E N T R E V E R O *
Como tudo aconteceu não sabia, apenas que foi coisa rápida, sangrenta. O quadro era aterrador, um monte de corpos espalhados, chacinados, uma carnificina. As balas vararam as carnes e o sangue escorria pelas paredes, tingindo de vermelho o barro rebocado. Apenas os olhos tinham alguma mobilidade, dando conta do que presenciava, a mente flutuava, indo e vindo, em lembranças buscando lucidez aos fatos inesperados vividos ali.
Fora visitar o primo, morador em uma comunidade na periferia de São Paulo, almoçariam naquele domingo de sol, depois da pelada que combinaram, na casa da tia Marina, figura mais próxima da falecida mãe. Morador de casa de cômodos no centro da cidade, tomou cedo o ônibus para o seu destino, até ai concatenava bem os pensamentos, parecia lúcido. O mais, contudo, não conseguia atinar com segurança. Diante si verificava uma cena inusitada, imóveis todos, olhares petrificados, a tia, debruçada sobre a máquina de costura, o óculos no chão, cabelos alvoroçados, uma nesga rubra, um filete escorria pelos cantos da boca, estava inerte, pálida como uma boneca. Mulher guerreira, tinha a coluna levemente encurvada de tanto trabalhar costurando. O primo tinha os olhos arregalados, a boca semi aberta, numa expressão de pânico, a camisa era uma mancha de sangue que crescia, havia ainda mais três corpos, além dele, estendidos na entrada do barraco, no corredor de frente e dentro da casa. Parece que foram surpreendidos pelo tiroteio sem que houvesse tempo de defesa ou de fuga. Por Deus, teriam o primo ou a tia se envolvidos em encrencas ?, Não poderia ser, eram pessoas de bem, trabalhadores pacíficos, discretos, sabiam onde estavam pisando, não conseguia entender toda aquela barbaridade contra eles todos... Aqueles homens descamisados, armados, atirando à esmo, com ferocidade, cuidando para não deixar testemunhas, pareciam enfurecidos, embrutecidos na sanha do massacre. A diferença entre os irracionais selvagens e eles, apenas a aparência, pois a condição humana já não era notada.
O som ainda estava ligado, alto, o que deve ter encoberto o barulho dos tiros... Ou talvez o código da lei do silêncio que imperava ali, constrangendo os moradores, impossibilitasse qualquer ajuda. Ninguém para os socorrer, talvez ainda estivessem vivos, poderiam avisar a polícia e trariam as ambulâncias, quis gritar mas a boca não obedecia seu comando, estava fria e imobilizada como se tivesse tomado uma anestesia geral, apenas a mente, confusa, buscava recompor os fatos para tentar elucidar as razões daquilo.
Em meio às alegrias do reencontro com entes queridos, na correria cotidiana da cidade grande, com plantões em vários finais de semana na construção civil, pois tinha que ganhar as horas extras proporcionadas no trabalho como servente de pedreiro. Cansativo era, mas precisava aproveitar a oportunidade de fazer alguma economia, Ele, a tia e o primo vieram do interior do Estado, saindo da vida na agricultura, sujeita sempre às sazonalidades das colheitas, sujeitando-os à instabilidade e desemprego,para tentarem uma vida melhor na metrópole. Ele resolveu alugar um quarto, em um cortiço próximo da obra, ganharia tempo e evitaria os transtornos diários com ônibus lotados. Quanto a eles se arrumaram naquela comunidade, cada um vivia para si, sem se incomodar com os afazeres dos vizinhos, aquele era o pacto subentendido por todos para sobreviver naquele local. Ninguém reparar na vida alheia, cheia de mistérios e presepadas.
De repente, um alívio, ouviu passos vindo na direção e vozes sussurradas, falando baixo, era a tal ajuda esperada. Pensou entender a demora, talvez por precaução, mas agora seriam resgatados, talvez houvesse alguma chance de vida. Novamente quis se mexer, em vão, não tinha o comando de seu próprio corpo.
Uma mulher e um homem chegaram, pulando sobre os corpos, pareciam não estarem assustados com o que viam, nenhuma expressão de surpresa... Adentraram o barraco e começaram a revirar coisas, levaram o som, a televisão portátil, algumas roupas...Estavam saqueando o pouco que encontravam. Apenas um sinal de certa consideração com a velha tia, a mulher mencionando que ela não merecia tal sorte, por ser uma trabalhadora, na máquina de costura até altas horas da noite... Mas que levaria a máquina dela também, embora não soubesse costurar, devia valer algum dinheiro, voltaria para buscar rápido, afinal, se não levasse, logo mais outros fariam a limpa geral. O parceiro dela também voltaria para levar o fogão e o botijão de gaz, saíram afoitos com a recompensa e nem se deram ao cuidado de verificarem que ele estava vivo...
O silêncio, depois do roubo do som, era ainda mais incômodo, as moscas varejeiras circulavam em volta do sangue batido, entrando pelas bocas abertas, ouvidos e narinas. Davam enjoos aquelas cenas e o cheiro empesteando o local de sangue coagulado. Parecia um açougue humano. Novamente tentou se mover, dizer que ainda estava consciente, mas sentia-se enjaulado em um escafandro de ferro, o corpo não obedecia sua vontade e os gritos de socorro ficavam apenas nas intenções.
Cada qual que aparecia, chegando furtivos, cuidadosos como ratos, levavam uma coisa, em pouco tempo era como se o barraco estivesse desocupado, que os moradores tivessem mudado. Os corpos fuçados nos bolsos em busca de dinheiro, tiraram o relógio do Pedro e um brinco da Joana, a namorada dele. Abriram a sua carteira, só tinha uns trocos, já havia contribuído com as despesas do almoço e da cerveja, restava pouca coisa, além do cartão de bilhete da condução.
Não entendia porque não chamavam a polícia, ainda que fosse uma denúncia anônima, até que apurou os ouvidos e passou a entender as razões:
- Vamos tirar o que der, depois a polícia vêm buscar os corpos. A turma do Dedé da favela vai justiçar os camaradas pelo engano. Erraram de família, a que estavam procurando, avisadas por alguém, caíram no mundo na madrugada, os coiós, zoados pela farinha, entraram atirando e mataram esse povo inocente, que nem devem saber porque morreram... A disputa agora, entre os moradores, será pela posse do barraco.
Bem mais tarde, já noitinha, sirenes denunciavam a chegada do rabecão, e os corpos foram ensacados em capas pretas, de plástico duro, e colocados dentro da carroceria fechada, como se fossem mercadorias. Só então o entorpecimento total da razão, denunciando o fim.
O policial, entediado com aquela rotina, fumando um cigarro, comentou com o parceiro: vivem e morrem como animais...
* Selecionado para publicação em livro na Antologia de Contos, Editora CBJE - Rio de Janeiro-RJ, 2012