Caso 823 – Hospital das Clínicas.
Ele saiu do banheiro lindo com seu pijaminha azul e eu o abracei, cheirei sua cabecinha de cabelos úmidos e perfumados, peguei minha bolsa, beijei os outros filhos, ainda sentindo o cheirinho de criança e no elevador como costumeiramente faço minha oração pedindo pela divina proteção, encontrei meu companheiro bem na frente do portão do prédio encostado na viatura ele me sorriu e garantindo que seria uma noite calma, saímos para nossa jornada noturna.
Tudo parecia muito tranquilo, ainda eram 3 horas da manhã quando foi solicitada a presença de uma agente feminina no hospital das clínicas, estávamos bem próximos e seguimos para lá.
Quando chegamos notamos a presença da homicídios e alguns PMs que estavam por lá também, cumprimentamos e fomos ao encontro do tenente Pacheco responsável pela solicitação, ainda não sabíamos o que nos esperava mas aquela noite calma acaba ali.
Encontramos o Ten. Pacheco, um sergipano de aparência austera, mas muito boa praça que foi logo me dizendo:
_ Então é a Sra. que vai segurar a bucha Ten.Soares! - Disse sorrindo.
_ Parece que sobrou pra mim, só falta saber qualé né? Respondi sentindo o forte aperto de mão.
_ O que ocorre é o seguinte... ele relatava enquanto o Alemão, com seu jeito nervoso de sempre ia ficando ainda mais nervoso, eu ainda não conseguia acreditar em tudo o que ele havia nos contado, mas o seguimos em direção ao necrotério do hospital, onde se concretizaria finalmente as imagens que eu e o Alemão não conseguíamos sequer imaginar, apesar de mais de uma década servindo na corporação.
Entramos. A porta fechou-se atrás de nós e vimos sobre a mesa de metal o pequeno volume, dentro do saco. Devia medir cerca de cinquenta e seis centímetros e não mais que cinco quilos. De cabelos escuros e pele morena ela estava lá estiradinha uma bebê de seis meses de idade, o médico entrou e começou tristemente a relatar...
_ Então..., a menor chegou aqui acompanhada de dois policiais militares e de sua progenitora e uma outra criança de 6 anos provavelmente seu irmão, a menor apresentava algumas escoriações ( apontava os locais) já chegou em óbito,e não foi possível fazer nada e ao examinar foi contatado o sufocamento, que no início acreditamos se tratar de leite, mas no exame mais rigoroso percebemos então que se tratava de semem humano,e pelas condições em que ela chegou aqui acreditamos que deveria estar em óbito há mais de duas horas, pois já mostrava algum endurecimento nas juntas e a coloração do corpo já estava modificada, e já havia a presença de alguns fluídos , decidimos acionar então os policiais que os trouxeram enfim, ainda estamos chocados. - Ele disse sem tirar os olhos da pequena figura.
_ E onde nós entramos na história? _ Perguntou o Alemão enquanto eu continuava observando aquele pequeno cadáver e sentindo que algo em mim, não estava normal, o Alemão também percebeu de alguma forma e me perguntou se estava bem, fiz apenas um sinal de positivo e ouvi o resto da história.
_ O menino que estava com a “mãe” , assim que chegou queixou-se de dores abdominais, examinamos e sentimos alguns nódulos na altura do estômago e pedimos um raio X, mas no raio X encontramos corpos estranhos, possivelmente cápsulas contendo cocaína.- continua relatando o médico _Mas para fazermos qualquer intervenção precisamos da presença de vocês aqui,ele está no isolamento com os policiais que o trouxeram, já está com sorinho no braço para diminuir a dor e estamos esperando resultado dos exames de sangue caso precisemos fazer algo mais radical.
Naquele instante minhas pernas tremiam e minhas mãos suavam frio, não sei se pelo cheiro de água sanitária e morte misturados. Olhei mais uma vez para ela e perguntando se poderíamos ir ver o menino fui em direção à porta, eu procurava palavras e não as encontrava, o Alemão estava ficando aflito por ver-me naquele silêncio, que não em nada lembrava a minha conduta costumeira, e a todo instante olhava pra mim, talvez me conhecesse bem mais do que eu imaginava.
