Contrato
Era um trampo fácil, a grana boa, e a mamãe ta precisando de um TV nova.
A coisa era fácil mesmo, e ainda me passaram tudo que eu precisava saber e mais um pouco. Só precisei de meia hora, ou um pouquinho mais pra estudar tudo, e um copo de uísque depois eu já tinha deixado o flat alugado. Não houve muito problema, a segurança era uma bosta, metade das câmeras e alarmes nem mesmo funcionavam. Os guardas? Meia dúzia de barrigudos molengas, acostumados com a vida boa, mal sabiam engatilhar uma arma. Nem me viram chegar, pobres coitados. Desde que pisei no terreno do cara, até estar aqui, sentado de frente pra ele, os ponteiros do relógio se moveram muito pouco. O sofa é aconchegante, entretanto, o cara não consegue desfrutar do conforto do seu.
- Por que? - Me pergunta com olhar neutro.
Apenas encaro ele com uma sobrancelha erguida. Ele da um risinho amarelo, e tenta outra vez.
- Por que você faz o que faz?
Gostei do cara. Não é como o resto, que implora, chora, esperneia, ameaça, ou oferece uma quantia exorbitante de dinheiro. "Sabe o quanto eu sou rico?" Foda-se, se tem tanta grana, devia saber que um contrato é um contrato. Deixo a arma repousar no meu colo, tiro um charuto do bolso da jaqueta, e uma caixa de fósforo do bolso da calça. Acendo ele sem tirar os olhos do cara, que não faz um movimento sequer. Bom garoto.
- Espero que não se importe de eu fumar.
Imagino a cara da minha mãe se ela soubesse que eu fumo. O cara dá outro sorriso sem graça e abre os braços "Mi casa és su casa", diz o gesto.
- Quanto a tua pergunta, por que cê faz o que faz?
- Dinheiro.
- Só por isso?
Eu vejo compreensão nos olhos dele quando ele responde.
- Não, também porque sou bom no que faço.
- Então, eu ganho muito bem por serviço, sou ótimo no que faço, e por mais que não me orgulhe, gosto muito disto.
Espero agora o ataque de fúria, ou choro, mas ele se mantêm composto. Só deixa evidente o seu desespero quando os olho correm de mim para o quarto no final do corredor, onde tranquei o filho dele. Dou uma tragada, solto a fumaça, e enquanto ela sobre espiralada rumo ao teto, digo:
- Não precisa se preocupar, te garanto que nada vai acontecer com ele.
- Obrigado.
- Agradeça a quem não o colocou no contrato.
Ele me encara incrédulo, com raiva.
- Seu animal! Você faria isso?
- Ei, ele não tá no contrato, que diferença faz o que eu faria ou não? E pensa bem no que cê fala, se fizer mais uma dessa eu encerro essa conversa na hora. Definitivamente.
O cara respira fundo, e parece voltar ao normal. Tenho que dar o braço a torcer, taí um cara a se admirar. Novamente naquele mesmo tom neutro ele indaga:
- Posso tomar um drink? One for the road, se sabe o que quero dizer.
É, o cara é bom mesmo.
- Faça dois, tem uísque?
- Uhum.
- O meu caubói, de qualquer outro jeito é coisa de boiola.
O desgraçado ri, de verdade. Sorte que eu passei a ver os alvos como alvos, se não ficaria tentado a deixá-lo em paz. Enquanto ele prepara as doses, sob a mira da minha arma, eu fico imaginando o que ele fez que acarretou na minha contratação. Afasto o pensamento, não faz diferença agora.
Ele deposita um copo na mesinha ao lado do meu sofá, quer dizer, do sofá dele, senta-se de frente pra mim no outro, com seu copo na mão. Ele ergue ele para brindar, mas faltam-lhe palavras.
- Concordo - digo sem expressão.
Ambos sorvemos um bom tanto do líquido, com outro gole ele acaba com o seu, segura o copo com as duas mãos e deixa a cabeça cair para a frente, os cotovelos apoiados nas coxas. Respira fundo novamente. Levanta os olhos e recomeça a falar:
- Não tem como eu sair dessa não é?
- Não.
- Posso saber o motivo?
- Não faço idéia.
- Como não?
- Que diferença me faz saber? Me dizem quem, eu vou lá, e bem, o resto é resto.
Ele me encara estupefato. Eu suspiro.
- Cê acha que eu faço isso por ideologia? Se fosse esse o caso eu tinha aberto uma porra duma ONG.
- "Assassinos de aluguel - fazendo do mundo um lugar melhor"
Agora foi minha vez de rir. Mas tão logo paro, volto a ver a angustia na cara dele quando as mãozinhas se chocam desesperadas contra o carvalho da porta. Aquela, no fim do corredor. Tomo o resto da dose enquanto vejo o coração dele se despedaçar.
- Eu poderia me despedir?
- Não.
- Só um abraço.
- Não. Regras da casa.
Ele se resigna enquanto eu coloco o silenciador na arma. Seus olhos lacrimejam mas ele não perde o controle. Com um "click", o silenciador está preso.
- E ele - pergunta suplicante - o que vai acontecer?
- Quando tiver terminado aqui, ligo pra polícia, e eles tiram o moleque do quarto.
- Será que...
- Escuta aqui! Não vim aqui ser seu amigo - uma pena pensei - já te dei um tempinho a mais, agora fica quieto ai. E fecha os olhos, dizem que ajuda.
Quando eu disse que gosto do que faço, era verdade, mas tem vezes que isto é uma merda. Aperto o gatilho duas vezes, para ter certeza. Agora sigo com passos firmes em direção ao quarto no fim do corredor. Eu menti.
Ele também tá no contrato.