do que a de alguém que irradiava perdão.

Passei para o quarto das outras duas maninhas. Suas mortes foram tão efêmeras quanto suas vidas. Sufoquei-as com seus próprios lençóis e dirigi-me aos aposentos de minha mãe. O punhal brilhava em minha mão. Empurrei a porta, entrei, ela abriu os olhos... precipitei-me sobre ela e cravei-lhe a primeira punhalada! No peito. Ela soltou um suspiro, o suspiro mais profundo que eu jamais ouvira. Retirei o punhal. O sangue rolou aos borbotões... Levantei o braço, a segunda punhalada! De seus olhos rolaram as lágrimas mais santas que eu jamais vira. Ergui novamente o braço, agora precipitadamente! Erguia-o, descia-o, contava: três, quatro, cinco, seis sete! Deitei minha cabeça em seu colo. Soltei o punhal. Não era a mão carnal de minha mãe.... foi o toque mais suave que eu jamais sentira...

Meus olhos estavam embaciados! Quem não chora ao ver quase concluída a maior obra de sua vida?

Sim ; Quase. Faltava ainda um retoque, uma minúscula lapidação...

Caminhei para o quartinho. Abri a porta. Um anjinho dormia placidamente, e uma legião de querubins invisíveis volitavam a sua volta... aproximei-me e ajoelhei perante aquele pequenino ser, e soprei-lhe aos ouvidos: em poucos segundos estarás brincando alegremente com teus irmãos alados! Apertei aquele alvo pescocinho com mãos tenazes... ele, o anjo ou ela, minha sobrinha, agitou-se fracamente e, em milésimos de segundos, já bailava contente, numa festinha paradisíaca.”

- Aí, ele calou-se. Nossos olhos se encontrara, fixos, eternos. Ambos percebemos a emoção que dominava o outro. Para mim, esta era a revelação mais marcante de minha vida, para ele, era como se estivesse revivendo, recriando toda sua obra, com mais ardor e mais engenho. Ah! Artistas com mania de perfeição!

Passado algum tempo, quando a emoção permitiu-me falar, perguntei-lhe: e agora, o que você espera da vida ? A morte ?

- Não, ainda tenho uma esperança! Venha, vou mostrar-lhe.

Segui-o em silêncio. Contornamos a frente do jardim e um dos lados. Paramos. Ele mostrou-me um pequeno bosque, no qual penetramos em meio a um emaranhado de cipós, no meio do bosque havia como que um leito feito de folhas e capim. Olhei para ele surpreso e curioso. Então, ele explicou-me:

- Esta é minha alcova. Aqui, uma vez por mês, recebo minha esperança. Eu a chamo assim, porque seus olhos são de um verde estontante!

- Não me diga que está amando? Interpelei-o irônico.

- Sim, como um pintor ama seu pincel.

- Não entendi ; representas algum papel?

- Vou explicar-lhe, dissecador de almas! Esta esperança , é uma mulher fértil , Chama-se Irene e está prenhe ; ela poderá dar-me dois ou três filhos e, então, poderei continuar minha obra.

- Sim, aquele era um homem que colocava sua arte acima de tudo!

Após algumas dissertações e as despedidas efusivas, fiz-lhe uma última pergunta: você teme o inferno?

- Sim, eu tenho medo que ele não exista, pois assim, ah! seria minha maior dor ; minha obra ficaria incompleta...

POETADADOR
Enviado por POETADADOR em 05/02/2007
Reeditado em 05/08/2008
Código do texto: T370278