A cada porta que cruzávamos, meu coração disparava, eu não concebia a imagem de uma criança sendo usada como “mula”, no final do corredor, em silêncio entramos na sala e vi o policial sorrindo com o pequeno José, que fechou a cara assim que nos viu entrando.
_Oi lindão! ( Brinquei com ele) _ Eu vim aqui só pra te visitar, posso ver seu rostinho?
Apenas silêncio. Então eu disse, eu tenho um filho do seu tamanho, se você falar comigo eu te levo pra brincar com ele, o que você acha disso?
De repente a voz meio abafada:
-No puedo jugar, me duele el estómago!
_Pero si me hablas, te lo prometo dolor pasará! Imediatamente ele abriu os olhos, e começou a contar que o homem fez ele engolir umas coisas assim ( mostrando o formato) e disse que ele não podia ir no banheiro fazer cocô, se ele fosse no banheiro, ele iria apanhar muito, e que ele ia fazer igual ele tinha feito com Ana, enquanto isso o Alemão via as radiografias e as ultrassonografias feitas, eram 12 cápsulas que ainda não sabíamos se continha cocaína ou outro tipo de droga. Enquanto isso eu conversava com José e ia pouco a pouco recolhendo características do agressor, que estava foragido, perguntei também sobre sua mãe: _ Onde estava sua mãe quando o homem machucou sua irmãzinha e te deu essas coisas para engolir? Perguntei em espanhol.
_ Mi madre estaba con otro tío en la habitación, otro tío le dio la comida se me ordenó que me trague. Quando ouvi isso, uma fúria tomou conta de mim e eu saí quase correndo, eu precisava sair dalí, tudo estava confuso em minha mente e eu tentava fixar a minha mente no azul do pijama do meu filho, mas se misturava ao cenário mórbido do necrotério , aos olhos tristes do menino José.
Encolhi-me num canto do corredor do hospital e alí chorei muito, mesmo recebendo o consolo do ombro amigo do Alemão, eu chorava e não sabia se era compaixão ou ódio que eu sentia pelos pais de José e Ana. Me refiz e demos continuidade ao caso, nenhum dos presentes, nem o tenente Pacheco, nem o Dr. Marcos, nem o soldado da pm que assistia a tudo sempre acariciando o braço de José me recriminaram, todos perceberam que naquele instante eu deixei de ser um oficial para ser apenas uma mulher. Soube logo em seguida que mãe ainda estava no hospital e quando finalmente ficamos frente a frente, num reflexo impensado retirei minha insígnia, entreguei minha nove e minha reserva para o Alemão que tentava me tirar do pequeno comodo onde ela estava, mas consegui, me livrar dos braços fortes dele e finalmente eu consegui agarrar-me naquela mulher e
socar seu rosto com violência, várias vezes e quase cuspindo dizer a ela- Eres madita, tienes que morrir!! Eu repetia enquanto batia sua cabeça contra parede e aquilo parecia lavar minha alma, mesmo sabendo que não mudaria a história da pequena Ana, eu não queria matá-la queria apenas que sentisse um pouco de dor como José estava sentindo. Senti a mão de Glauber um amigo que viria assumir o caso me puxar e abraçar-me com força dizendo _ Já chega! Já chega! E então senti que não poderia fazer mais nada, a não ser procurar o outro culpado pelos crimes e sai sem olhar para trás.
Todos fingiram não ter visto o que eu fiz naquele dia , no fundo era o que todos queriam, naquele dia eu não fiz relatório, já eram sete horas da manhã quando cheguei em casa e encontrei todos dormindo, entrei debaixo do chuveiro para tirar o cheiro de sangue e morte que estava impregnado em mim e fiquei ali por muito tempo tentando aliviar a raiva e a dor em minha mão. Hoje fui informada que José foi adotado por uma familia brasileira e que a mãe dele ainda está presa e se condenada deverá pegar no máximo dezoito anos de condenação e lamentei por não tê-la matado, o padrasto de José e Ana continua foragido, eu continuo procurando.
Cristhina Rangel.