O réu da Rua Treze.
O réu da Rua Treze.
Andou pela calçada, cambaleante, seu semblante era quase um nada, o olhar estava parado, sua forma era esquelética, ao se perceber bem de perto parecia que a pele era grudada diretamente aos ossos.
A luz que surgiu do automóvel lhe fez baixar os olhos de límpidos azuis naquela face amedrontadora de quem vagava pelas ruas da vida, um sofrer constante, uma vida de quem desistiu de jogar o jogo.
Como Edevaldo existem vários desanimados que vagueiam pelas ruas urbanas travestidos de vultos, elementos que um dia foram tão produtivos quanto qualquer outro cidadã, já foram, filhos, maridos, pais, empresários, já formaram famílias como já destruíram também...
Nas suas dores segue cabisbaixo, entre memórias e desvios, hora e outra retira o pacote do bolso do velho casaco já pesado pelo que carrega, ali há tocos de cigarros, papéis, três velhos isqueiros, um livro sobre relacionamentos que achou numa lixeira e que se transformou seu livro de cabeceira, ou como costuma falar seu livro de papelão, por que costuma dobrar a caixa de papelão para fazer de travesseiro assim evita pegar friagem no ouvido, passou por uma inflamação brava que lhe deixou sem audição no seu lado direito, e metendo os lábios na borda amassada do papel tomou um gole da cachaça amarga que desceu o esôfago queimando e cada vez que isso acontecia lembrava-se do passado e seus conhaques e uísques sempre prontos e na temperatura certa na adega encaixada na parede da sala de visitas.
Olhou de relance, ainda com a cabeça abaixada, o mesmo carro passou por ele pela terceira vez, e não estava enganado, o automóvel vermelho com cinco jovens dentro passaram agora mais devagar e olharam-no com uma cara de quem estavam querendo aprontar.
Já tivera experiência com adolescentes bêbados, por isso aos sábados evitava ficar perto dos inferninhos e agora dos postos de gasolina, bem que às vezes arriscava, quando não tinha a cachaça, tentava ensopar panos com gasolina para ficar cheirando e sair um pouco da realidade e outras vezes dava sorte e achava cola de estofamentos e querosene.
Quando chegou à Rua 13 dobrou a esquina, queria se esconder pelo menos por alguns minutos, o frio aumentava, a cachaça nesta madrugada parecia não esquentar sua alma machucada, ouviu um barulho de metal e não quis olhar para trás, mas novamente o barulho de metal contra metal e agora olhou, eram dois jovens, de camisetas brancas com uma enorme suástica nazista no peito e em suas mãos canos de ferro, destes galvanizados, ocos, leves para carregar mas duros o bastante para machucar.
Apavorou-se, tentou andar mais rápido,os tremores lhe impregnaram a tal forma que se perguntassem seu nome iria gaguejar e demorar a soltar a fala, ouvira falar sobre ataques a mendigos pelas ruas da cidade, mas ele não era mendigo, pensava, era apenas um ser que não queria mais jogar o jogo do sistema, não queria mais Sr estado e nem estar no estado, seja ele laico ou não, tudo é sistema, e o que é tem um só futuro, transformar-se em queijo esburacado pela corrupção.
Os risos aumentaram dos meninos atrás por que não muito longe à frente outros dois apareceram também com alguma coisa na mão, um deles tinha algo cintilante e mole, deveria ser uma corrente e o outro um pedaço talvez do mesmo cano que os outros, e foi neste momento que se deu conta do erro que fez, de sua escolha, culpou a cachaça na hora, se não estivesse tomado pelo álcool teria ido à direção oposta, tinha procurado um lugar movimentado e não veio para aquela rua erma, veio servir-se de carneiro para a matinha de lobos.
O carro veio e parou logo à frente e dele, viu um menino que não tinha mais que a metade de sua altura sair com um soco inglês que calçou nos dedos ao ficar de pé ao lado do automóvel, a camiseta também tinha o mesmo emblema, era sem dúvida uma gangue, e agora sob a luz daquele poste notou as tatuagens, pinciengs, e o sorriso cruel que foi acompanhado por todos...
Este fez sinal para que os outros parassem, e veio ao encontro do homem, não disse palavra alguma, injuria ou benevolência, os olhos do pobre homem nem mesmo conseguiram acompanhar as batidas que transformavam sua face numa massa de carne e sangue, e entre os zunidos provocados pelas batidas os risos ecoavam dentro de sua cabeça e de sua boca saia a voz engasgada entre os vômitos de sangue:
__Por favor, por quê? O que foi que eu fiz?
Seus olhos já estavam fechados, não conseguia ver nada a não fachos de luz quando tentava abri-los, e tentou naqueles poucos segundos não cair, mas as pernas fraquejaram naquele chute de peito de pé em seu joelho, sentiu-se sendo um saco de pancadas em academia qualquer, quando caiu sobre o asfalto cinzento, áspero e duro, os outros vieram como urubus sobre carne morta e apenas recebia o impacto dos pontapés, entre as palavras que ouvia discerniu alguns impropérios como: raça imunda, pobre nojento, mendigo fedido, escória da raça branca e morra maldito.
