O Diamante

Sentia-se água fresca a cantar, no percurso oculto das rochas, lá em baixo, mas as pedras de granito escaldavam, à superfície, sob a incidência da luz a prumo para cá dos limites da cratera, fechada, debruada em tons de ferrugem e verde na junção com a terra. Lugar estranho, agreste, de uma beleza selvagem e soberba, o alto dos monólitos permitia-nos ver uma grande extensão da savana e adivinhar o galope das rezes, em manadas, a atravessar o espaço sob densos cordões de poeira. A tarde, dolente, fazia vergar tudo e todos ao calor de um sol implacável. Ali, sentia-me pequeno, perdido, indefeso. Nada do que constituía a minha formação em história valia naquele fim de mundo misterioso e bravio. Aceitei leccionar em África e fiquei um ano na capital a tentar sobreviver à dieta do hotel manhoso e aos truques de uma gente corrupta e traiçoeira. Sair de lá começou por ser um desejo inconsistente para se tornar numa obsessão. Por isso aceitei largar tudo e acompanhar-te nesta aventura. Na tua boca, os diamantes afloravam nas areias, um pouco por todo o lado. O risco seria trazê-los sem que os controladores dessem por isso. O resto farias tu, que dominavas o dialecto porque nasceras ali, porque conhecias todos os que se gastavam naquela vastidão desocupada. Oficialmente, ambos estudávamos a economia da região e as suas potencialidades no contexto da produção nacional. Era isso o que constava nas licenças que trazíamos, metidas em bolsas plásticas, à laia de salvo-conduto para quem quisesse e pudesse ler. O resto seria conseguido com argumentação simples e algum dinheiro se fosse absolutamente imperioso comprar o que não conseguíssemos de outra forma. Sempre que surgia alguma hipótese de negócio, ainda que remota, deixavas-me à tua espera, como então, com algumas latas de conserva e uma pequena reserva de água potável. Tinha, ainda, o pequeno revólver para uma emergência e um cobertor de flanela de algodão para me isolar dos mosquitos e me proteger do cacimbo durante a noite. Antes de escurecer era minha intenção entrar na caverna, limpar um pedaço de chão, fazer fogo e beber da água que sabia ser de boa para consumo. Agora era tarde, mas tentaria contornar a pedra e achar a outra entrada da gruta, única hipótese de, em segurança, fazer lume. Cheguei ao patamar de acesso já noite fechada e foi através da luz de um candeeiro de campanha que me orientei até ao interior da pedra onde, preparada para cozinhar, já estava uma mulher branca. Quando os meus pés fizeram deslocar alguns calhaus e o som da sua queda no abismo se espalhou pelo espaço abobadado, ela gritou e encolheu-se atrás da tenda, já armada.

