Natal

Era Natal, e eu deitado no sofá todo arrumado. Camisa de manga comprida branca de botão com as mangas arregaçadas até a dobra do braço, calça sarja bege, cinto marrom e sapatos também beges de camurça, o braço esquerdo por traz da cabeça apoiando a nuca, perna esquerda sobre a perna direita em cima do braço do sofá, o braço direito estendido perpendicularmente ao corpo e na mão um cigarro de filtro vermelho, logo abaixo da brasa do cigarro, no chão, um pote de barro, parecido com um jarro, com uma circunferência de uma bola de futsal, com água até o meio, fazia às vezes de cinzeiro. Na minha frente uma televisão ligada no jornal nacional com o som desligado. Em cima de uma pequena mesa de centro redonda de madeira um micro system tocando Money, do Pink Floyd, “Money, get away. Get a good job with more...”. Estava olhando para televisão e escutando a música, numa agradável “viagem” canabínica, quando fui despertado de minha letargia pela Débora.

_Plínio já estou quase pronta e você?

Gritou ela do quarto, porém, eu não ouvi, estava muito entretido olhando para Fátima, e me perguntando por que tinha dias que eu achava que ela era bonita e tinha dias que eu achava que ela era feia, passei muito tempo matutando nesse dilema até sentir um cutuco no braço e me viro para olhar. Era Débora.

_Tá surdo? Não ouviu eu falar?

_Não não, falou o quê?

_Tá doidão né?

_Com certeza, hehehehe.

_Cadê a ponta?

_Tá ali em cima da televisão, enrolada no guardanapo. Você não vai dar nem um tempinho na casa de minha mãe?

_Não, prometi a minha mãe que esse ano passaria com ela. Se eu for agora pra casa de sua mãe eu tenho certeza que não consigo sair de lá tão cedo.

_Beleza. Então eu te deixo lá e te pego uma hora, no máximo uma e meia, levo você pra festa e depois tenho que ir na delegacia, você pega um taxi pra voltar.

_Tá bom. Vai querer dá mais uns “pauzinhos”?

_Não não, tô na paz.

_Por que você não vai pra festa comigo?

_Vô nada, não gosto de rave. Não gosto daquele bate estaca hipnotizador e aquelas figuras estranhíssimas dançando de forma bizarra, sem contar a quantidade insuportável de bibas que freqüentam esse tipo de festa.

_Olha o preconceito Plínio.

_Eu tô brincando, hehehe. Mas não sou preconceituoso não, você sabe disso. Trato muito bem seu irmão. Hehehe.

_Ah Plínio tá de sacanagem porra! Você não vai é por que está ficando velho.

_Pode ser. Não vai tomar aquela porra de comprimido não viu, se não você só vai chegar depois de dois dias, aí vai ser foda.

_Pode deixar, talvez um “docinho” só, e mais nada.

_Olha lá em Débora, toma cuidado, na última vez você entrou numa que foi foda.

_Tá bom coroa, não se preocupe, eu sei me cuidar.

_Acho bom. E só para lembrar, coroa é o caralho.

Ela deu uma gargalhada e se engasgou com a fumaça do baseado e falou entre tosse e risos:

_E ai vamos nessa?

_Vamos sim. Respondi.

Quando ela se referiu a eu ser coroa não estava de toda errada, estou com 41 anos, enquanto ela tem 25, quando a conheci ela tinha 21, estamos morando juntos há três anos e é sem dúvida nenhuma o melhor momento da minha vida. Débora além de ser muito bonita, é inteligente, muito inteligente. Ela vem de uma família de artistas. A mãe é uma atriz de sucesso, e o pai um renomado artista plástico com quadros vendidos em todo o mundo. Ela seguiu os passos dele e se tornou, apesar da pouca idade, uma pintora extraordinária, muitos dos entendidos dizem que a aprendiz superou o mestre, referindo-se a ela e o pai, que foi seu mentor. Débora segue a escola expressionista, e abusa das cores em seus quadros, principalmente a cor vermelha e a amarela, diz que se espelha no pai e em Paul Gauguin. A família dela é uma das mais ricas e tradicionais da cidade, e eu sempre me pergunto como ela, tão bonita e na flor da idade, de família tão próspera, tinha se interessado por mim, na época um quase quarentão, duro, dois filhos do primeiro casamento, fora de forma, cabelo já quase todo branco, com uma profissão perigosa e difícil para manter relacionamentos duráveis, já que eu sou Caxias pra caralho, tudo bem que eu tenho meu charme, não sou feio e nunca tive dificuldade para arrumar mulher, entretanto, no relacionamento com Débora sentia-me um pouco desconfortável e muitas vezes inseguro, mas nunca dei bandeira ou criei caso, sou muito orgulhoso para ter crises de ciúmes.

