O ATIRADOR
O ATIRADOR
Segurando agressivamente a mulher pelos cabelos, como uma corda enrolada em sua mão, ele a ameaçava insistentemente sob a mira do seu revolver calibre trinta e oito, oxidado, já com avançados sinais de ferrugem nas fissuras, o qual era firmemente empunhado, apesar de sua mão trêmula. Seu rosto, desfigurado e exangue, se contraía, seguindo a uma intensa e aguda dor latejante que ribombava por toda a sua cabeça.
Agoniada e aflita, a mulher, qual marionete, ou boneca de pano, manipulada de um lado para o outro, chorava, como um mantra, um murmúrio comprido e contínuo, como quem nem tinha mais forças. O medo a dominara completamente, deixando-a dormente, fazendo-a pensar, por instantes, que o que lhe acontecia não era real, seria apenas uma alucinação maldita causada pelo delírio doentio de um estado febril.
O seqüestrador, qual jogador que blefa, já abatera, de medo, um dos reféns, para tentar mostrar aos outros que não tinha medo, e que a situação estava sob o seu controle; se movimentava sem parar, de um lado para o outro, usando a mulher como escudo, cujos cabelos loiros, aos chumaços, se soltavam em sua mão. Ele tentava, assim, dificultar a visada do atirador de elite, que, bem sabia ele, estaria em algum lugar, estrategicamente bem posicionado, o qual, por várias vezes, já o tivera em sua mira. Acometido por sentimentos diversos e contrários, a sua cabeça parecia quase estourar. A dor e os pensamentos eram tão contundentes que pareciam ser o ousado e atrevido projétil do fuzil disparado pelo atirador, estilhaçando a sua cabeça. Às vezes um sentimento de arrependimento vinha sobre ele; não por pensar que não deveria ter iniciado o crime, mas apenas porque não deu certo. Endurecido e obtuso, ele preferia matar os reféns e morrer a passar o vexame de se entregar e sair humilhantemente algemado, figurando nas páginas dos jornalecos. A primeira idéia era intensamente fomentada por um coro infernal que, ao seu redor, como uma baforada sulfúrica, repetia insistentemente aos seus ouvidos: “Mata! Mata! Mata!” Havia ali centenas de demônios, sedentos pelo derramamento de mais sangue. De preferência o sangue inocente, cujo sabor lhes apetecia mais.
Bastava uma ordem apenas para que o atirador eliminasse o autor da agressão injusta. Em menos de um segundo tudo poderia estar acabado.
O atirador, cuja situação não era nada favorável, se dividia paradoxalmente entre a possibilidade de ser aclamado como herói; e a possibilidade de ser execrado como bandido. A linha que o separava entre o estado de herói e o estado de bandido era muito débil e tênue; podendo ser facilmente traspassada.
Todo policial vive na permanente iminência de se tornar um paradoxo. Isso imprimia sobre ele uma forte tensão, esgotando-o emocionalmente, a ponto da exaustão e do estresse. Ele sentia seu coração latejando por todo o corpo, refletindo, inclusive em seu fuzil, que, tão apegado como estava, tornara-se uma extensão do seu corpo.
Finda a possibilidade de negociação, a ordem para abater o meliante viria a qualquer momento; quando então, o atirador seria obrigado a se expor e apertar o gatilho. Não haveria a possibilidade de se esquivar, deixando de agir. Se ele se omitisse, seria tido por insubordinado, covarde, incompetente, indolente, fraco e pusilânime; o que certamente destruiria por completo a sua auto-estima e a sua promissora carreira.
