O Delegado Dadeu e o assassino à solta

Da série DELEGADO DADEU

Quando Dadeu preparava sua mudança para aquela pequena cidade da fronteira com o Uruguai foi avisado por colegas mais experientes que deveria tomar cuidados adicionais diante das figuras com as quais passaria a conviver, pois muitos dos empresários “influentes” e pessoas poderosas estavam, de uma forma ou de outra, vinculadas ao contrabando, atividade criminosa responsável por muitas das fortunas geradas ao longo do tempo.

De fato, as divisas entre dois países permitiam o comércio clandestino de inúmeros itens, tanto de um lado como do outro. Assim, cargas de trigo e couro passavam para o lado brasileiro gerando polpudos lucros , da mesma forma como do Brasil ingressavam para o território uruguaio cargas volumosas de outros produtos que não eram produzidos em solo charrua como , por exemplo, café , erva-mate e derivados de soja.

Mas o rol de mercadorias contrabandeados não se limitava só aos produtos primários, visto que itens da indústria também compunham o variado estoque dos contrabandistas. Naquela época eram ícones de consumo no Rio do Prata as sandálias havaianas e as camisetas da Hering . Dizem que muitos empresários construíram fortuna só com esses produtos. Ao mesmo tempo , a lã uruguaia entrava em solo brasileiro em volumes inacreditáveis. Era uma época em que ainda não existia o fio sintético.

O Delegado Dadeu logo comprovou que os alertas recebidos dos colegas e que circulavam pela “rádio do corredor” policial eram muito mais do que fundamentados, pois a cidade , não obstante pequena em suas fronteiras geográficas , escondia uma atmosfera estranha e inspirava uma desconfiança muito grande a quem chegava de fora, máxime para ele que absorvia todo o ônus de comandar uma repartição policial.

Uma figura muito popular naquela pequena cidade era conhecida pela alcunha de “Gasogênio” , dizem que o apelido era uma herança paterna o que exige pelo menos uma breve explicação . O Gasogênio foi um recurso utilizado para mover veículos durante o período de escassez de combustível na época da Segunda Guerra Mundial. Constituía-se de uma espécie de reservatório onde se queimava carvão vegetal, gerando gás para movimentar os veículos . O pai de “Gasogênio” utilizava um pequeno caminhão movido com o estranho combustível para realizar contrabandos e o menino havia sido criado acompanhando seu genitor na atividade ilícita.

Legítimo herdeiro da tradição familiar o personagem cresceu com toda a carga de significado da alcunha – “Gasogênio” – ele representava a própria bandeira do contrabando fronteiriço . Dizem que dominava todos os caminhos alternativos e conhecia cada atalho , cada esconderijo na mata e , sobretudo, era mestre na arte da “coima” expressão utilizada na fronteira para a propina paga aos fiscais e policiais corruptos.

Mas não era só o conhecimento apurado e a experiência de contrabandista que faziam a fama de “Gasogênio” , pois a essas suas raras “qualidades” somava-se , ainda , um temperamento alegre, falante, literalmente simpático , capaz de cativar as pessoas com as quais convivia . E, como se fosse pouco , sustentava uma fama de galanteador, homem sedutor , atraindo como um imã a atenção das mulheres da cidade.

Corriam muitos boatos , inclusive que “Gasômetro” era disputado por diversas mulheres casadas da região, com as quais mantinha “casos” amorosos. Na “meia boca” das conversas e fofocas típicas do interior dizia-se, inclusive, que muitas das jóias e relógios finos ostentados na sua coleção privada eram presentes dessas distintas damas.

Uma personalidade como a de “Gasogênio” concentrava um verdadeiro cabedal de hipóteses a desafiar a mente de um policial astuto como Dadeu. Pensava ele que em breve teria de enfrentar alguma ocorrência envolvendo esse sujeito.

