A morte impera

1

O garçom Emanuel sabe. Essas adolescentes violentadas e encontradas em locais ermos são vítimas do tarado do automóvel cinza-prateado.

Sim, ele está vivido, com a cabeça grisalha, compreende tudo... Daí quando o carro estaciona na calçada oposta ao bar-restaurante, do qual ele, Emanuel, é funcionário, com descrição observa o homem moreno, alto, bonito, bem-vestido que saltando, encaminha-se à mesa recuada a direita de quem adentra no ambiente, para tomar as doses de uísque, acompanhadas de lagosta frita e depois se retirar e... Na esquina adiante, geralmente dar a carona para a mocinha que aguarda o ônibus e depois... Aparecer à nova vítima no dia seguinte, com a descrição detalhada as da adolescente que esperava a condução. A blusa, as calças compridas, a bolsa de livros presa às costas... Esses detalhes que ele, Emanuel, lê com interesse na reportagem policial do matutino.

Quantas mocinhas já foram violentadas e estranguladas até agora? Faz o cálculo rápido e conclui: quatro! Por que há gente no mundo assim, que mata, no sadismo doentio? Por que o ser humano é tão imperfeito, animal? Reflete mais uma vez, sem conseguir dormir, os olhos nos caibros e

telhas enegrecidas pelas trevas da madrugada. Mas, um dia, como tudo nesse mundo, os crimes terão um fim e... O tarado será preso, pagará pela maldade que pratica. Um dia...

- Tás sem sono Emanuel?

A voz da mulher, ao lado, solidária ao que se passa, a boa companheira.

- É perdi o sono.

- Algum problema no emprego?

Ele cerra os olhos, cansado, e responde:

- Nada não.

- Vai dormir criatura. Descansa o corpo, a cabeça. Você precisa repousar.

- sei, sei.

Pelo basculante à frente, no quarto, aos poucos, a luz do novo dia surge tímida.

2

D. Vaneide avisa à filha, a Terezinha, vendo-a sair da sala pequena, a bolsa escolar presa às costas, a blusa laranja, as calças azuis colantes que lhe modelam o corpo branco, esguio, alto, de autêntica manequim:

- Filha cuidado com a noite. Tem muitos perigos soltos. Quando acabar as aulas, venha logo para casa!

A mocinha sorri (tão feminina, com as covinhas no rosto de traços corretos, bonito) e já abrindo a porta:

- Mamãe tou bem crescidinha. Sei me cuidar. Esfrie a cuca. Tchau!

- Vai com Deus.

Terezinha cruza o jardim pequeno, abre o portão e passa. Fecha-o por fora e desce a rua estreita. Apressada.

A mãe fica no terraço, seguindo-a com os olhos vencer a rua, dobrar a esquina e desaparecer. Com tanta violência na noite e, com esses estupros de meninas encontradas mortas...

- Não, o Pai a protegerá! Pensamento positivo D. Vaneide.

Retrocede a salinha e dessa a cozinha, para lavar a louça do jantar.

De uma residência circunvizinha, uma criança chora. De outra, um cão late. Pela rua vozes de homens falando alto. Por que em bairro pobre é tudo assim aberto, acanalhado?

Sorri e abre a torneira.

3

Emanuel observa o homem moreno, “coroa”, bonito, bem-vestido que mais uma vez chega, após estacionar o automóvel cinza-prateado na calçada oposta.

Sentado, ele espera. Paciente. Educado.

Esse cara deve ser gente importante. A

maneira de se vestir, de falar... Deve ser um

industrial, um político ou...

- Emanuel pega a bandeja.

Desperta das reflexões meio assustado:

- Certo Gordinho.

Segura a bandeja, e encaminha-se à mesa do homem que o espera, com o solicitado.

- O pedido senhor.

- Tudo bem. Obrigado.

O garçom põe a bandeja sobre a mesa e sorrindo:

- Qualquer coisa, basta me acenar.

- Tudo bem. Obrigado.

Emanuel retrocede ao balcão para receber nova bandeja, e atender ao freguês magro, envelhecido que aguarda o que pediu. A cerveja. O queijo assado.

Calmo, o homem bem vestido toma a bebida. Os gestos lentos, como se os policiasse.

