A imagem do demônio

1

Ele é magro, alto, as feições grosseiras, o cabelo duro, que pouco cresce, feioso. E calado.

Em seu mundo de silêncio refugia-se contra as ofensas do pai, o Geová, baixo, peito largo, braços musculosos, o rosto vermelho, o cabelo baixinho, também duro, o sorriso e a gargalhada por um nada e, com as pernas raquíticas, finas, apoiando-se na bengala se move sacudindo-as de lado (daí o apelido de Requebra) do balcão às mesas, atendendo os freqüentadores do bar, à esquina da Rua Dona Camila.

- Júnior vem aqui me ajudar.

Ele, o adolescente se chega em passos rápidos.

- Pegue essa bandeja com o prato, os talheres, o copo e entregue a D. Maria e peça um arrumadinho de charque e uma cerveja gelada. Segura!

As mãos grandes assim procedem. Os passos largos encaminham-se ao balcão, onde a mulher magra, negra, envelhecida debruçada sobre o balcão segue com os olhos o movimento da sexta-feira que, como é natural, vai crescendo à proporção que a noite amadurece.

- Pai mandou pra senhora lavar e pediu um arrumadinho de charque e uma cerveja no “ponto!”

- Certo, esse menino.

Responde a cozinheira e, quando possível, também garçonete.

Ele espera. Os olhos baixos, como se temesse ouvir os gritos do pai que, de repente... Assim nesse estado de espírito assemelha-se a um animal medroso, acuado pelo caçador, enquanto as mesas vão sendo ocupadas por casais, na maioria jovens, descontraídos, na curtição da noite, que vai animando-se ao calor das vozes, risadas, arrastar de cadeiras, tilintar de talheres. Os sons característicos do ambiente do “Bar do Requebra”.

- Pega aí, Júnior.

As mãos grandes conduzem a bandeja com o arrumadinho, os talheres, o farinheiro e a bebida solicitada. Move-se ligeiro.

- Pensei que tivesse morrido. Demora da peste!

Ele põe a bandeja sobre a mesa e espera nova ordem, que chega:

- Vá até ali naquela mesa saber o que o moreno quer. O cara ta acenando, agoniado.

Sem nada dizer, ele encaminha-se à mesa, logo à entrada do salão largo, que se enche do barulho natural da sexta-feira à noite.

O freguês servindo-se da bebida, então sorrindo, diz:

- Esse teu rapazinho é muito calado...

Pausa e conclui:

- Não puxou ao pai, que fala até demais!

Então Geová soltando a risada exagerada, responde:

- É do feitio dele, puxou à mãe, uma “catraia” que emprenhou e disse que o filho era meu.

- Mas, você por que não fez o exame de sangue, que acusa ou não a paternidade?

Jeová torna a falar, sendo prático, encerrando a conversa que não lhe interessa, pois além de expor sua vida íntima, ainda está perdendo seu tempo de comerciante com um “papo” que não lhe rende nada, prejudica-o mesmo.

- E fiz. Deu positivo. Nado me desculpe, mas tenho de trabalhar. Qualquer coisa é só fazer um aceno de mão.

- Tudo bem. Vai Geová trabalhar.

Esse se afasta. Sacudindo as pernas de lado, no jogo do caminhar, reentregado a luta exigida pelo seu comércio.

- Como é, tudo bem por aqui?

- Tudo “jóia”, Geová.

O sorriso aberto no rosto de traços corretos, os olhos azuis, os cabelos louros, escorridos, longos... Ah, essa mocinha faz qualquer um perder o sossego!

Retira-se. E, de repente, baixando os olhos se analisa. As pernas fininhas, os pés grandes, no tênis branco... Como uma criatura desse jeito pode despertar interesse numa mulher, principalmente quando se é bonita, como a lourinha ali, a Suzana? Por que...

Júnior percebe-o se aproximar e espera a nova ordem.

