O Homem que Invultava
O Homem que Invultava
O Homem era o cão chupando manga na encruzilhada. Magro como um timbó, todavia malgrado o seu aspecto mirrado nunca levava desaforo pra casa. Todos sabiam da sua fama de arruaceiro e da decantada habilidade no manejo de um facão de 18 polegadas.
Só confiava no facão da marca Sollinger. Alardeava sem cerimônia que ferramenta para ser boa, tinha que ser alemã. A nacional não prestava. Gabava-se por ser conhecedor dos 21 pontos de defesa e ataque. Segundo os entendidos no assunto, proporcionados pelo instrumento cortante e, por isso, tão temido.
O comentário geral na vila de Córrego da Onça era que Neco Fanfarrão - alcunha como o sujeito ficou conhecido - tinha parte com o Tinhoso. Quando perseguido pela Polícia, ele desaparecia misteriosamente: “invultava”, como dizia o tabaréu, driblando espetacularmente os seus perseguidores.
Sábado, dia de feira no distrito, os moradores já acordavam temerosos porque Fanfarrão, de uma hora para outra, poderia aparecer. Sua simples presença no vilarejo já era motivo de grandes preocupações. Prenúncio de uma série de arruaças.
Naquele sábado o céu já amanheceu meio cinzento; nuvens plúmbeas anunciavam a formação de tempo fechado. Às oito da manhã, Neco despontou na ponta da rua principal. Chegou a galope no seu arisco piquira Alazão. Em frente ao Bar Dois Irmãos puxou, instantaneamente, a rédea do animal, freando-o bruscamente, derrapando suas ferraduras na calçada de paralelepípedos, fazendo levantar faíscas douradas para todos os lados.
Homens, mulheres e crianças - curiosos e apreensivos - povoaram as janelas para bisbilhotar aquela costumeira cena, mas ninguém ousou um pio sequer. Quem se atreveria se até os policias do destacamento o temiam? Alguns até eram acometidos de piriri só em saber da presença de Fanfarrão no povoado. Diziam que até reza da braba era feita com o intuito de o arruaceiro não ir além da costumeira exibição inicial de valentia. E que, após cumprir a sua missão no lugarejo, voltasse para o seu sítio sem que fossem necessárias intervenções.
O mirrado homem apeou da montaria. Quase 1m70, barba por fazer, bigodão com as pontas enroladas e dentes caninos dourados à mostra. Nos pés, vistosos rolós; na cabeça, um chapéu de couro com a aba da frente dobrada para cima expondo alguns desenhos geométricos; e nas abas laterais uma tira de sustentação perpassada à jugular. Na cintura, o seu inarredável facão Sollinger de 18 polegadas parecia despencar perna abaixo. E, na bainha se via encastoados pequenos triângulos de vidro espelhados. Assim travestido era, sem sombra de dúvida, o lídimo último exemplar do decadente cangaço tupiniquim!
Dirigiu-se para dentro do estabelecimento comercial, bateu com a mão espalmada no balcão e falou decidido:
- Bota uma talagada daquela branquinha meu filho, apontando para a prateleira, mostrando a garrafa da aguardente preferida.
O balconista, um garoto ainda imberbe e em fase de experiência no ramo do comércio, pegou o litro e, antes de servir, o homem lhe indicou com os quatro dedos da mão direita, perfilados e colados ao copo, até onde deveria encher.
O garoto, submisso, serviu a dose cavalar.
O homem bebeu de um só trago. Depois se dirigiu à porta, lançou uma cusparada no meio da rua e bradou:
- Êta pinga danada! Esta é da que matou o guarda! Passou a mão nos lábios para enxugá-los e, voltando-se para o balconista, ordenou. Anote aí garoto, porque ainda vou continuar bebendo umas e outras, enquanto aguardo um pixote para jogar umas partidas de sinuca. Depois pago tudo de uma só vez.
O balconista o atendeu sem nenhum questionamento. Seu coração naquele momento bateu acelerado e o temor daquela estranha figura o consumiu como a um braseiro em chamas. Ainda bem que o homem, do lado de fora do balcão, não percebeu o tremelique das pernas do garoto lá dentro. Por pouco o moleque não borrou as calças.
O homem continuou no bar, sentado, a uma mesa de canto à espera de algum sujeito para jogar a prometida partida de sinuca. Enquanto aguardava a chegada de alguém disposto a enfrentá-lo no jogo, tomou mais alguns pileques e lançou na rua outras tantas cusparadas a distância, além de inúmeras baforadas do seu fedorento charuto. Quem já o conhecia se manteve a distância para não aturar suas fanfarronices.
Lá para as dez da manhã, apareceu o tão desejado parceiro de jogo. Acabara de adentrar no bar um baixinho mulato, bigodudo, cara de poucos amigos e nunca antes visto na vila. Não portava qualquer arma, mas demonstrava um destemor fora do comum para um forasteiro recém-chegado ao lugarejo.
- Bota uma folha podre aí garoto! - falou o desconhecido.