Imediatamente percebi que irias negociar os diamantes com o marido dela e que a mulher era a sua retaguarda para eventuais tácticas de defesa ou ataque muitas vezes necessárias neste tipo de transacção. Ele voltaria até às oito horas da manhã seguinte e, se isso não acontecesse, ela teria de avisar logo as autoridades do posto administrativo mais próximo pelo rádio portátil que também ali se encontrava. Tudo isto a senhora contou logo que a conversa, à roda da fogueira, propiciou as confidências. Em nenhuma altura ela afirmou ter percebido que o meu papel na história seria, ipsis verbis, idêntico, embora tivesse deixado claro que isso em nada a admiraria. Estávamos, consequentemente, apresentados e atentos. Ali nem eu nem ela dormiríamos descansados. Nem eu nem ela deixaríamos de fiscalizar os gestos, tempos, espaços e atitudes do outro. Aceitei as batatas assadas nas brasas, abri a lata de sardinhas e verti o óleo no prato que me estendeu. O vinho do seu cantil era bom e forte. Limitei-me a humedecer com ele os lábios ressequidos e a sorrir um agradecimento. Acabei por lhe confirmar a minha tarefa no assunto das pedras e a desejar que ambos os negociadores chegassem à hora combinada ao local marcado para encontro. Sempre te achei honesto mas conhecia-te mal. Ela, porém, sabia que o marido tinha uma moralidade frágil. Imaginei o encontro, a compra e a venda dos diamantes, a rapidez dos gestos após a confirmação da qualidade das pedras analisadas à sorte, em sorteio aleatório, e a entrega dos valores para a respectiva aquisição. Tu, Augusto, sempre preferiste fazer compras aos naturais da região mas, desta vez, foras aliciado pela descrição de um diamante daqueles que só nos aparecem uma vez na vida. Tentou-te. Se a pedra valesse seria proveitoso o negócio para as duas partes. Por isso fui como garante de que haveria honestidade dos dois lados. Era comum avisarem-se as partes sobre a existência de certificadores de vida, na retaguarda. Os negociadores deveriam chegar ilesos ou seria desencadeada, imediatamente, uma perseguição pelas autoridades do sector que resultava, frequentemente, na morte dos prevaricadores. Ganhava-se muito mas os riscos eram assinaláveis também. Senti que nem eu nem a mulher estávamos tranquilos. Temíamo-nos reciprocamente receando que houvesse desonestidade do nosso ou do lado oposto. Uma agonia parecia apertar o peito da mulher que suspirava, profundamente inquieta. Olhava muitas vezes o relógio e espevitava o lume. Eu, pelo meu lado, remetido ao silêncio, tragava o fumo denso do cigarro caseiro e bebia café em pequenos goles, forçando as pausas, como se a tranquilidade fosse incontestável. E, no entanto, há horas que meditava sobre todas as hipóteses, das melhores às mais perversas. O diamante, real, belo, enorme e caro e o negócio resolvido, normalmente, sem problemas. A discussão do preço, a altercação e a tentativa de lucro total nos dois negociadores, isto é, o dinheiro e o diamante. A não existência do grande diamante e o saque, puro e simples, do dinheiro que tu, Augusto, levasses. Valia tudo na ambição dos homens assim postos, em campo aberto, a negociar sem testemunhas. Estas coisas que, anteriormente, nunca tinham passado pela minha cabeça, faziam com que o suor me perlasse a fronte e um arrepio fino andasse ao longo da coluna que me esforçava por manter direita. Por seu lado, a senhora, nervosa, torcia as mãos e apertava-se no xaile de seda prestes a entrar em ansiedade. Tentei acalmá-la dizendo-lhe que ambos eram íntegros e que, pela manhã, surgiriam, quiçá por caminhos divergentes, aos locais combinados na véspera. O seu marido ao interior da gruta e tu ao ponto mais alto do monólito de granito. Tinha sido uma coincidência infeliz a escolha do mesmo local mas, não valia a pena lamentá-lo. Todos poderíamos, a seguir, retomar o rumo de nossas vidas com plena normalidade. Ela voltaria para o aconchego da família e eu a rodar, contigo, por anharas e savanas, até que o peso das pedras que conseguisse valesse folga e prosperidade na Europa dos meus sonhos. Eu estaria em vantagem por me ser mais fácil adivinhar, do alto da pedra, quem vinha a caminho uma vez que a visão se alargava por quilómetros. Ela, teria de aguardar até que o seu homem surgisse à boca da gruta e lhe gritasse o bom sucesso da tarefa. Antes do alvorecer, porém, a nenhum de nós cabia fazer o que quer que fosse e deveríamos descansar. E saí para o escuro da noite, aninhando-me numa pequena cavidade natural a poucos metros da entrada. Se ela saísse para me seguir, eu sabe-lo-ia de imediato. Temíamo-nos reciprocamente. Devo ter adormecido até que um latido de hiena quebrou a paz da noite. Joguei alguns seixos na direcção do som e tentei, em vão, retomar o sono. Pouco depois, a aurora surgiu em claridade que se foi acentuando até que o sol, como um disco enorme de fogo, dourou o horizonte e acendeu mínimas luzes nas gotas do orvalho. Espreitei para o interior da gruta. O lume extinguira-se e a mulher, cansada pela espera, dormia apoiada numa saliência da rocha. Acredito que ela tivesse ponderado a necessidade de sair dali mas não podia. O peso do equipamento e a incerteza dos caminhos que o marido tomaria para regressar a impediram. Ficou, consequentemente, a imaginar cenários e a rezar para que, ganhador ou vencido, o seu homem voltasse.