Pois foi numa manhã de segunda feira que o Delegado Dadeu foi acordado bem antes do horário de abertura da repartição policial. A viatura da Delegacia estava na frente de sua casa o que era prenúncio de que algo grave havia acontecido . Ele se vestiu apressadamente e até dispensou o café saindo depressa para fora de casa . – “Delegado, temos um homicídio, disse-lhe o Inspetor” ... – “ O corpo da vítima ainda está no local”, concluiu !

Saíram em disparada com a viatura e chegando na encosta de um barranco numa das estradas de acesso secundário à cidade , lá estava a caminhonete de “Gasogênio” e dentro dela jazia morto o personagem que ao longo de décadas foi o emblema do contrabando fronteiriço . Um único disparo e uma perfuração provocada por arma de fogo à altura da cabeça . Nada de outros indícios e muitos curiosos já reunidos na cena do crime.

Ao ver os poucos indícios de prova , Dadeu tentou afastar a multidão e fazer aquilo que é trivial em qualquer caso como esses , isto é , isolar a cena do delito , mas logo percebeu que o local já havia sido violado , tamanha era a presença de curiosos. O sangue alheio sempre parece atrair pessoas com alma de urubu.

Nos dias que se seguiram Dadeu chegou a requisitar a presença de peritos da capital e da equipe de papiloscopistas da Delegacia Regional de Polícia . Aguardou pelo exame do Instituto Médico Legal, mas o laudo de necropsia em muito pouco ajudou a elucidar o crime, porque não havia nenhum sinal no cadáver que delatasse luta corporal nem resíduos orgânicos de outras pessoas . A única conclusão preliminar, ao que tudo indicava , era que “Gasogênio” havia sido executado friamente.

O exame de balística apenas auxiliou no sentido de reforçar a tese da execução, porque restou comprovado que o tiro foi dado a curta distância . E mais, pela posição do cadáver, muito provavelmente “Gasogênio” estava dormindo quando sua cabeça recebeu o tiro fatal.

Dezenas de pessoas foram ouvidas no Inquérito Policial , sendo que Dadeu buscou investigar todos os negócios realizados nos últimos meses pela vítima . Chegou a intimar diversas mulheres com as quais se falava que “Gasogênio” mantinha casos amorosos. Enfim, todos os procedimentos exigíveis foram adotados , mas nada – absolutamente nada – conseguiu ser apurado.

Conta-se que Dadeu ostentava uma profunda tristeza e não conseguia esconder a frustração . Nada pior para um policial do que um crime não esclarecido . No final do ano ele não resistiu a si mesmo e dirigiu um pedido ao Delegado Regional solicitando sua remoção. Partiu desolado e carregando a maior frustração de sua carreira, o que confessou a algumas pessoas da cidade fronteiriça, inclusive, ao Juiz de Direito e ao Pároco, únicas pessoas com as quais conversava francamente.

Reconhecido como um policial sério e honesto , Dadeu logo retomou suas funções . Cidade nova – vida nova . Tudo andava muito bem e ele seguia a rotina de crimes, prisões, inquéritos, diligências , até que na véspera do dia vinte e um de abril , Feriado de Tiradentes – patrono da Polícia - já passado mais de um ano de sua transferência, recebeu uma carta postada desde Porto Alegre, com o seguinte teor:

“Prezado Delegado Dadeu : Sei que o senhor comentou com algumas pessoas da sua frustração com a não descoberta do assassino daquele patife do ‘Gasogênio’ e escrevo para tranqüilizar sua consciência, porque esteve muito perto disso . Confesso que tremi de medo quando me interrogou , mas creio que consegui me livrar graças ao nervosismo de outros ‘babacas’ que foram inquiridos – creio que seu erro foi ter ouvido muita gente . Sei que não há como elucidar aquele crime, pois sem falsa modéstia, planejei tudo com perfeição . Mas em reconhecimento ao senhor , e por admirá-lo , escrevo para dizer-lhe que o senhor interrogou o assassino. Espero que isso ao menos atenue sua frustração . ass. O assassino ” .