O Delegado Dadeu e a infâmia política

* Da série O DELEGADO DADEU

** Leia outras histórias do policial DADEU

O contador de causos que compilou as histórias , as memórias e provações do Delegado Dadeu sempre deu muita ênfase ao aspecto político que permeou a carreira desse personagem da Polícia Civil gaúcha , numa época em que pouco se prestigiava o instituto do concurso público como condição para o provimento de cargos públicos. As provas de seleção até que existiam e estavam previstas em lei , mas na prática só uma pequena parcela dos agentes entravam por mérito próprio.

A meritocracia como critério para o provimento de cargos e funções, não apenas na Polícia , mas em quase todos os setores do serviço público , dava lugar a indicações políticas ou manipulação dos certames e processos seletivos que , na prática , asseguravam o preenchimento das vacâncias com base em simpatias e/ou favores políticos.

Dadeu ostentava um orgulho muito grande e sempre dizia que havia entrado na Polícia “pela porta da frente”, mas reconhecia a seus amigos mais íntimos que não gostava muito de adentrar ao assunto , mesmo porquê diversos de seus colegas, com os quais compartilhava os segredos e as minúcias próprias da atividade policial, haviam ingressado pela abertura “dos fundos” e , portanto , eventuais comentários sempre poderiam ferir susceptibilidades .

Essa postura discreta de Dadeu assegurava-lhe uma certa paz, calmaria que sem sombra de dúvidas marcou como um ponto positivo sua carreira mas que , ao mesmo tempo, trouxe como aspecto negativo a lentidão da trajetória funcional, isto é , suas promoções e indicações para Delegacias mais bem estruturadas e melhor localizadas demoravam sempre muito mais tempo . Policiais com menos currículo e com uma “folha de serviços” discreta, porém ligados aos caciques políticos avançavam mais rápido na carreira. E, como convém, existia também a chamada “perseguição” àqueles que assumiam posições contrárias e de oposição aos regimes dominantes de poder.

O Delegado Dadeu estabeleceu laços de parceria e camaradagem com um Inspetor que era ligado aos partidos de esquerda e que marcava por sua participação em movimentos sociais e na organização de sindicatos e associações de bairro . Nascido no seio de uma família com tradição política de oposição aos caudilhos, seu nome de batismo indicava com fidelidade sua ideologia : - Lenine .

O Inspetor Lenine detinha outras características marcantes, visto que tratava-se de um homem de hábitos sadios que não ingeria nenhum tipo de bebida alcoólica – não fumava – e além disso cultuava o hábito da leitura . Era um cidadão culto, um bom homem , que fazia política por ideologia e se dedicava à defesa dos interesses das minorias desprotegidas e vulneráveis.

Inspirava um respeito muito grande nas comunidades por onde passava e ,sobretudo, conquistava a admiração de seus superiores . Dadeu nunca poupou palavras para dizer que foi o melhor policial que teve como subordinado em toda sua longa carreira na Polícia Civil gaúcha. Tanto assim, que mesmo após sua transferência, quando enfrentava algum caso mais complexo ou necessitava de conselhos, telefonava para o Inspetor Lenine ou visitava-o nos finais de semana.

Houve um ano que precedeu uma “campanha” política em que o Inspetor Lenine sofreu dezessete transferências nos doze meses de trabalho . O Delegado Dadeu não se conteve em uma reunião com o Delegado Regional e saiu em defesa de seu ex-subordinado , dizendo que aquilo se constituía num verdadeiro absurdo e numa vergonha para a força policial . O Delegado Regional assentiu, mas covardemente, ponderou que nada podia fazer , pois eram “ordens superiores” ...

Dizem que em algumas Delegacias o Inspetor Lenine não esteve lotado mais do que duas semanas , pois logo vinha uma ordem de transferência para outra cidade, na maioria das vezes a centenas de quilômetros de distância . Era um método eficiente para detonar o crescimento do trabalho social desenvolvido por aquele policial de bom conceito e insofismável liderança positiva. Eliminava-se o risco de crescimento de uma oposição consistente a um modelo de caudilhos e de política construída sob o esteio da troca de favores.

O Delegado Dadeu chegou a pensar em aconselhar ao Inspetor Lenine para que ele abdicasse de suas atividades políticas, mas sabia que o homem que estava por trás do policial era uma fortaleza moral e um cofre de princípios e que, portanto , isso seria absolutamente impossível. Limitou-se a dar-lhe um singelo conselho: - de que comprasse malas pequenas e se hospedasse nas próprias Delegacias, única maneira de enfrentar com alguma economia as constantes transferências.

Dizem que os acontecimentos que cercaram a história de vida do Inspetor Lenine inspiraram muito das mudanças que posteriormente foram implementadas no serviço público e, sobretudo , na Polícia Civil. Muitos anos depois desses fatos narrados nas memórias do Delegado Dadeu o cargo de Chefe de Polícia passou a ser privativo de Delegados de Polícia, não mais sendo admitida a nomeação de chefes vindos de fora da força policial.

Dadeu encerrou seu relato ao contador de contos manifestando toda sua admiração pela biografia do Inspetor Lenine e sua história de lutas por uma Polícia independente e apolítica , dizendo ao “escriba” :

- “pois é meu caro amigo, saiba que nada seduz mais aos políticos com vocações déspotas e ditatoriais do que dominar o braço armado do estado”...