Quando detectou em seu coclear esta última, concordou, deveria morrer, deveria se entregar ao evento e deixar-se ir, onde estava a luz que tanto falavam? Onde estavam os emissários que lhe buscariam para o paraíso?
Estampidos ao mesmo tempo em que os golpes enfraqueceram, primeiro o barulho parecia-lhe longe e logo os estampidos estavam bem próximos, pensou e até tentou sorrir, ‘resolveram atirar em mim e acabar com minha dor’, todo ele doía.
O silêncio foi despertado por mãos que lhe pegavam, ouvia vocês, tentou falar:
__Não, não me batam, me matem de uma vez...
__Temos um vivo, e apanhou feio, maca!
No chão mesmo começaram a atendê-lo, suturaram seus olhos para na escoação do sangue acumulado voltasse a enxergar e foi depois da medicação e do corte nos bolsões sob as pálpebras que do alto da maca conseguiu ver, haviam cinco corpos caídos em diferentes pontos do asfalto, todos imóveis, todos perfurados e embebidos em sangue, escuro e grosso.
Os olhos fecharam suavemente e nada mais sentiu.
__ E então cidadão, conte mais uma vez. - pediu o homem de terno, com uma gravata vermelha que fazia lembrar a moda entre os políticos de Brasília, seus olhos tinham uma potência de tamanho devido aos óculos de alto grau e a barba toda certinha, os cabelos estavam aparados e engessados pelo gel.
Mais uma vez relatou o acontecido, as perguntas vinham cada vez mais fortes, careciam de respostas e queriam que ele contasse quem havia interferido em sua morte, queriam saber quem eram os milicianos que pipocaram a gangue de agressores que já era conhecida por toda a polícia.
__É cidadão, a coisa está preta para o seu lado, um dos meninos mortos era filho de uma pessoa influente, e a imprensa quer um culpado, e você vai ter que cantar alguma coisa...
De vítima o pobre Edevaldo passa a ser réu de seu próprio espancamento, nas horas que se passaram, toda a sua vida foi pesquisada, antigos amigos falaram de sua antiga vida, sua família falou dele, do que um dia foi, tudo que estava enterrado retornou a ser jogado sobre si, o acidente de automóvel embriagado e o parada de ônibus com aquelas pessoas sendo arrastadas pela sua caminhonete potente e encerada, que dias horríveis teve ele e que dias horríveis voltava agora para lhe assoerguer seu momento a um passado a tanto perdido.
Em menos de uma semana, viu surgir na porta do quarto seu filho que não via há tanto tempo, o jovem agora já adulto conversou com ele de maneira áspera e fria, de maneira nada amigável, não bastou dizer que já havia pago sua conduta com a sociedade, foi um dos poucos presos devido a morte por acidente de automóvel, antes de mudarem o termo que hoje é usado para retirar a culpa do condutor, hoje é usado ‘colisão de trânsito’ pois se usar ‘acidente’ inplicará a culpa de alguém, e antes de sair batendo a porta ainda perguntou:
__Por quê? Toda vez que você aparece tenta arruinar nossa vida?
E além de ter deixado a vida sua ser tomada no passado, ali estava ele na cama, todo arrebentado, não mais andaria, perdeu os membros inferiores, nem mesmo talvez seu pinto funcionaria de novo lhe disse o médico, e ele mesmo confirmara que no momento não dera sinais de excitação até se riu pois além da masturbação quem faria alguma coisa com um mendigo que mal conseguia um lugar para tomar banho. Mas o que lhe vinha agora que além de tudo isso, na sua porta haviam guardas, pois na planilha conceitual do delegado que o visitara ele ainda era o único suspeito de ter cometido o assassínio dos ‘meninos de bem’ que foram achados ao seu lado na Rua 13 e olha que nem era a Rua 13 de maio de Curitiba com seus teatros maravilhosos e cinemateca, e sim uma Rua 13 de uma cidade bem longe do que um dia foi seu lar...
Agora queria era fechar os olhos e se deixar levar no sonho medicamentoso e ali tentar viver bons momentos consigo mesmo relembrando os muitos dias longos e belos em que viveu lá atrás num momento qualquer daquilo que chamou de dias melhores.
Por Abilio Machado. 14.072011.