NINGUÉM É PÁREO MESMO!

Por: Larissa Caruso

Nota: Esse conto foi publicado no blog FC vs Realidade e pode ser visto também através do link: http://realidadefc.wordpress.com/2010/06/28/ninguem-e-pareo-mesmo/

Meus olhos se arregalaram assim que percebi o intuito de meu captor. Grunhidos escaparam de meus lábios e as pontas dos dedos ensaiaram alguns movimentos precários. Apesar do esforço, não conseguia me mexer. Olhava o aparelho que produzia uma luz azulada intensamente, desejando possuir algum tipo de poder mental capaz de fundi-lo com um único pensamento. Em questão de minutos, ele cumpriria seu objetivo, cortando minha cabeça e colocando-a em uma cápsula, onde seria conservada através de um líquido amniótico produzido sinteticamente. Em horas, o produto de seu trabalho estaria nas mãos de um comprador rico e ousado.

Pior que pensar em minha própria morte, era saber que os desgraçados estariam livres para continuar com seu tráfico imundo no mercado negro intergaláctico. Precisava fazer algo... qualquer coisa. Meu cérebro, preocupado demais em reavivar lembranças do passado, recusava-se a processar qualquer plano de fuga. A esteira, que me guiava em direção ao fim, continuava seu caminho sem queixar-se da injustiça que cometia. Aquele parecia ser o dia em que Logan Marshall pereceria.

***

− Fala logo, desgraçado, que eu não quero mais perder meu tempo com você! – bradei, chutando o estômago do homem baixo e de aparência frágil.

Um sangue negro corria do tiro fraco que eu havia disparado contra seu braço escamoso. Os três olhos amarelos, em formato triangular, olhavam para todas as direções, à procura de algum salvador que pudesse tirá-lo daquela situação. Infelizmente para ele, estávamos na região nordeste da cidade de Austin, Texas, na parte mais periférica da Rua Runberg. Aquela era uma vizinhança pobre e dominada pela criminalidade. E graças ao bracelete ARC, ninguém veria nada de anormal naquela cena. Pareceríamos dois humanos, provavelmente criminosos, acertando algumas pendências. Dificilmente seriamos interrompidos, independente do que acontecesse.

A pequena casa-trailer que o residente intergaláctico morava estava caindo aos pedaços, com paredes podres devido à má conservação e panos velhos no lugar de janelas. Estávamos no quintal atrás da residência, encobertos por grandes cercas de madeira.

− E eu já disse! – gaguejou o covarde – Eu não sei de nada! Não conheço nenhum Szimitz. Juro!

Irritado, peguei o pequeno projetor holográfico e mostrei a imagem retirada de uma das câmeras de segurança. A cena revelava ambos saindo juntos de um restaurante mexicano local. Com outro chute, perguntei:

− É sua última chance. E ai? O que vai ser? Vai cooperar ou continuar com essa babaquice?

− Eu não... eu só encontrei esse cara por acaso! Ele foi legal comigo, só isso. Nem perguntei qual era o nome dele.

Suspirando exasperadamente, sentei-me ao seu lado no chão. Ele não podia se mover devido ao tiro imobilizador que dei em seu torso. Estava com as pernas e os braços paralisados por aproximadamente uma hora. A princípio, acreditei que seria tempo o suficiente para extrair as informações necessárias e deixar o local. Já haviam se passado trinta minutos, entretanto, e o desgraçado continuava se recusando a falar. Estava na hora de mostrar a ele quem era Logan Marshall, o escroto.

Peguei minha arma RS2D e acionei o ‘modo carnificina’, como eu o chamava. Era a potência máxima do raio laser, ao invés do imobilizador. Com aquela belezura, no mínimo, criaria um rombo no local onde acertasse, principalmente se fosse à queima roupa.

− Você tem cinco chances. Para cada resposta que não me agradar, eu vou estourar uma parte de seu corpo, começando com os braços, indo para as pernas e terminando na palhaçada que vocês chamam de órgão sexual.

Os olhos do homem se arregalaram, mas ele não pareceu completamente intimidado. Em um tom desafiador, ele afirmou:

− Você não pode fazer isso. Sou um homem que segue as leis e tenho todo o direito de estar nesse planeta. Você nem sequer pode usar um soro da verdade em mim, ou um leitor neural. A Confederação dos Planetas da Via Láctea iria caçar sua licença investigativa por qualquer coisa que fosse considerado invasivo ou cruel.