- Temos erva-doce, quebra-pedra e milome – informou o obediente balconista, acrescentando: - qual das três o senhor prefere?
- Bota a quebra-pedra, pois dizem ser boa para os rins.
Após ser atendido, o forasteiro pegou o copo com a aguardente, ergueu a cabeça como se estivesse a clamar algo aos céus, abriu a bocarra e despejou todo o líquido, numa só golada, goela abaixo. Pigarreou entoando em seguida:
“A cachaça foi feita
Pelo filho de Zezé Tibúrcio.
Ela enrola comigo no chão
Eu enrolo com ela no bucho”.
Jogou parte da branquinha num canto da parede. Segundo a sua crença, era a do santo. O sujeito tinha lá suas superstições.
Neco, da mesa onde se achava sentado, ouviu a manifestação jocosa do desconhecido, franziu o cenho, cofiou a barba e, o desafiou:
- Vejo que o forasteiro é bom de trova. Quero ver se é bom mesmo é de sinuca.
O forasteiro, apesar da baixa estatura, mirou o 1m70 de Fanfarrão, de cima para baixo, meditou por alguns segundos e aceitou o desafio. Porém, com uma condição: só jogava apostado a dinheiro e a grana, depois de devidamente casada, conforme reza na cartilha dos sinuqueiros teria de ser colocada dentro de uma das caçapas da mesa de jogo.
Neco aceitou a proposta, mas não deixando de fazer ao desconhecido uma severa advertência:
- O forasteiro não me conhece e, pelo andar da carruagem, nunca ouviu falar de mim aqui por essas bandas. Sou homem de palavra. Se você é acostumado a freqüentar locais onde os homens não honram a palavra empenhada, advirto: aqui é diferente. Homem, aqui, não mija agachado não.
O baixinho olhou Neco detidamente mais uma vez e, como antevendo sinais de futuras encrencas, sobretudo por se encontrar em terras alheias, achou por bem se desculpar.
- Desculpa moço se lhe ofendi – disse. Não era essa a minha intenção.
Aceitas as desculpas, cada qual pegou seu taco, rolando pela mesa para ver se estava linheiro. Isto é, sem barriga como dizem os aficionados da modalidade esportiva. Verificaram se a cabeça estava bem fixada ao instrumento do jogo e, imediatamente, a untaram com o giz apropriado. Distribuíram as bolas sobre a mesa da sinuca, cada qual em sua posição conforme a cor, e de acordo com a regra do jogo.Tiraram, no par ou impar, quem começaria a partida. Coube ao desconhecido dar início ao desafio. A notícia de que Neco desafiara um forasteiro para o jogo de sinuca e de que este havia topado o desafio, correu na vila como um rastilho de pólvora. Não demorou muito e os moradores, até então arredios, foram se aglomerando em frente ao bar. Muitos sentaram no meio-fio do outro lado da rua; outros, no jardim da praça mais próxima - que formava uma espécie de mezanino -, de onde também dava para observar o que se passava. Poucos se atreveram a acompanhar o desafio lá dentro do estabelecimento. Exatos cinco gatos pingados se encontravam lá.
As duas primeiras partidas foram perdidas pelo forasteiro, deixando Neco bastante eufórico. A ponto de sugerir que a aposta de dez cruzeiros tivesse o valor dobrado. Sugestão prontamente aceita pelo desafiado.
- Bota outra branquinha daquela que matou o guarda, garoto; e capricha na dose, para servir como aquecimento até eu acabar de depenar esse pato! – comandou Fanfarrão, provocando mais uma vez o forasteiro.
O desconhecido olhou Neco de novo por alguns segundos, com olhar de verruma e, desta vez, devolveu-lhe o insulto:
– Vou lhe mostrar qual dos dois é mais pato! Bota outra quebra - pedra aí no capricho garoto!
O balconista, tremendo mais que vara verde por causa da troca de farpas entre os dois homens, os atendeu de pronto.
Os dois contendores, quase simultaneamente de uma só golada beberam suas doses cavalares das aguardentes preferidas. Enquanto o forasteiro, após saborear, pigarreou sem a tirada jocosa desta vez, o outro foi até a porta e lançou sua contumaz cusparada à distância.
Àquela altura dos acontecimentos, os ânimos já estavam bastante acirrados. Qualquer faísca, o circo pegava fogo.
Refeitos da sessão de provocações mútuas, o jogo foi reiniciado. O desconhecido que havia blefado, se deixando derrotar nas duas primeiras partidas, saiu matando da bola um até a cinco de uma só tacada. Em seguida, depois de jogada sem êxito de Fanfarrão, encaçapou a seis e, de lambujem, a sete liquidando assim a fatura.
Neco, que não contava com esse estratagema do forasteiro, estupefato, custou crer no que viu. Desconfiado, armou novamente as bolas na mesa e reiniciando o jogo. O baixinho voltou a encaçapá-las, uma após outra, dessa vez até a bola sete. Fanfarrão não teve o prazer de dar uma tacada sequer.
