A força do medo

1

Já entra no terraço gritando, após estacionar o táxi no oitão da casa:

- Por que você não está na escola?

A fisionomia alterada. Os olhos dilatados. A raiva repentina, pelo prazer sádico de reclamar.

O menino sentado no recanto do terraço, onde as paredes fazem ângulo, responde, mal conseguindo conter o medo:

- Hoje a tia disse que é feriado da República.

- Feriado é? Vou saber dessa história. Você só quer uma desculpa pra malandrar!

A criança pálida, sente as mãos frias, suadas. E treme, receando...

- Vá, pegue o balde com água, o detergente, a esponja e a flanela pra lavar o carro.

O menino se ergue. As pernas magrinhas bambeando. Os gestos descontrolados sob o domínio do medo.

- Vá. Que frescura é essa?

A voz crescida, enrouquecida.

A pequena figura passa e recebe então a tapa da mão pesada sobre a cabeça.

- Apressa isso malandrinho!

O choro baixinho. Os passos vacilantes. A vista embaçada pelas lágrimas gordas. E adentra no banheiro depois de cruzar a sala e o corredor estreito à esquerda, buscando os apetrechos para a limpeza do carro.

A voz agora se aproxima:

- Limpe no capricho o carro.

Em seguida, o homem adentra no quarto para calçar as sandálias, trocar a camisa e as calças pela camiseta aberta e a bermuda velha, folgada.

Com violência ele bate a porta, isolando-se. E abre a gaveta do guarda-roupa, procurando a roupa para o descanso do corpo exausto por horas ao volante, conduzindo passageiros.

Apressando-se, o menino sai do banheiro com o balde cheio d’água, o detergente, a esponja e a flanela. A cabeça zonza. As pernas e as mãos geladas. O receio de novamente ser maltratado pela mão impiedosa da maldade.

No quarto paira o silêncio. Será que ELE tá dormindo? Passa pelo corredor, a sala, o terraço e no oitão, inicia a lavagem do táxi branco.

Na varanda da residência defronte o velho, na cadeira de balanço lhe segue os movimentos e, para a mulher idosa à frente, também noutra cadeira:

- Eu tenho muita pena desse menino daí da casa 47.

Então, o rosto magro da mulher se volta à casa citada:

- Também tenho Mauro. O homem (parece que é padrasto dele) só trata o bichinho aos gritos. Viu como ele chegou berrando, como se estivesse lidando com um animal?...

- Maria até com os animais se deve tratar bem.

- Concordo. Mas... Cada criatura nesse mundo com a própria sorte. Destino.

Emudecem, enquanto permanecem com a atenção presa à cena do menino, que assim envergado, no serviço de limpar o veículo, se apresenta menor, mais franzino.

Indiferente a tudo, a tarde vai passando, com gente subindo e descendo as escadarias circunvizinhas e o som da música brega do momento numa residência próxima.

O que será desse menino no futuro, com essa educação? Um desajustado, um sujeito frio, insensível à dor alheia, preso ao próprio egoísmo de apenas, unicamente cuidar da própria existência? Mas...

- Meu velho fica aí “xeretando” o vizinho que eu tenho o que fazer!

Ele se volta, fitando o rosto castigado pelo tempo:

- Certo Maria, vai cuidar dos seus afazeres domésticos.

A mulher se retira. O andar miúdo. Cabisbaixa. Os braços compridos, mais secos. A decadência do físico...

Sensibilizado, o velho foge os olhos indiscretos à casa do lado oposto da rua. E ouve mais uma vez os gritos do homem grande, forte:

- Apressa isso que tenho de sair!

A mão pequena corre a esponja sobre o vidro escuro da porta direita.

- Esfregue com mais força, seu molenga.

Aqui na cadeira o idoso fecha os olhos, não querendo nada mais ver, isolar-se. Como se pudesse...

- Esse cara é um monstro!

2

Os gritos. O choro da mãe. A porta fechada. O quarto como prisão e... O homem saindo:

- Malandrinho não vai pra escola não?