Mas… nem o homem voltou nem havia o mais leve sinal da tua presença e o sol já voltava a castigar plantas e animais. O calor apertava e o estômago exigia cuidado. Seria meio dia a avaliar pelas sombras diminutas dos arbustos. A mulher, de arma engatilhada, gritara histérica para que não me aproximasse enquanto tentava, mais uma vez, fazer funcionar o aparelho de rádio, na altura escondido atrás de um pedregulho esguio e fora do alcance da minha arma. Adivinhava-lhe as lágrimas a correr pela face magra imaginando tudo o que, excluindo a morte, pudesse justificar o atraso do marido. Eu também estava preocupado por ser mais que tempo de tu estares de volta. O combinado seria esperar até à noite e seguir, depois, rumo à fronteira para saber notícias. Somos amigos mas sem grande intimidade e a minha angústia não incluía senão a retirada de um espaço que, após o insucesso da compra, se tornava duplamente perigoso. E já me arrependia da nossa sociedade e me considerava imprudente além de estúpido quando a poeira do teu jipe riscou o amarelo do solo e, meia hora depois, arfando pelo esforço, tu chegaste ao alto da pedra. Trazias a mão muito ferida e o rosto arranhado. Bebeste toda a água do cantil, enxugaste o suor do pescoço e ficaste mudo por muito tempo, até normalizar a respiração. Tinhas engolido o diamante que era, segundo a tua descrição, digno da tiara de uma Rainha. Disseste, a seguir, que assim que definiram o preço sentiste que o homem não estava ali para fazer jogo limpo e, antes que ele pudesse impedir-to, tinhas engolido a pedra transparente, do tamanho da cabeça de um polegar. Puxaste do revólver primeiro e forçaste-o a beber o soporífero com a aguardente do teu cantil. Deixaste-lhe o montante que te pediu e tentavas direccionar-te para o local do nosso encontro quando viste a carrinha da inspecção da Companhia dos Diamantes e te ocultaste e ao jipe, o melhor possível, numa mata de espinheiros. Ficaste horas ali retido porque a viatura da inspecção se mantinha visível e porque, depois de saírem, precisaste de tempo para ganhar coragem. Evitavas o encontro. Seria muito difícil que aceitassem como válido o documento que tinhas e as explicações que desses pouco valiam naquele lugar vedado ao trânsito geral. Mesmo considerando que não transportavas material proibido na bagagem, era sempre possível que te levassem para a sede da Companhia e te sujeitassem ao usual laxante para recuperar cápsulas engolidas e a verificações humilhantes. Ao atrasares-te, porém, corrias o risco de ter, além dos inspectores, a perseguição das autoridades alertadas pela retaguarda do homem. Por isso alargaras o tempo do regresso enveredando, por campo rochoso e acidentado, até quase ao fim do percurso. Querias que eu te visse e te identificasse temendo já não chegares a tempo de me encontrar.

Contaste a seguir como tinha sido difícil atinar com o local onde se marcara o negócio por estar oculta, na vegetação, a cabana de adobe e zinco onde o homem te aguardava. Um velho de carapinha já branca, com a boquilha do cachimbo, apontara a porta e foi a medo que entraste para a apreciação do lote das pedras onde figurava o grande diamante. Uma mulher gorda, de lenço e panos, serviu o chá de hota-hota temperado com açúcar mascavado e limão. Usaste a lente, fizeste os testes de dureza e resistência a ácidos em pedras escolhidas ao acaso e, após a tua aprovação, os diamantes foram expostos na mesa. O homem definiu o preço, manifestamente excessivo e, quando esboçavas o gesto de retirada ele disse que aquele valor incluía o tal, lindo, enorme diamante. Olhaste-o e soubeste que era verdadeiro. Tinha luz, transparência e alma próprios ainda que estivesse em bruto. Pegaste-lhe com devoção e cobiça, analisaste-o de todos os ângulos e, depois de aceitares o preço, decidiste…engoli-lo. O gesto foi resposta a uma troca de olhares que o homem trocara com a mulher dos panos. De imediato puxaste do revólver e, já de pé, preparaste, na caneca do chá, a dose do soporífero e obrigaste o homem, o velho e a mulher a tomá-lo. Para maior garantia de um sono demorado, exigiste que o dono dos diamantes bebesse o resto da sua garrafa de whisky. A seguir, maço a maço, jogaste o dinheiro pedido na mochila do homem e, com os três já atordoados, saíste para a mata envolvente. Foi a poeira que denunciou a viatura dos inspectores e te fez regressar à mata dos espinheiros avançando até uma zona que ocultava bem o jipe. Foi aí que feriste a mão e arranhaste o rosto.

Por uma questão de segurança deveríamos sair rapidamente dali porque o homem, recuperado, haveria de estar a chegar e, por certo, não seria agradável revê-lo. Mas à minha ânsia para nos retirarmos contrapunhas tu a necessidade de ali permanecermos por dois ou três dias para evitarmos patrulhas e buscas. Foi esta última palavra que me pôs em alerta. Deixei que caísses num sono pesado e ruidoso e, paulatinamente, tentei averiguar a potencial validade do teu relato. Havia diferenças no modo como contaste primeiro o uso do entorpecente e o relato pormenorizado feito depois. A dúvida estabeleceu-se no meu espírito e, tendo embora resistido bastante, decidi conferir as balas no tambor do teu revólver que vi ser carregado. Faltavam duas das seis balas! Faltavam também, na tua bolsa, os diamantes pequenos e, em compensação, havia muito dinheiro, afinal todo o que disseste ter deixado na bolsa do homem para pagamento das pedras. Por outro lado, o ferimento da mão traduzia uma agressão com faca ou canivete e não provocada por espinhos de qualquer planta. Eu precisava de muitas explicações para que a minha confiança em ti fosse restaurada. Pela primeira vez tive medo. Se tinhas o dinheiro que dizias ter deixado é porque não tencionavas devolver a minha parte. Se não tinhas o lote das pedras menores, é porque a transacção apenas incluíra a maior e, essa, tu engoliste. Se precisávamos de ficar ali mais tempo talvez fosse para fazeres comigo o que fizeras com o dono do diamante antes de partir, definitivamente, daquele local. Eu ficaria vivo mas apeado na savana a quilómetros da cidade mais próxima, sem dinheiro e sem diamantes. Isto se não viesses a usar em mim as balas restantes escondendo, naquele ermo, o cadáver.

