DEPOIMENTO

Não, doutor, de jeito algum! Crime é coisa que nunca me passou pela cabeça. Porém não nego que, certa vez, chegamos às vias de fato e, por uma fração de segundo, essa vontade me assaltou. Mas eu me contive; sempre soube manter o equilíbrio. Por exemplo, quando briguei com o primo dela. Foi numa festa de casamento. Ele bebe muito, já eu nunca fui dado à bebida. Socialmente, claro, ninguém é de ferro, eu fiz e ainda faço uso da bebida, mas com moderação. Aliás, olha o que acontece quando alguém dirige embriagado... Como? Não, doutor, só estou dando um exemplo. Sim, sim. Eu explico. Ou isso, vou relatar, ou melhor, continuar o que estava lhe dizendo. Não tive culpa no que aconteceu. Foi assim: Quando cheguei, encontrei-a de alguma forma diferente do que era costume. Como? Ela estava mais conversada, mais animada, mais atenciosa comigo. Tinha acabado de fazer o almoço. Foi logo dizendo o que tinha feito – angu com quiabo – já me atiçando a fome. Eu gosto de comida simples, caseira, doutor. Não costumo frequentar restaurantes; não gosto de alimento industrializado; comida feita para vender. Acho que comida tem de ser feita como um presente que se dá, um gesto de amor. Não, doutor, só estou explicando para o senhor. Sim, sim, é que eu preciso dizer isso, pois só desta maneira o senhor entenderá o acontecido. Mas já estou dizendo: Ela pôs o prato na mesa, com carinho. Não havia em seu rosto nenhum sinal de mágoa da briga que tivemos no dia anterior, quando saí para o trabalho. Ela me deu um enorme susto. Foi ao quarto e retornou com a arma na mão. No sábado, doutor. Segurava o revólver pelo cano, assim com o cabo voltado para mim. Pôs a arma em cima da mesa na mesma posição em que a tinha trazido, já anunciando com aquilo uma intenção sinistra. E foi logo falando que aquele almoço seria uma despedida, pois logo que terminasse eu deveria acabar com ela e com o seu sofrimento de esposa traída. Não, doutor, já disse, foi no sábado. Na sexta-feira a gente só discutiu. Loucura dela, doutor! Eu nunca a traí. E olha que não falta mulher por aí se assanhando comigo. Por exemplo, lá no serviço: É mulher que não acaba mais. Umas até que são interessantes, não nego, afinal de contas sou homem, certo? Mas não aceito as abordagens delas. As casadas, então, Deus me livre, não quero nem olhar. E não faltam aquelas que se declaram mal amadas e ficam se insinuando na minha direção. Não, doutor, não estou. Veja bem que isto é importante dizer para provar minha inocência. Claro, continuo. Fingi achar graça e falei para ela que parasse com aquele teatro. Ela me lançou um olhar que eu não soube interpretar naquele instante. E olhe que em nove anos de vida em comum aprendi a interpretar com acerto as suas expressões. Mas, compreendi, vendo a arma ali na mesa, que estava diante de uma situação perigosa. Disse a ela que me deixasse comer em paz. Puxou a cadeira do outro lado da mesa e sentou-se diante do revólver. Conforme o senhor já sabe, é um calibre trinta e dois, cano cromado. Foi do meu pai; comprado numa loja de armas. O velho gostava de pescar e, por precaução, levava-o. Uma vez, segundo relato dele mesmo – e olha que não era de contar mentira –, montou acampamento no pé de uma ladeira à beira do rio... Certo, doutor, me desculpe de novo; eu me dispersei. É que a lembrança do meu pai é algo que muito me toca. Aliás, se ele estivesse vivo quando eu a conheci, talvez tivesse me aconselhado a não me juntar a ela. Mas será que eu lhe obedeceria? Não que eu tivesse sido um filho desobediente, isso não. Sempre tive meu pai na conta de um grande amigo. Já um dos meus irmãos, esse, sim, só deu trabalho. Mas, doutor, eu estou só explicando melhor as coisas para o senhor! Não, claro que não, eu não quero ser preso! Pois bem, vou direto ao assunto. Tão logo acabei de almoçar, ela foi à geladeira e pegou uma travessa com pudim de leite condensado. Sabia o quanto eu apreciava aquela sobremesa que há muito tempo ela não fazia. Uma vez, foi também num sábado, passei na confeitaria e resolvi comprar um daqueles pudins. Enquanto a gente comia, eu e ela, comecei a elogiar o doce, dizendo maravilhas dele e concluí falando que estava mais gostoso que o feito por ela. Claro que não estava. Falei só para chatear. Deu no que deu: Ela largou o prato na mesa ainda com metade do pudim e foi para a varanda fumar. Como eu não fumo, combinamos que ela só fumaria lá fora. A questão era quando estava muito frio ou chovendo. Aí não tinha jeito, ela insistia em fumar lá dentro de casa. Tem cabimento? Claro, doutor, eu só estou dizendo que a gente não combinava em tudo. Mas, como dizia, ela trouxe o pudim e comemos em silêncio. Estranhei que ela só estivesse comendo naquela hora. Tinha almoçado sem me esperar e por que não comeu logo a sobremesa? Foi o que lhe perguntei. Ela não me respondeu. Aliás, era próprio dela não responder a certas perguntas. Seu silêncio, segundo ela mesma, era uma forma de me agredir, pois eu não aceitava certas atitudes dela sem que me desse as devidas explicações. Não, doutor! Claro que não! Nosso relacionamento sempre foi assim bem democrático. Está