O dia em que uma mulher caiu do céu 4

-Dr. Chinguare, muito obrigado por vir num tão curto espaço de tempo, mas é importante o que quero falar consigo - disse Moisés, levantando-se.

-Sr. Moisés – disse o Doutor sem se sentar – só vim dizer que não venho!

-Como? Mau!

-O seu ajudante ou sobrinho ou diabo que o valha, arrastou-me até aqui quase a toque de pontapé!

-Lopes…

-Nada, chefe, o kota doutor não estava a aceitar a sua missiva.

-Lopes…

-Ya, chefe, se calhar desconseguimos de chegar a um entendimento, mas ele estava a ser intravidente…

-Intransigente.

-Ya, chefe, está a ver, até o chefe sabe…

-Doutor, eu peço desculpa pelo Lopes. Às vezes parece que é maluco, pá! Mas, o assunto que me levou a chamá-lo pode ter alterado a forma do convite.

- Eu sei, sr. Moisés, eu vim porque quis, mas este Lopes…

-Eu sei, eu sei…

O doutor Chinguare sentou-se.

-Sr. Chefe de Posto Moisés, peço-lhe desculpa por esta multidão, mas a verdade é que quando o Lopes veio ter comigo, eu enviei recado a casa a avisar que não ía almoçar e acho que, com a ajuda do Lopes, toda a vila ficou a saber do nosso encontro.

-Não vejo problema em nada disso, desde que não se ofenda se eu lhe oferecer um copo de vinho português.

-Do que esconde debaixo da mesa?

-Ora, pois!

-Ah, desse aceito com todo o gosto.

Serviram-se e bebericaram a modos de tira-gosto.

-Sr. Doutor, gostaria que me desse mais detalhes sobre a mulher desconhecida.

-Bem, Sr. Moisés, analisei com rigor o tipo de ferimento. Assim, com os equipamentos que disponho aqui, direi que ela sofreu uma queda, porém não encontrei vestígios de arrastamento, como quando alguém cai de mota ou em corrida. Muito menos de agressão com algum objecto.Neste caso os ferimentos são somente de impacto. Verifiquei debaixo das unhas, nos dentes… Nada.

-Encontrou marcas ou cicatrizes de outros ferimentos?

-Não. Ela tem os dois pulsos partidos, as duas rótulas bastante magoadas, três costelas partidas e o maxilar deslocado. Mas são resultado deste acidente.

-Consegue calcular qual a altura necessária para este tipo de ferimentos?

-Sim, nunca menos de 8 metros de altura.

-Isso já é uma grande queda…- disse Moisés, servindo mais vinho.

-Sim, já seria suficiente para ter provocado a morte.

-Verificou se ela tem outro tipo de patologia, mesmo não associada à queda?

-Fiz o exame de gota espessa para verificar se tem paludismo, mas não tem. É obrigatório. Neste caso, não vi necessidade de proceder a mais exames do tipo.

-Pois…

-Mas o que eu queria falar com o sr. Moisés é outra coisa. Parece um pequeno detalhe, mas pode ajudar-nos a determinar a sua origem.

-Então diga lá, sr. Doutor.

-Já reparou, com certeza, que é comum as crianças angolanas andarem a brincar descalças.

-Sim, é verdade.

-Pois, os angolanos andam a brincar descalços durante toda a infância, parte da adolescência e, em regiões agrícolas e de pastorícia como a nossa, por toda a vida. Assim, cria-se um calo nos pés, a pele fica mais grossa e parece até que se pode caminhar sobre vidro sem se ferir.

-Muito bem, prossiga, sr. Doutor.

-Nesta senhora, este calo não existe. A verdade é que nem as mãos parecem de uma camponesa. O trançado da carapinha é fino e muito bem tratado. Não lhe falta nenhum dente, nem tem cáries sequer…

-Então quer dizer que…?

-Que esta mulher deve ser de uma cidade, deve ter bons rendimentos, pois, pelo aspecto, ela não necessita de grandes esforços para se sustentar. Sendo virgem, poderíamos assumir que será também solteira.

-Sim, não conheço nenhum angolano que aceitasse uma mulher que não lhe desse filhos.

-Assim é.

-Então sugere que seja uma freira? Ou uma estrangeira? Ainda por cima rica?

-Duvido que uma freira passasse tanto tempo a entraçar a carapinha… ou que fosse rica.

-Pois, tem lógica…- disse Lopes servindo mais vinho.

-Contudo, não seria mau se pedisse ao padre que verificasse se há algum caso de desaparecimento nesta região.

-Pois, assim só ficava o mistério da queda…-disse Moisés, fazendo sinal para que servissem o almoço.

Tia Antónia aproximou-se com a travessa do funge de peito alto.

-Tia Antónia, mal lhe pergunte, a minha esposa falou-me de que caiu uma outra mulher há uns anos atrás. Lembra-se disso?

-Lembro, filho, muito bem!

-E isso em quê que ficou?

-Isso já não me lembro – disse Antónia, saindo um pouco apressadamente.

-Ora esta?! Você viu, doutor? Se ela não fosse negra, diria que ficou pálida!

-Não ligue, sr. Moisés, não ligue.

A populaça começou a perder o interesse e a afastar-se, visto que não conseguiam ouvir nada vindo daquela mesa.

-Bem, voltando ao assunto. Sugiro que contacte N’Dalatando, é lá a base provincial, não é? Isto para o caso de ser estrangeira – disse o doutor Chinguare.

-É.

-Faça-lhes a mesma pergunta, se tem notícia de algum desaparecimento.

-Nestes tempos de guerra? Nem sei se se dão ao trabalho de responder.

-Nesse caso, o que pensa fazer? Ela pode ter alta amanhã. Está mal tratada, mas não necessita de internamento, muito menos no posto médico do Golungo Alto. Vai para aonde? No posto médico é que não pode ficar…

-No posto da polícia também não…-disse Moisés.

-Até decisão em contrário fica consigo, doutor. Mais um dia que seja…

-Mas não me arraste isto muito tempo.

-Fique sossegado! Mais um bocadinho de vinho?

-Então, isso nem se pergunta.

(continua, mas do próximo capitulo não passa!)