Grande foi o meu dilema. Fingia não ter dado por nada estranho ou exigia-te logo explicações? Fugia no jipe e deixava-te ali ou procurava auxílio através do rádio da mulher que continuava a chorar a ausência do marido? Angústia, pânico, raiva e, finalmente, uma determinação feroz, fez o resto. Amarrei-te cuidadosamente enquanto dormias e continuo à espera das tuas explicações. Se aquilo que eu imagino aconteceu mesmo e se me reservavas uma das tuas soluções finais, fico com o dinheiro, o jipe e o diamante e tu com a vida e a liberdade de andar a pé na savana. Parece-me justo. Fala, portanto. Aviso-te que, em caso de mutismo prolongado, chamo os inspectores da Companhia e entendes-te com eles ou, se preferires, entrego-te no Posto Administrativo para dares notícia do homem a quem roubaste o diamante. Podes escolher. Na vida, quase sempre podemos escolher. Vamos, fala, diz como foi, realmente, o teu encontro com o dono da camanga. Vamos, fala, gritei-te uma e outra vez.

Permaneceste sempre mudo, aparentemente conformado e foi assim que te trouxe para aqui. Ficarás algemado e preso ao tecto por esta corrente com aloquete muito embora eu já tenha na minha posse o diamante. Nunca esperei que fosse tão grande, tão puro, tão maravilhosamente valioso. Não exageraste, Augusto, quando o descreveste. O que é que eu quero mais? Saber o resto. Ou me contas ou terei de procurar a mulher que ficou à espera na gruta para saber se lhe mataste o marido. Queria tê-lo feito logo mas ela não quis conversa e ameaçou-me com a arma de caça que o marido lhe deixou. Por isso achei mais seguro sairmos dali. Sei onde moram e, agora, vou saber do resto. Só ou acompanhada, ela já regressou. Disso vai depender o teu destino.

E fui. Entrei pela porta do quintal, avancei sub-repticiamente em direcção à sala e agarrei a senhora pelos pulsos evitando que se armasse e disparasse sobre mim. Surpresa, a mulher nem teve tempo de gritar. Tapei-lhe a boca e fui-lhe dizendo que estava do seu lado e pronto para ajudar no que fosse preciso. Resumi-lhe a nossa história comum e, a seguir, soltei-a e pedi-lhe que se sentasse para conversar. Disse-lhe que te mantinha preso por sentir que também eu corria perigo de vida. Algum tempo depois, já convencida de que eu dizia a verdade, aceitou conversar. Contou, então, que conseguiu pedir socorro pela rádio e que foi com os inspectores da Companhia dos Diamantes à barraca onde o marido fazia os negócios. Nenhuma outra alternativa lhe restava para sair da gruta. Foi terrível, disse ela em pranto. O seu homem estava de borco sobre a mesa, morto a tiro. Da boca, cheia de formigas, corria-lhe baba e sangue. Dos serviçais não havia rasto. No desespero, só mais tarde, ela se apercebeu do pequeno saco de diamantes que, o marido, ao ser ameaçado, atirou para um pote de barro para que os não levasses facilmente. Fugiste, apressado, para não teres de enfrentar a mulher e o velho e só por isso não pudeste trazer o lote das pedras pequenas. A decisão de te refugiares na mata dos espinheiros tinha muito mais a ver com a necessidade de te defenderes dos empregados da tua vítima do que com o pessoal da Companhia de Diamantes que apareceu, com efeito, algumas horas depois, provocando o atraso do teu regresso. Aqui está como um homem jovem como tu, são e educado, se transforma num assassino sem escrúpulos, um amigo infiel, um reles ladrão. Poderia entregar-te aos cipaios do Posto ou aos inspectores da Companhia mas não me convém, por razões óbvias. Assim decidi que ficas aqui preso mais um dia ou dois até que, já fora do país e por telefonema que farei, possas ser libertado. Ficarás livre mas, como é de justiça, sem dinheiro. Vou usar o diamante para cumprir os meus sonhos.

Edgardo Xavier
Enviado por Edgardo Xavier em 26/08/2011
Código do texto: T3182744
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