O garçom com disfarce, estuda-o. Será que esse sujeito é mesmo o tarado que vem estuprando e matando as adolescentes após lhes oferecer a carona, quando elas esperam o ônibus? Ou tudo lhe será impressão, engano, desconfiança? Mas, e as coincidências, as descrições de as vítimas serem semelhantes as mocinhas que aguardavam a condução? A blusa, as calças, a bolsa às costas, as sandálias... Ah, se não

pensasse tanto, se limitasse apenas a viver, egoisticamente cuidar da própria vida!

- Emanuel acorda cara!

A bandeja. Recebe-a e apressado, se dirige à mesa do velhote.

A mão que se ergue. O aceno. E ele sorri, aquiescendo ao pedido da nova dose de uísque e, para o colega atrás do balcão:

- Uma dose de uísque para o homem ali da mesa.

- Certo Emanuel.

Então a jovem branca, esguia, de blusa laranja, calças azuis colante, bolsa escolar presa às costas, entra com outra mocinha e desperta a atenção dos que se fazem presente ao grande salão, principalmente dos homens:

- Que gata Emanuel!

Disfarçando, o homem bem-vestido, lhes segue os gestos, os detalhes femininos, que são um convite, delicioso convite ao pecado.

4

O jornal com a reportagem na página policial. O corpo semi-despido. O pescoço com a marca arroxeada da violência do estrangulamento. A blusa laranja. As calças azuis, colantes. A bolsa escolar ao lado. O estupro...

Perplexo, trêmulo o garçom solta o jornal sobre a mesa:

- Porra! Outra vítima! Até quando tudo isso continuará?

Pensativo, não vê a mulher adentrar na sala:

- Ôxente! Não vai jantar não, criatura? Você anda muito misterioso pra o meu gosto...

Então, ele desperta ao presente:

- Misterioso?

- Claro, meu querido marido não mais dorme direito, não se alimenta... Alguma “bronca” lá no teu trabalho?

O silêncio. E a mulher balançando a cabeça em gesto negativo, crítico:

- Sei não...

Da residência circunvizinha, a criança chora mais uma vez. De outra casa, o cão late, pedindo a liberdade. Pela rua, passam vozes em conversa.

Devagar, Emanuel toma a sopa. Será mesmo aquele sujeito do automóvel cinza-prateado o verdadeiro tarado, o assassino das adolescentes, após lhes usufruir os corpos esguios, de manequins? As coincidências dos detalhes. A carona que o homem sempre oferece as mocinhas... Ou tudo lhe será apenas uma dúvida, suspeita? Mas...

Empurra o prato e se erguendo da mesa:

- Maria vou dar uns “giros” por aí.

- Vai Emanuel. Vai.

Pensativo ele logo ganha a rua. Caminha. Na

tentativa de “arejar” o espírito, esquecer do que é dolorosamente suspeito.

5

O Gordinho atrás do balcão, segue com o olhar analítico o movimento do salão do bar-restaurante, que está crescendo à proporção que a noite amadurece. É sempre assim às sextas-feiras à noite e, vendo o novo garçom que substitui o Emanuel, se lembra do ex-colega.

O Emanuel com aquelas suas desconfianças, mania de estudar as pessoas, lhe revelou, pedindo conveniência, segredo:

- Gordinho o tarado que violenta as mocinhas e as estrangula é o homem moreno, o cara bem-vestido, do carro cinza-prateado.

Ante a sua perplexidade, que o deixou sem voz, Emanuel prosseguiu falando:

- Já estudei tudo Gordinho. As vítimas coincidem com as meninas que recebem carona do sujeito e que depois aparecem violentadas, mortas, em locais ermos, afastados daqui do centro da cidade!

Detalhou-se com lógica e ele, Gordinho, sem voz, continuou escutando-o.

- Pensei Gordinho e... Vou denunciar pessoalmente tudo à polícia.

Aí, ele não mais se conteve e realista:

- Cara, tu é doido? Se quer denunciar, fala pelo telefone público, sem dar o nome. Deixa pra a polícia, à autoridade resolver os crimes. Cai fora desse “angu”. Você vai acabar mal. Fica na tua meu! Tou avisando, como amigo!

Emanuel nada respondeu e tornou às reflexões, enquanto ele, Gordinho, prático, se reentregou ao trabalho:

- Pega a bandeja. Vamos trabalhar! Esquece.