- Quem pede para dobrar a aposta agora sou eu - falou forte o baixinho bigodudo.
Fanfarrão, já pasmo e desnorteado ante a derrota acachapante que sofreu do baixinho, pensou em abandonar o jogo. Mas desistiu dessa idéia porque pegaria muito mal diante de toda platéia. Calculou promover uma baita confusão para uma saída mais honrosa. Artifício do seu feitio em tais ocasiões.
Dito e feito. O jogo foi mais uma vez reiniciado. Maldosamente ele escondeu o giz azul impedindo que o forasteiro passasse na cabeça do taco. Conseqüentemente o instrumento de jogo do forasteiro começou a espirrar.
- “Cabra”, me passe o giz que você escondeu para eu passar na cabeça do taco - falou decidido o baixinho atrevido.
- Em primeiro lugar eu não sou cabra - retorquiu com rispidez o arruaceiro. Eu tenho nome. Pelo que presumo você está me chamando de desonesto. Nunca levei desaforo pra casa de homem nenhum e não vou levar agora de um pintor de roda-pé como você – rebateu Neco Fanfarrão.
O tempo fechou!
O forasteiro não gostou da provocação. Partiu pra cima de Fanfarrão e, com o taco de sinuca, desferiu um golpe em direção de sua cabeça. Neco, lesto como um raio, sacou o facão que da cintura não tirava a não ser nestas emergências e, antes que o taco o viesse atingi-lo, cortou o mesmo em três pedaços.
Tendo ficado com um cotoco do utensílio na mão e pressentindo a desvantagem, o forasteiro saltou fora em desabalada carreira, até desaparecer dentro das roças de cacau ao redor da vila.
Fanfarrão chegou a ensaiar uma perseguição, mas como não alcançou seu desafeto, arrastou o Sollinger no áspero passeio em frente ao bar, cujo atrito fez levantar um cometa de faíscas douradas.
Antes que os policiais, já avisados da confusão chegassem, ele montou o piquira e debandou para o seu sítio.
Os três policiais do destacamento, sem meios adequados a uma perseguição de tal envergadura, solicitaram ajuda dos habitantes para locomoção adequada da diligência. Um morador conseguiu uma bicicleta. Outros dois, com os feirantes, uma mula cada.
Chegaram ao sítio algum tempo depois de Fanfarrão. Fizeram uma revista em toda a casa do arruaceiro. Encontrando apenas a esposa dele calmamente sentada sobre a cama, cuidando de uns bordados. Uma varredura em toda a área do sítio também foi feita e nada encontraram. Permaneceram em campana nas proximidades da propriedade por um bom período de tempo, na esperança de que o homem aparecesse. Espera esta que deu em nada.
Desanimados ou presenteados com o sumiço do arruaceiro, voltaram ao destacamento com sensação de dever cumprido. Se não o encontraram é porque ele não queria enfrentá-los. Esta era a lógica. Assim pensavam.
A cada batida policial mal sucedida, a fama de Neco como o homem que “invultava” crescia no distrito. E após cada arruaça praticada ele sumia da vila por um bom período. Assentada a poeira, coisa de cinco a seis meses, ele reaparecia todo songamonga.
Até o dia em que, depois de aprontar mais uma das suas, novos policiais chegados ao lugarejo em substituição aos que lá serviam, empreenderam uma perseguição cerrada até o sítio onde ele morava e o pegaram. Chegaram à propriedade, caça e caçadores, com pouca distância entre eles. Podendo presenciar a inusitada cena:
A esposa de Neco, sabedora de que o marido na maioria das vezes retornava da vila, perseguido pela polícia, mantinha de sobreaviso o plano quase infalível para salvá-lo. Na cama de mola patente - invento que antecedeu o colchão de molas - o mirrado homem deitava sobre o lastro aramado. Sua mulher botava o colchão sobre ele e sentava em cima, permanecendo ali absorta, com o bastidor nas mãos, laborando pacientemente seus belos bordados na talagarça . Os policiais entravam, faziam minuciosa revista em toda a casa, fiscalizavam debaixo da cama, sem nada ver. Jamais imaginariam estar, debaixo do colchão onde a mulher se achava sentada, o magricela procurado.
Nesse dia ele se deu mal. Foi apanhado com a boca na botija.
A entrada triunfal dos milicos conduzindo o arruaceiro para pagar atrás das grades pelas arruaças cometidas proporcionou ao distrito cenas dignas da telona. Até hoje não se sabe de onde saiu tanta gente para testemunhar a derrocada de Neco. Enquanto ele caia em desgraça, perante aquele pacato povo, os homens da lei debruçavam sobre os louros da glória pelo heróico ato praticado.
Assim foi desfeito o mito do homem que “invultava”, pondo fim a um longo reinado de arruaças praticadas pelo mirrado Neco Fanfarrão na vila de Córrego da Onça.
Conto publicado no Livro de minha autoria: O Homem que Invultava e Outros Causos (produção independente) - Ano 2008.