Ele tinha razão. Eu era um ex-criminoso que recebeu uma segunda chance. Apesar de ser o chefe da Imigração Intergaláctica da Terra, tinha que seguir as leis. Esse caso nem sequer estava dentro da minha jurisdição. Tecnicamente, teria que chamar o DEIC, Divisão Especial de Investigação Criminal da Confederação. Eles cuidavam de foras-da-lei e contrabandistas do mercado do Buraco Negro.

Além disso, a imigração intergaláctica era extremamente certinha. Protegiam todos os que decidissem deixar de lado a tecnologia para viver em planetas primitivos como este. Acreditavam que, com a ajuda de pessoas desse tipo, esses lugares poderiam alcançar o ciclo evolutivo necessário para que fossem informados da existência de vida inteligente na galáxia e serem incluídos como membros da Confederação. Eles já não gostavam quando eu maltratava os ilegais. Não sairia impune se descobrissem que havia propositalmente torturado um residente legal. Entretanto, eu não era um homem acostumado a seguir protocolos. Não mais. Rhys Marshall o faria, mas ele estava morto há muito tempo.

− E eu tenho cara de quem faz serviço mal feito? – perguntei, levando uma mão ao bolso e retirando um pequeno objeto cilíndrico de cor azulada e ponta fina – Está vendo isso daqui? É um reconstrutor celular. Ele tem dez cargas nele, o que significa que eu posso te estourar por completo duas vezes antes de ter que parar. A questão é, será que você aguenta toda essa dor?

A pele acinzentada do rapaz tornou-se pálida. O terror dominou suas feições. Uma água rubra escoou timidamente de um tubo longo e fino no meio de suas pernas, espalhando-se no chão de concreto e me alcançando. Um cheiro forte de azedo começou a se espalhar pelo ar, fazendo-me sorrir de forma triunfante. Ele estava urinando de medo, literalmente.

− Você mijou em mim? – disse, em um tom furioso, apontando a arma para a perna do homem e colocando pressão no gatilho.

− Não, não, por favor! Desculpe-me! – suplicou, deixando um soluço escapar de seus beiços grossos e espinhosos.

Perante sua atual postura, não tinha dúvidas que ele falaria. O mais engraçado disso tudo é que aquilo que chamei de reconstrutor celular nada mais era que uma caneta sem carga. Mesmo no mercado negro, a versão portátil daquela ferramenta era rara. Poucos fora do CAPA, Centro Avançado de Pesquisas de Alderon, conseguiam sequer ver um daqueles durante sua vida. Era uma invenção guardada às sete chaves.

− Tudo bem, tudo bem! Eu falo, mas, por favor, me deixe em paz! – implorou o homem escamoso, tremendo de medo e vergonha.

Sorri maldosamente, liberando o dedo do gatilho e guardando a caneta. Ninguém era páreo para minha escrotice.

***

Enquanto dirigia em alta velocidade, com pressa para chegar até o lugar onde toda a operação estava sendo executada, eu conversava com meu engenheiro chefe Daelus no telefone.

− São marsuptianos, o que quer que isso signifique. Nunca lidei com um antes.

− Você olhou a ficha deles? – advertiu como se esperasse uma resposta negativa.

− Claro. – respondi com firmeza, apesar de saber que se tratava de uma mentira. Só havia visto por cima, o suficiente para reconhecê-los em público.

− E a Hartz esta com você?

− Não. Não vou envolver a Melissa.

− Por quê? Ela que te colocou no caso! – perguntou ele, inconformado com a resposta.

− Porque preciso pegá-los o mais rápido possível e só a minha arma deve ser o suficiente para cuidar desses bastardos.

A agente Melissa Hartz era uma das poucas pessoas que eu respeitava. Era também a minha única parceira naquele planetinha imundo. Desde que ela recebera autorização de nosso governante para ter conhecimento dos segredos e avanços da Via Láctea, ela auxiliava nosso escritório nos informando de ilegais e foras-da-lei que cruzassem seu caminho. Isto facilitava nosso trabalho, principalmente porque ela encobria qualquer bizarrice que instigasse suspeitas sobre vida em outros planetas.

O argumento que usava para podar seu envolvimento no caso era parcialmente verdade. Precisava me apressar para que não tivessem tempo de escapar caso fossem avisados de minha vinda. O principal motivo para deixa-la de fora, entretanto, era que ela era apenas uma terráquea. Como tal era fraca e despreparada. Nunca havia saído da Terra e desconhecia maior parte de nossos truques e engenhocas. Seu corpo não era tão resistente quanto o meu, e suas armas dificilmente feriam alienígenas. Preocupado em protegê-la, seria incapaz de executar meu trabalho com perfeição.