- Ou seu molenga vá pedir a D. Maria uma cerveja pra mesa daquele brancoso ali.

A mão acenando. A espera. Os passos que novamente retrocedem ao balcão e a voz baixa, tímida:

- Uma cerveja no “ponto”.

- Certo.

Balançando a cabeça em gesto de censura, então, Geová desabafa:

- Com esse filho tou bem servido! O que vai ser dele quando não contar mais comigo?

Joga as pernas e se move em sentido à mesa da lourinha, como se ela o tivesse chamado. Atraído pela presença jovem, bonita, feminina, tipo estrangeira.

Carros estacionam ao meio-fio defronte ao bar e casais saltam. Sorridentes. Empolgados pela idade que lhes pede a bebida, a conversa e o amor, no motel próximo. Sim, a descontração da ilusão passageira.

A moça o vê se avizinhar e entende. Por que Geová não se “manca?”. Com esses cambitos de pernas, andando de banda, se balançando... Um coitado. Maltratado pela vida.

- A cervejas tá geladinha?

- Tá Geová . Nos “trinques”.

A risada dobrada. E Suzana foge o rosto de lado, buscando alguém, com quem marcou o encontro. Por que a demora?

Os olhos miúdos de Geová devoram-na, no desejo que o denuncia, que pode (por que não?) fazê-lo ainda cometer uma loucura. Uma grande loucura!

2

A viatura policial estaciona.

- Até amanhã amarelinho safado!

Sorrindo ante essa intimidade do superior, o soldado acelera, partindo.

No banco traseiro da condução os outros dois policiais também sorriem.

- O sargento gosta de você Marcelo.

Diz o que vai à esquerda, junto a porta e o outro aquiesce:

- É ele vai com a tua cara.

A viatura ganha a madrugada alta. Os homens seguem calados. Pensativos. E Marcelo se lembra de repente, do que ocorreu durante a noite. A “batida” no início da escadaria da “Favela dos Macacos”, com a prisão dos três adolescentes que negociam com a droga do momento, o crack e entre esses, o rapazinho alto, magro, mulato, feioso, que se entregou sem protesto, resignado, como se estivesse prevendo o que lhe sucederia. A conformação da dor sem rebeldia...

- Merda!

Exclama revoltado, sem se conter com o que entende e nada pode fazer.

Os colegas se entreolham perplexos. O que terá havido?

- Algum problema Marcelo?

- Que bicho te mordeu amarelinho?

- Vão se lascar, seus porrinhas!

As risadas como resposta, enquanto a condução passa agora pela Avenida Beberibe, praticamente deserta de veículos e pedestres.

Marcelo dirige, concentrado. E... O corpo da moça loura, tipo estrangeira, dentro do automóvel próximo ao “Bar do Requebra”, ali em Dois Unidos? Quem a terá estuprado e em seguida a sufocado com mãos fortes, no desespero de esconder o que praticara? A maldade humana não tem limite... Ah, por mais tempo que passe na polícia, que viva, não se adapta aos horrores que presencia na dia-a-dia da rotina como policial! Sim, o ser humano por mais evoluído que se mostre, não passa na realidade de um animal irracional. Uma besta! A imagem do...

- Demônio!

A voz em protesto novamente, enquanto os outros policiais mais uma vez se entreolham. Sem comentários.

Por trás do prédio do “Mercado Dois Irmãos” a luz do novo dia surgindo, dissolve as últimas trevas da madrugada, sem, contudo, poder diluir as reflexões de Marcelo, atormentado com o que presencia, entende e sofre.

A viatura quebrando à esquerda, adentra no Bairro do Arruda.

No céu, o sol ainda vacilante desponta.

Quando li me lembrei de João Antonio. Paulo Valença é um grande cronista do cotidiano dos marginalizados. É um escritor de verdade.

Comentário enviado por:

William Porto em: 19/8/2010.

Paulo Carneiro
Enviado por Paulo Carneiro em 20/04/2011
Código do texto: T2920517