Nós moramos em um prédio de três andares sem elevador. É o apartamento que fui morar depois que me separei. Débora estranhou e reclamou um pouco no começo, porém, era o que eu podia pagar no momento, ainda estava me refazendo do divórcio que levou boa parte do que eu pouco possuía. O prédio não tem garagem e o meu carro fica estacionado em um posto de gasolina bem em frente ao prédio, o carro de Débora era guardado em seu ateliê que fica há dois quarteirões do edifício, que ela percorre todo dia de bicicleta. Atravessamos a rua deserta de mãos dadas e rindo de uma piada sem graça e infame que eu tinha contado. O posto estava fechado e com todas as luzes apagadas, fato que eu achei bem estranho, pois ele ficava aberto até as duas da manhã e seu Ramon, o vigia, sempre estava ao lado da loja de conveniência com seu radinho ligado ouvindo as notícias da noite, e nunca deixava todas as luzes apagadas. Olhei no meu relógio, eram 21:15 . O radinho estava ligado, mas não havia nenhum sinal de seu Ramon. Meu extinto nato de policial, herança genética transmitida de gerações e gerações de policiais na família deixou todos os meus sentidos em alerta, tirei minha arma, segurei firme na mão de Débora. Diminui a marcha e fomos lentamente caminhando em direção ao meu carro. Eu olhando para todos os lados querendo perceber alguma coisa. Débora olhou pra mim com uma expressão interrogativa, então eu falei:

_Débora tem alguma coisa errada aqui. O posto nunca fecha a essa hora, nem no Natal, nem no Réveillon e nem em dia nenhum, e o seu Ramon não está por aqui.

_Deixa de paranóia seu “poliça” . O velhinho deve ter ido ao banheiro, ou está cochilando em algum lugar.

Ela estava errada. Eu conhecia muito bem seu Ramon. Ele nunca abandonaria seu radinho, quando ele vai há algum lugar ele sempre leva o rádio, e quanto a está dormindo, era improvável, seu Ramon leva muito a sério seu emprego. È um excelente profissional. Assim que alcançamos o carro, um barulho vindo de dentro da conveniência nos assusta. Débora olha pra mim com cara de espanto e fala quase num sussurro:

_O que será isso?

Peço a ela que fique dentro do carro, e vou até a loja. Está tudo escuro. Nem as luzes de emergência que ficam na parede estão acesas. Chego bem devagar no vidro da loja, encosto o rosto e tento enxergar algum movimento na escuridão, não vejo nada. Fico parado ali tentando ouvir algum barulho. Nada. Silêncio absoluto. Resolvo entrar na loja e vou me aproximando cautelosamente, tentando não fazer ruído nenhum, da porta da loja, quando estou tocando minha mão para abrir a porta, um individuo sai correndo de dentro da loja e empurra a porta em minha cara com tanta força e violência que me fez cair estatelado no chão, mal tenho tempo de pensar no que aconteceu e vejo um homem encapuzado com uma barra de ferro na mão vindo me acertar, ele não sabia que eu estava armado e antes que ele me golpeasse desfiro três tiros no filho da puta, quando o primeiro tiro foi disparado eu ainda estava no chão e pegou no ombro do braço que ele segurava a barra de fero, rapidamente me levanto e dou mais dois tiros no peito do assaltante, que cai morto. Minha testa sangrava bastante devido à porrada da porta de vidro, me abaixo para tirar o capuz do bandido, e não percebo um segundo elemento que sai sorrateiramente da escuridão da loja com uma pistola na mão apontada pra minha cabeça. Com os disparos que eu dei Débora tinha saído do carro e quando viu o homem que iria irremediavelmente me matar, ela deu um grito e saiu correndo em direção a ele, que assustado com a inesperada aparição dela, muda a direção da pistola e atira como um maluco acertando quatro tiros, eu me viro e ainda consigo ver o corpo de Débora tombar. Corro pra tentar socorrê-la, enquanto o assassino foge. Em poucos minutos a rua que estava deserta se apinhou de gente. Botei Débora em meu colo tentando desesperadamente conter o sangramento e gritando que alguém ligasse para ambulância. Mais era tarde demais, Débora já caiu sem vida. Seu Ramon foi encontrado pouco depois dentro da loja com ferimentos graves feitos pela barra de ferro. Foi levado ao Hospital e parece que sobreviverá.

Passei todo o funeral sem derramar uma lágrima, sendo fuzilado pelos olhares inquisidores dos familiares de Débora. Mas não me importei. Não era eu que estava ali. Débora morreu e um novo Plínio nasceu. Tudo de bom, honesto e humano que eu tinha foi enterrado junto com ela. Nasceu em mim um sentimento de ódio que me tomou por completo. Um ódio que foi crescendo durante todo o protocolo do enterro e atingiu seu ápice assim que fecharam a sepultura. Esse ódio tomou conta de mim e invadiu minha alma. Eu não mais sentia. Eu só pensava em uma coisa; vingança. E EU VOU ME VINGAR!

jacosta
Enviado por jacosta em 15/12/2011
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