Se o tiro fosse letalmente certeiro em seu alvo, abatendo eficientemente o nocivo ser, esse policial, sem sombra de dúvidas, seria exaltado às manchetes como ilustre herói; seria entrevistado em programas de televisão; seria elogiado; os parentes das vítimas iriam olhá-lo com grata reverência por ter vingado a morte ou o sofrimento dos seus molestados entes queridos. As crianças desejariam ser policiais e quereriam ser atiradores de elite. Alguma rede de televisão retrataria os acontecimentos em animação tridimensional mostrando os ângulos, calculando a velocidade do projétil e ressaltando a fina habilidade do atirador. Os seus colegas bateriam amistosamente em seu ombro, admirados, desejando estar em seu lugar e beber um pouco do mesmo cálice de glória que ele bebera. O comandante de sua Unidade Policial seria publicamente elogiado por ser tão competente no preparo e no comando de homens tão bem qualificados para enfrentar situações de acentuada tensão. Ao ser entrevistado em algum programa de televisão, esse comandante falaria, com modesta ufania, do excelente trabalho realizado desde que assumira o comando. Assim se seguiriam muitas honrarias levando-o quase a levitar em seu ego.
A situação poderia ser inversamente proporcional. Ele poderia errar o tiro e acertar a refém. Isso o destruiria completamente. Sua situação passaria a ser pior que a situação do bandido. Ele seria execrado e publicamente excomungado em todas as redes de televisão. Todas as polícias seriam taxadas com mal preparadas, incompetentes, sem qualificação e sem comando adequado. O seqüestrador seria esquecido, talvez chegando a ser uma pobre vítima do capitalismo animal no qual o homem é o lobo do homem; e, nas páginas dos jornalecos, as manchetes exaltariam com peculiar exagero e sensacionalismo o fiasco do atirador de elite que deveria ser indiciado por homicídio, bem como os seus comandantes, por cumplicidade, por terem dado uma missão tão importante a quem não tinha a menor competência para tal. Nenhum colega bateria amistosamente em seu ombro nem mesmo desejaria estar em sua pele e sorver, nem mesmo uma gotícula que seja, do cálice de absinto que ele beberia. Ao passarem por ele os seus colegas abaixariam a cabeça, envergonhados. Os parentes e amigos das vítimas olhariam para ele com desprezo e ódio. Os programas de humor só não fariam chacota dele em respeito aos mortos, será que não? Os comandantes brigariam entre si na tentativa de se esquivarem do vexame de terem que dar explicações em rede nacional; e acabariam mandando aquele de menor comando, como porta-voz, para explicar o que houve.
Dentro da casa estava um homem, muito jovem, provocando medo, gerando pavor, tentando se impor. Homem fraco, débil e apavorado. Ontem, desprezado; hoje, o centro das atenções de centenas, e, pelo televisor, talvez, milhares de milhares.
Quem está de fora pensa que ele não tem medo da dor, da polícia, da justiça, da cadeia e da morte. Na verdade ele finge não ter medo, porque, de fato, todos têm medo, e para isso ele provoca medo Aos outros.
Há um homem jovem lá, no fim da linha da mira; há outro homem jovem cá, do outro lado, no início da linha da mira. Um se benze de lá, o outro se benze de cá. O de lá tem muito medo do de cá. O de cá, mesmo protegido pela lei e pelo anonimato, mesmo em condições favoráveis sobre o outro, também tem medo do de lá. Ele tem dois medos, um medo diferente, como se o ameaçador homicida pudesse vê-lo seguindo a mira do seu fuzil, descobrindo onde ele estava; e um terrível medo de errar. Este pior que aquele.
O de cá, oculto, parece escondido, parece temer. O de lá, homiziado, abrigado, resistindo, parece não temer. Ambos têm medo. Ambos matam para viver.
Saiu a ordem para abater o seqüestrador? É esta a hora inadiável? O suor frio corre em seu rosto. Um estampido ecoou. Um projétil solitário, certeiro e veloz. O que foi? Por que as pessoas se lamentam em vez de celebrarem o fim desse tenso episódio? O que aconteceu? O quê? A refém foi alvejada? Não, ele não poderia ter errado, certamente ele não errou. Não é possível, O projétil atravessou os dois? A roupa dela está suja de sangue, mas deve ser o sangue do meliante que esguichou por todos os lados.
“Ai, meu Deus, o que houve? Daqui a pouco eu vou saber o que aconteceu. O que será de mim?
Naassom G Paula
Extraído do meu livro: CARMEM, Contos