- Tia falou que hoje é feriado nacional.

- O quê? Com essa história de novo?

O menino recua. Temeroso. E a mão grande, pesada com violência atinge-lhe a cabeça. A dor. As lágrimas. O corpo frio, tremendo.

- Tome, segura o dinheiro e vai comprar meu biscoito na mercearia do Tonho.

A cédula. Recebe-a e em passos vacilantes ausenta-se da sala.

No quarto o choro baixinho, de animal humilhado, judiado. E a voz grossa:

- Tá bom de você acabar com a choradeira. Nessa casa só escuto choros! Aqui tô bem arrumado!

A gargalhada de deboche e espera.

3

Sobre o viaduto. De súbito, a cabeça dói. A vista escurece. O mundo roda. O suor na testa larga, frio, em gotas. Então, solta a direção, entregue ao que o domina e, desgovernado o táxi despenca, caindo em baixo, como se fosse de brinquedo, empurrado por uma mão.

Nessa queda, o motorista morre, pois o veículo cai de frente contra o grosso tronco da árvore gigantesca que resistiu ao decorrer do tempo.

4

Antes, após sair da mercearia de Tonho, o menino teve de repente a idéia... Apressadinho passou pelo oitão da casa, contornando-a e entrou pela porta de trás e, na dispensa, retirou o vidrinho da prateleira e abrindo-o, despejou um pouco do líquido na mercadoria comprada. Feito isso, fechou com cuidado a embalagem e sempre apressadinho retrocedeu ao oitão e fingindo vir da mercearia entrou no terraço e na sala.

- Demorou demais! Comprou meu biscoito?

- Tá aqui.

Então o entregou.

Com a morte.

5

A janela, a porta do terraço, o oitão vazios. A casa está desabitada.

Após o incidente no qual o táxi despencou do viaduto e o motorista morreu, então dias após o enterro do mesmo, a mulher e o menino deixaram à residência. Calados. Contidos no que sentiam determinados.

O velho Mauro cadencia-se na cadeira de balanço. Terá mesmo presenciado as cenas nas quais via o menino raquítico, envergado lavando o carro branco, sob o grito do padrasto grande, forte, de rosto transfigurado pelo sadismo em fazê-lo obediente, humilde, sem defesa? Ah, sim, presenciou tudo. As cenas. Os gritos, que lhe parece ainda os escutar.

- Lave direito malandrinho!

O silêncio como defesa da criança. Por que o mundo é assim com seres maus para causar a dor alheia? Por que...

- Pensando na “morte da bezerra” meu velho?

Indaga D. Maria chegando e ocupando a outra cadeira à frente.

O velho se volta, sorrindo:

- Estava pensando naquele menino daí da casa 47. No quanto ele era xingado pelo padrasto, naquela sua ignorância de “machão”, todo arrogante...

Ela prende então a atenção à casa fechada, sem vida, como se fosse um abrigo de lembranças:

- É, o bichinho sofreu muito! Mas, tudo passou. O homem morreu... E agora, o menino com a mãe estão livres. A vida prossegue.

Suspira baixinho e conclui:

- Tudo passa. Tudo tem um fim, meu velho.

- Pois é, Maria. Nada é eterno nesse mundo...

Ela então o fitando:

- Deus sabe o que faz.

Aquiescendo em gesto com a cabeça mais branca, como se nos últimos dias tivesse envelhecido anos, Mauro aquiesce.

Pela rua não passa ninguém. Não se ouve nenhum som musical, de passos, ou zoada de veículos. A tarde morre assim acalentada ao poder da inesperada paz, que tudo abraça em seu seio fraternal, enquanto as cadeiras vão para frente e para trás. Para frente e...

...e vc, as expõe. Descreve o inevitável, doa a quem doer. Parabéns!

Irene Rodrigues – Rio de Janeiro (RJ).

Paulo Carneiro
Enviado por Paulo Carneiro em 16/06/2011
Código do texto: T3038008