Essa não seria uma missão difícil. Estava lidando com dois foras-da-lei que operavam sozinhos. O único momento em que recorriam a parceiros era para transportar o contrabando para fora do planeta. Tudo que precisava fazer era surpreendê-los com um tiro na testa de cada um. Em questão de minutos a situação estaria resolvida. Chamaria o DEIC para desmontar a operação e avisaria Melissa que os criminosos já não representavam mais uma ameaça aos cidadãos de Austin.

− Você que sabe, mas ela... – começou Daelus, protestando contra minha decisão de maneira submissa.

Sem dar-lhe chance para argumentar, encerrei a chamada e desliguei o telefone. Sim, eu sabia que ela ficaria extremamente irritada com meu comportamento. Entretanto, duas semanas seriam o suficiente para que esquecesse o acontecido.

Após estacionar o carro alguns metros de distância do galpão onde meus alvos se encontravam, peguei um instrumento parecido com um par de binóculos e observei o local. A projeção de sua planta baixa apareceu nas lentes do objeto, mostrando-me todos os detalhes que precisava saber. Existiam ferramentas mais avançadas que aquelas que eu usava, entretanto, poucas chegavam às mãos do centro de imigração de planetas primitivos. Eles sempre esperavam que fizéssemos todo o trabalho sujo com os piores recursos possíveis. Esse era um deles, com seus gráficos podres em 2D.

Assim que selecionei randomicamente a porta que usaria para invadir o local, sai do carro e me aproximei. Com a arma em mãos e pronta para a carnificina, encostei contra a parede próxima a entrada que usaria e examinei a maçaneta para ver se estava aberta. Percebendo que estava trancada, tirei uma fita grossa e maleável do bolso, arrancando, em seguida, o plástico que a protegia. Desenrolei-a ao mesmo tempo em que a colei ao redor da maçaneta da porta. Tocando-a com meu dedo indicador molhado de saliva fez com que o local onde ela foi colada dissolvesse no mesmo instante.

Contendo meu impulso de chutar a porta, respirei fundo e a abri silenciosamente. Ouvi barulhos de conversa vindo do fundo do local e procurei cobertura nos containers, tentando me aproximar. Observei os foras-da-lei, enojado por suas aparências. Apesar das silhuetas humanoides, o corpo era feito de um material viscoso. Uma gosma amarronzada escorria de suas cabeças até o chão e depois retornavam ao seu corpo através de suas extremidades. Possuía um único olho no centro de seu rosto e nenhum sinal de narinas, orelhas ou boca. Ambos estavam preocupados com um humano que se encontrava em uma esteira metálica, imobilizado. Um deles o fitava enquanto o outro tirava medidas de sua cabeça.

Sem paciência, decidi que aquele era o momento de terminar com toda a palhaçada. Sai de meu abrigo atrás de uma grande caixa de madeira e mirei com minha RS2D na cabeça do primeiro individuo. Atirei nele e em seu amigo antes que pudessem entender o que se passava. O corpo de ambos explodiu com a potência da arma, fazendo com que gosma voasse em todas as direções.

− Simples e rápido, exatamente do jeito que eu queria. – conclui, sorrindo diante da cena.

O humano grunhiu ao ver que eu me aproximava. Seus dedos se moveram, tentando, de alguma forma, se expressar. O terror era óbvio em seu olhar. Estava com medo do que fariam a ele, e com motivo. Eu não gostaria de estar em sua pele.

− Eu sei, eu vou te tirar daí. Não se preocupe. – disse, tentando confortá-lo apesar do tom seco em minha voz.

Os barulhos de desespero vindos de sua boca aumentaram em intensidade e seu dedo indicador apontou para trás. Joguei-o para fora da esteira e virei-me rapidamente, verificando a fonte de sua inquietação. Meus olhos se arregalaram ao se depararem com a cena. Os dois marsuptianos estavam logo a minha frente, completamente reconstituídos e com suas armas em mãos.

− Merda... – foi a única coisa que tive tempo de dizer antes de sentir o impacto dos raios imobilizadores acertando meu corpo.

***

Meus olhos se arregalaram assim que percebi o intuito de meu captor. Grunhidos escaparam de meus lábios e as pontas dos dedos ensaiaram alguns movimentos precários. Apesar do esforço, não conseguia me mexer. Olhava o aparelho que produzia uma luz azulada intensamente, e que se tornava mais próximo com o movimento contínuo da esteira. Precisava sair de lá antes que perdesse a cabeça, literalmente.

Tentei me mover, gritar, pular para longe... Nada. Continuava lentamente indo em direção à morte. Senti a brisa vinda da câmara azul que me degolaria e sabia que aquele seria meu fim. Ouvi um alto estrondo a minha direita e ao me virar, observei uma mulher vestida em um terno social, com uma mangueira em suas mãos. Um jato de uma água esbranquiçada jorrou na direção dos foras-da-lei vindo do grosso tubo nas mãos da loira.

