A Sombra do Medp

A Sombra do Medo

Não gostava do mês de agosto, mês do cachorro louco, do “suicídio” de Getúlio, dos ventos, do frio seco das madrugadas insones. Desde menina, sentia essa antipatia pelo mês aziago. Quando, já no fim do outono, os sopros frios prenunciavam a chegada do temido inverno, seu humor mudava. Ficava triste, macambúzia, andava qual fantasma sem rumo pelos quartos vazios do casarão antigo da fazenda centenária. As sombras das árvores refletidas nas vidraças e muros pareciam querer contar os segredos ocultos nos desvãos da consciência. Mil pensamentos perseguiam-na como miríades de insetos zumbidores, perturbando sua paz durante o dia e afugentando o sono à noite. Encerrava-se na mudez de seu íntimo, tentando respirar, pelo menos, para continuar vivendo aquela sina maldita.

Fora no mês de agosto, há tantos anos que não se lembrava mais... Do passado, emergiam os vultos ameaçadores e saltitantes quais marionetes enlouquecidas.

Fora no mês de agosto, jamais se esqueceria...

Fora há muito tempo.

Fora em outra época, outro lugar, outra vida.

Fora feliz, rira, amara, tivera filhos...

Acordara de madrugada, silêncio, escuridão. Um barulho... Uma sombra... Um vulto refletido na janela... Passara depressa, voltara, sumira... O que queria dela? Seria um ladrão? Seria apenas sua imaginação exacerbada? Não tinha medo de fantasmas, o perigo vinha dos viventes.

Chamara o marido. Alguém estava invadindo a casa. Ele pegou o revólver do qual ela sempre tivera medo. Pôs-se a procurar o vulto ou o intruso, determinado a defender seu lar, sua família, tudo o que acumulara em anos de trabalho árduo. O barulho agora vinha da cozinha. Tentavam pisar de leve, eram sorrateiros, deviam estar dispostos a tudo. Ele se lembrou, com um arrepio, do noticiário da televisão, avisando da fuga de presos perigosos, ladrões e assassinos. Entrou na penumbra da cozinha, empunhando a arma, pronto para agir.,. Alguém abrira a geladeira e antes mexera em tudo, fazendo inventário do que levar e resolvera fazer um lanche para forrar o estômago vazio por anos de prisão. Sentiu uma raiva insana, como se atreviam a invadir sua privacidade, quem sabe o que pretendiam: roubar, matar, estuprar a esposa e a filha adolescente.

Não hesitou mais, não pensou nas consequências, atirou, atingindo o ladrão no peito. As aulas de tiro ao alvo tinham valido a pena.

O ladrão caiu ao chão, sem uma palavra...

Ele acendeu a luz da cozinha e... horrorizado, deu-se conta de que o “ladrão” era sua filha adolescente que, provavelmente, descera, insone, perambulara um pouco pelo jardim e decidira atacar a geladeira na fome insaciável dos jovens, sem ao menos acender a luz.

Maldito dia em que comprara o revólver, maldita televisão assustando os telespectadores na ânsia de conseguir mais audiência.

Desesperado, com os gritos da mulher ecoando-lhe na cabeça, dirigiu o revólver para a boca e atirou! Tombou aos pés da filha.

Uma tragédia que poderia ter sido evitada, causada pelo medo, pela insegurança que ronda o mundo atual.

E Ela? ... .

Ela ficou sozinha.

Ela nunca mais foi a mesma pessoa.

. Ela nunca mais foi feliz.

A sombra do medo acompanhava seus passos.

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Magali Crescini
Enviado por Magali Crescini em 29/05/2011
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