certo. Quando acabamos a sobremesa, ela simplesmente me olhou fundo nos olhos e disse que terminasse logo com aquilo. —Aquilo o quê? Perguntei. Com um movimento de cabeça, esticou os beiços apontando para a arma. Peguei o revólver e o coloquei atrás de mim, na cantoneira. Decidido a não continuar com aquela conversa, levantei-me da mesa e caminhei na direção do quarto já pensando em tirar um cochilo. Mas, aí, doutor, senti algo estranho me remoendo o estômago. Levei as mãos à barriga e olhei para minha mulher. Ela também começava a fazer careta, assim meio dobrada na cadeira, com uma expressão de dor. Então compreendi: o pudim, o maldito pudim! Tudo preparado para nós dois, como uma última e trágica sobremesa. É nisso que deu ela ficar lendo aqueles romances água-com-açúcar, onde uns jovenzinhos idiotas se matam por amor em vez de cada um ir viver a sua própria vida. Dor e raiva se misturavam em mim naquela hora. Senti que ia cair, tonto e me contorcendo de dor. Mas ainda pude perceber a intenção dela: o revólver era a garantia de que pelo menos um dos dois não sobreviveria. Como? No momento em que olhei para ela, a infeliz já estava com a arma na mão. Entendi que, agindo rápido o veneno, ela não teria tempo para buscar a arma no quarto. Assim, premeditadamente, trouxe-a para a mesa, dizendo que era para eu usá-la; o que não me permitiu suspeitar o contrário. Mas já estava tomada pelo veneno e assim, fraca, deixou a arma cair, caindo também e levando junto a cadeira. Lembro-me de ter caminhado até a arma. Peguei-a, apontei na direção dela, pensei em atirar, mas não o fiz. Tive pena. Então fui até o quarto para pegar meu celular e pedir socorro. Já não sabia ao certo o que fazer. E disparei um tiro na direção da janela. Recordo-me daquele estrondo, e só. O resto o senhor já sabe, doutor: Os vizinhos ouviram, chamaram a polícia e fomos levados ao hospital que, por sorte, fica perto de minha casa. Ela morreu porque, segundo alguém disse lá no hospital, seu estômago estava vazio quando comeu o pudim. Mentiu quando disse que tinha almoçado. Aí o veneno encontrou espaço para agir. Eu tinha almoçado bastante, motivado por aquele angu com quiabo. Em meu interior, o veneno já não encontrou tanta folga. Pior para ela que, sem saber, estava assim me dando o antídoto. A arma? Sim, doutor, na mesa. Conforme eu lhe disse, ela já trouxe com aquela intenção. Sim, coloquei na cantoneira. Isso, atrás de mim. Alcançava sim. Quero dizer, não. Ela deu a volta na mesa e pegou-a na cantoneira. Sentada? Estava. Ou ela esticou o braço e pegou do outro lado da mesa. Não sei. Acho que dá para alcançar sim. É grande, de bom tamanho, não é enorme, tem a largura de qualquer mesa, não sei, não me lembro ao certo. É uma mesa antiga, mas muito boa, de excelente qualidade. Madeira de lei que ela mesma escolheu quando terminamos a construção da casa. Sim, claro. Pois é, eu estava indo para o quarto quando ela assim meio caindo pegou a arma. Na cantoneira, doutor. Não, doutor, eu estava indo para o quarto, não estava lá dentro ainda. Bem, conforme eu disse, ela pegou a arma. Do outro lado da mesa! Desculpe-me, eu não quis falar alto. É que o senhor me deixa confuso. Como foi pouco? Eu quase morri. Aquela quantidade de veneno daria para matar um boi. Em mim também, não só nela. Mas é isso: Eu almocei muito e o veneno não fez tanto efeito em mim. Como assim, quantidades diferentes de veneno, se o pudim era o mesmo? Quem disse? Não é verdade! Eu não estive na confeitaria na noite anterior. Não comprei, não. A última vez que comprei pudim foi... sei lá, acho que há uns vinte dias, talvez. Como podem se lembrar com tanta gente ali fazendo compras? Olha, doutor, estão querendo minha cabeça, principalmente a família dela. Sabe quantas vezes tive de socorrer os seus familiares? Eles não têm controle sobre o dinheiro que ganham; abusam principalmente do cartão de crédito. Sempre bateram em minha porta pedindo ajuda. Já perdi a conta das vezes que minha esposa tirou dinheiro de minha carteira, sem me dizer, só para socorrer aquela gente. Mas, por favor, entenda que isso tem a ver com o que estão insinuando contra mim. Certo. Fui pegar o celular para pedir socorro e quando olhei para ela a maldita estava com a arma na mão. Isso, isso mesmo, doutor. Como? Bem, a dor já estava em mim quando me levantei da mesa. Como não? Então, veja bem, doutor, eu me confundi de novo. O celular? Antes. Não, espere, depois. Ela ia atirar em mim para eu não ter tempo de pedir ajuda. Sim, levantei sentindo dores. Cochilo? Bem... Costumo tirar uma sesta após o almoço. Isso já é um costume de família, sabe? De pai para filho. O velho morou boa parte da vida no Mato Grosso e adquiriu esse costume lá. Sabe como é, faz muito calor. De jeito algum, doutor. Eu respeito, sim, a sua autoridade. É muito difícil falar dessas coisas. Afinal de contas, faz só oito dias que saí do hospital. Isso é tudo, doutor. Sim, senhor. Onde? Nesta linha? Doutor, o senhor não vai me prender, vai?

Gerson Silvestre
Enviado por Gerson Silvestre em 07/10/2011
Reeditado em 06/02/2018
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