Três dias depois

1

- Mas cara como é que vai ser?

Indaga o rapazinho. O rosto pálido, coberto pelo suor nervoso. As mãos trêmulas. O olhar aflito.

O outro que é grande, mulato, magro, sem erguer o rosto da anotação que faz no bloquinho sobre o birô responde:

- Espera um pouco mais amarelinho.

- Meu tenho de prestar conta ao Bocão hoje... Ele, você sabe, não perdoa atraso.

O rosto então o encara. Ossudo, os traços grosseiros, o meio sorriso irônico do deboche, a voz alta, em explosão:

- Se vire. Se vire amarelinho!

As mãos trêmulas. A decepção. O temor do que lhe sucederá se não pagar hoje à mercadoria. O Bocão com a justiça conhecida, duro na execução... A bolsa ao ombro esquerdo. A decisão repentina...

Abre a bolsa e retira a arma e, gritando:

- Ah, é assim “me vire?” Quero a grana agora!

O outro recua perplexo e tenta ganhar tempo para agir, fugir à ameaça que entende lhe ser perigosa:

- Pera aí.

Enverga-se e abre a gaveta, do birô, no gesto de buscar o dinheiro, contudo, ao retirar a mão de dedos grossos dessa, traz o revólver e antes que dispare é então atingido no rosto pela arma do adolescente.

Grita e cai sobre o forro do móvel. Contorcendo-se. O sangue borbulhando da face atingida. Os gemidos. E, para completar a ação, o rapazinho se avizinha e lhe atinge a nuca com novo disparo.

Aos poucos, os gemidos vão silenciando... E todo o grande corpo se imobiliza.

O adolescente repõe a arma na bolsa, cruza a sala e abre com vagar a porta, perscrutando. Ninguém nas proximidades.

Encosta a porta por fora e correndo, sem tardar ocupa a moto à esquina da rua estreita e como um louco pela aflição do que o espera e pelo que acaba de cometer foge em disparada.

Uma porta se abre e o sujeito de bermuda se volta à mulher ao lado e fala:

- Atiraram no Seu Quelé.

- Deixa isso pra lá, criatura. Melhor a gente fazer que não sabe de nada. Esse pessoal é alma cebosa!

- Você tá certa nega.

Fecha a porta e retornando à sala, sentam nos sofás, e ficam calados. Refletindo. Receosos das próximas horas.

Passos apressados cortam a calçada defronte, e adentram na sala onde caído sobre o birô, o corpo está imóvel, de cabeça deformada pelos tiros, enquanto o sangue escorre, inundando o piso do ambiente.

- Puta merda!

Três dias depois, tarde da noite, o rapazinho ao passar com a moto sob o viaduto do Santa Cruz é emboscado e morto por dois motoqueiros a mando do Bocão que sempre diz, impondo-se no mundo das drogas:

- Farrapou comigo se lasca. Não tem retorno!

Frio, calmo, então acende o cigarro, com o rosto negro mais fechado e os olhos mais brilhantes.

Os que o escutam nada comentam. Convenientes. Contidos. Também com os exemplos que conhecem...

2

A mocinha recua, perplexa:

- Não, isso eu não faço!

A voz gritada, na angústia repentina ao saber o que lhe pede o homem gordo, baixo, amulatado.

- Guria tás pensando o quê? Você só quer jantarzinho e mais nada? Comigo tem de ser do meu jeito. Vai, obedece. Se vira!

O grito. As lágrimas nas faces morenas, do rosto bonito. Os braços erguidos num apelo.

Ele se aproxima. A fisionomia transfigurada pela raiva que o domina.

- Ah, é assim é?

Empurra-a grosseiro com força, como um animal que ataca, na maldade do instinto ofendido, vingativo e... O corpo caindo para trás, se precipita do oitavo andar para a calçada embaixo, enquanto o homem corre para se vestir e fugir, livrando-se do flagrante.

Três dias depois é preso ao ser reconhecido e denunciando pelo porteiro do luxuoso motel, pela morte da “garota de programa”.

Agora, aguarda a liberdade, enquanto o seu advogado trabalha para libertá-lo, pois ele é um poderoso homem de negócios.

- Com jeito tudo se resolve...

- Assim espero doutor.

3

- É um coroa magro, baixo, morenão, de camisa do Santa Cruz e calça azul.

- Certo mano.

Repõe o celular no bolso da camisa e aguarda à esquina, a atenção presa à porta envidraçada do banco, por onde entram e saem às pessoas e, logo, vê o homem indicado pelo parceiro que se encontra dentro do estabelecimento bancário.

Espera. Calmo. Contido. Animal do mal.

O coroa passa ligeiro em sentido do carro estacionado na calçada oposta. Cruza a avenida. Ele segue-o, também apressado.

O automóvel. A porta que se abre e o velho então ouve a voz às suas costas, enquanto o cano da arma fura-lhe a costela ao lado direito:

- Passa a grana avô!

- Mas...

A pancada na cabeça. A dor e as mãos que acolhem a quantia recebida há pouco.

- Sai, me dá a chave!

O idoso atende outra vez e o carro parte, com o assaltante e o dinheiro retirado.

A cabeça lateja. O sangue morno inunda-lhe a camisa e, perplexo, se permita ficar sem ação, entregue à cena que vive.

Então, o casal que tudo presencia se aproxima. Solidário. Humano.

Espera, como se tudo se convertesse num grande pesadelo.

- Quanta violência!

- Vamos amor ajudar o coitado do idoso.

- Sim, sim.

Três dias depois o assaltante é executado pelo colega que sempre lhe avisava como agir, assaltar.

- Bichinho safado, queria ficar com tudo!

Justifica-se o executor. E disca para o novo parceiro:

- É uma mulher já velha, branca, gorda, de vestido estampado. De pulseira amarela. Bolsa no ombro direito. Tá saindo.

- Certo Geri. Deixa comigo.

Inocente a nova vítima ganha à calçada e vai ao encontro do inesperado adiante na esquina.

Quando li me lembrei de João Antonio. Paulo Valença é um grande cronista do cotidiano dos marginalizados. É um escritor de verdade.

Comentário enviado por:

William Porto em: 19/8/2010.

Paulo Carneiro
Enviado por Paulo Carneiro em 21/08/2011
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