Os masuptianos urraram ao serem encobertos pelo liquido e seus corpos se desfizeram em questão de segundos. Ainda incapaz de pronunciar sequer uma palavra, comecei a grunhir e mover meus dedos, tentando apontar para eles. Já havia visto aquele truque e não queria que ela caísse nele.

− Calma, Marshall. É sal, eles são que nem lesmas. Eu fiz minha lição de casa, diferente de você. Eles não vão se reconstituir. – anunciou ela e continuou, em um tom triunfante – E você queria me deixar de fora, né, seu desgraçado.

Continuei fazendo barulhos com a boca, dessa vez tentando pedir para que ela se apressasse. Ela entendeu meu recado, pois se aproximou. Colocou a mão no colarinho da minha camisa, como se se preparando para me tirar de lá, e então parou. Olhei para ela, curioso e preocupado ao mesmo tempo. Encarando-me com seriedade, ela disse:

− Promete que não vai mais fazer isso.

Balancei a cabeça negativamente, sentindo que, aos poucos, recuperava meus movimentos.

− Então você vai ficar aí. – concluiu, ameaçando remover a mão que me ajudaria.

Fitei-a sem piscar, deixando claro que duvidaria que o fizesse. Com dificuldade, falei:

− Cê...aum...êm...oragem.

Fechando a cara, ela me puxou com violência da esteira, fazendo com que acertasse o ombro com força no chão.

− E você é um escroto mesmo. – bradou ela, amaldiçoando-me com seu olhar.

***

Uma hora depois, observávamos os homens do DEIC trabalhando no local. Como sempre, sua eficiência era impecável. Com os braços cruzados, suspirei, lamentando não mais fazer parte daquele time. Todos os membros me ignoraram categoricamente, como se fosse algum tipo de vergonha para o departamento. Acostumado com esse tipo de comportamento, continuei conversando com a mulher que havia me salvado.

− Eu não prometi nada, nem vem, Hartz. – afirmei novamente, apesar do olhar fulminante que recebia dela.

− E nem agradeceu por ter salvado sua vida também. – retrucou, imitando minha postura defensiva.

Dei os ombros em resposta. Nunca agradecíamos um ao outro por esse tipo de coisa. Ela só usava esse argumento por falta de algo melhor para me comover. Finalmente percebendo que não adiantaria, mudou de assunto:

− Mas afinal, o que eles estavam fazendo com aqueles que capturavam?

− Matando. – respondi, sem maiores explicações.

− Isso eu percebi, Marshall.

− É melhor que você nem saiba.

Com um olhar de reprovação, ela arqueou a sobrancelha, esperando por uma resposta. De repente, sorri com a possibilidade. Ela precisava de uma liçãozinha para baixar o ego.

− Você quer mesmo saber? – perguntei, deixando que a seriedade retornasse a minha expressão.

− Sim. – respondeu, com firmeza.

Assenti e retirei o computador de bolso que havia pegado emprestado de Daelus. Acionei o projeto 3D e uma cena recuperada pelo engenheiro começou a ser mostrada em menor escala. Os olhos de Melissa focaram na projeção e, aos poucos, ela foi se tornando mais pálida.

A imagem exibia um palco improvisado no planeta de Marte, com centenas de pessoas de diferentes raças ao seu redor. No centro, estava um marsuptiano vestindo um traje caro. Ele segurava uma cápsula transparente com a cabeça de um humano. Enquanto mostrava o item, como se fosse um tesouro precioso, pessoas levantavam seus braços e faziam seus lances. Finalmente, por um preço absurdo, um temuanu levou o prêmio.

Assim que pegou a cápsula, ele a abriu e cheirou o que havia dentro. Com um sorriso em seus lábios, levantou o tampão do crânio, que já estava cerrado, e começou a comer a massa encefálica, lambendo os beiços.

− Cérebro humano é uma delícia. Ilegal, mas vendido por um bom preço no mercado negro. Se você quiser experimentar, ainda deve ter sobras em algum container por aqui. Quer que eu peça?

Melissa levou uma mão à boca, nauseada. Respirou fundo e, com uma postura enrijecida, disse:

− Eu vou ao toalete.

Ao vê-la direcionando-se para o banheiro em passos apressados, sorri e desliguei o vídeo. Ninguém mesmo era páreo para minha escrotice.

Larissa Caruso
Enviado por Larissa Caruso em 28/06/2010
Código do texto: T2346038
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