Tudo isso passou e, dias depois, o colega ao chegar a casa, tarde da noite, foi executado com seis disparos ao abrtir a porta para saber quem o chamava. “Queima de arquivo”. Alguém não desejava que ele continuasse com a investigação, na exibição dos detalhes que coincidiam com os assassinatos das jovens, já em número de cinco, todas alunas do Colégio “Passos da luz”, nas proximidades...

- Gordinho três “louras suadas” pra mesa ali do canto.

- Certo, moreno.

Volta-se e abrindo o freezer, retira as garrafas e, olhando para a mesa do homem moreno, bem-vestido que acaba de ocupar a mesa recuada, a preferida:

- Toma, leva também a dose de uísque pra o freguês ali e diz pra ele que vou providenciar a lagosta assada.

- Tudo bem.

O rapaz se afasta. Trabalhando. E Gordinho então, em voz baixinha, liberta o pensamento:

- Tudo continua. Emanuel foi que perdeu a via. Mas... Numa hora, num dia, tudo mudará.

Profissional, então espera a próxima solicitação de bandeja.

À mesa, os olhos do homem moreno estudam o movimento do ambiente. E brilham maliciosos com a entrada da adolescente morena, alta, esguia, de bolsa de livros presa às costas e sorriso nos lábios vermelhos, lábios da cor do pecado.

6

O homem magro, envelhecido deixa o bar-restaurante.

Com o olhar analítico Gordinho o segue. Esse cara deu para aparecer. Tipo bem-vestido, calado. O ar ausente... Toma as cervejas cabisbaixo, entregue a si mesmo, ao seu mundo de introvertido, evitando aproximação, mas, assim é a vida, cada um com o seu mundo, sua história. Mistérios. Ninguém, na realidade, tem nada que se meter com os particulares do próximo!

- É o sensato!

O garçom então se avizinha:

- Duas doses de conhaque e um prato de galinha-a-cabidela.

- Certo.

O rapaz espera. Gordinho entra na sala conjugada, indo providenciar a comida.

O salão ferve com as vozes, o tilintar de talheres, arrastar de cadeiras, o som natural da noite de sexta-feira que amadurece.

Na calçada, o homem envelhecido movendo-se devagar cruza a avenida, em sentido ao carro estacionado na calçada oposta.

Chega. Abre a porta. Adentra. Parte. Cauteloso. Perscrutando as laterais, com residências de moradores sem aparecer. Resguardados. Na precaução de uma cena imprevista. Portas e janelas fechadas. As luzes das varandas acesas. Os jardins pequenos vazios. O carro avança.

Adiante está o abrigo para os que esperam os coletivos, com uma mulher baixa, gorda e uma adolescente de bolsa presa às costas. Uma colegial. Magra. Alta. Esguia. Feminina.

O homem então sorri, prevendo o que “curtirá”...

- Aceita uma carona menina?

A mocinha se volta, relutante, enquanto a mulher ao lado, faz que nada percebe, desviando o rosto, no fingido interesse de avistar o coletivo ao dobrar a esquina próxima.

- Há essa hora, o ônibus demora demais! Vou pra cidade, quer a carona? Não tenha medo, tenho idade de ser seu avô...

O sorriso no rosto comprido, pálido, ferido pelo tempo. A colegial então sorrindo, aquiesce:

- Tudo bem. Aceito.

Ele abre a porta e ela entra apressada. E o

carro arranca, aproveitando o resumido transitar – devido à hora – dos veículos.

Sozinha, a mulher tira conclusões. Essas gurias entram num carro de um cara desconhecido... É por isso, que há tanta miséria no mundo!

Os olhos buscam o carro que diminui à distância.

No dia seguinte, novo corpo é encontrado na “Mata do Passarinho”. Semi-despido com marcas do abuso sexual, o estupro, e o pescoço arroxeado, pelo estrangulamento de um provável cordão.

Sim, tudo numa repetição de que a morte está solta. Impera.

Quando li me lembrei de João Antonio. Paulo Valença é um grande cronista do cotidiano dos marginalizados. É um escritor de verdade.

Comentário enviado por:

William Porto em: 19/8/2010.

Paulo Carneiro
Enviado por Paulo Carneiro em 20/04/2011
Código do texto: T2920509