O Delegado Dadeu e a prisão de João Sem Braço
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Na estação rodoviária da pequena cidade do interior, na região do entorno de Passo Fundo, costumavam desembarcar os colonos que retornavam das consultas médicas , das compras no comércio da “cidade grande” ou – quando não os próprios – seus filhos ou filhas, que retornavam para casa nos finais de semana e nas férias das faculdades.
Muito raramente descia do ônibus um estranho, a não ser quando se tratava de um parente em visita familiar, mas nessa última hipótese havia uma comissão de recepção, de modo que os funcionários sabiam quem era o “forasteiro”.
Mas naquele fim de tarde de um dia gelado, com temperatura beirando ao zero grau centígrado, houve um murmúrio que se espalhou silenciosamente, como água de goteira, por todos os cantos da rodoviária . E tudo graças ao desembarque de um sujeito com um biotipo estranho – magro, alto e cavanhaque aparado – mas cuja principal característica era a falta do braço esquerdo. O forasteiro foi direto ao balcão indagar onde encontraria um hotel barato ou uma “pensão” para aluguel de um quarto.
- O senhor pretende ficar muito tempo ?
Indagou o vendedor de passagens no balcão da rodoviária, ao que ele respondeu prontamente:
- Sim, pretendo me estabelecer aqui , porque fui informado de que é uma região muito próspera . Sou vendedor de loterias ...
Instalou-se na “Pensão do Moinho” , uma espelunca onde dormiam trabalhadores rurais quando tinham de permanecer na cidade por um ou dois dias. E já na primeira semana de estadia na cidade era visto e reconhecido no centro, vendendo bilhetes de loteria que recebia em envelopes despachados desde Porto Alegre.
Era visto também freqüentando diversas casas de “Carteado” e de jogos clandestinos como o tradicional “jogo do osso” , bem como em “rinhas” de galo onde corriam apostas e, não obstante a repressão implacável do Delegado Dadeu, continuavam a operar mudando de endereço quando necessário.
Nas primeiras semanas de permanência na cidade o elemento que se apresentava simplesmente como João , foi mostrando uma personalidade falante e atrevida , a tal ponto que durante o dia , debochava de quem não lhe comprava bilhetes lotéricos e durante a noite aprontava em discussões nas mesas de jogatina , e desafiava a paciência dos outros que, contudo, comediam suas reações diante da deficiência física do sujeito.
Mas não tardou muito para ganhar o apelido de “João Sem Braço” – numa espécie de vingança branca – já que não podiam lhe aplicar uma surra, ao menos lhe deram essa alcunha, que o enfurecia, notadamente quando alguns moleques gritavam na esquina e corriam em disparada.
Os moradores da cidade estavam intrigados , curiosos por saber de onde havia surgido aquele elemento ... o que fazia antes ? – por que motivo viera para a cidade pequena – e, sobretudo, o que queria ali ...
Numa noite durante uma rodada de jogo de pife , um dos participantes da jogatina não se conteve e indagou de onde havia vindo e o que fazia da vida antes – qual era seu passado ?? . Ele, sem fazer muito mistério foi logo dizendo que morava em Porto Alegre e que trabalhava como eletricista, mas sofrera um grave acidente e perdera o braço graças a um forte choque elétrico.
A história não apenas “colou” como despertou até uma certa comoção, aumentando a tolerância dos nativos aos deslizes do “João Sem Braço”. Não tardou muito, contudo, para que surgissem novas versões acerca do passado do forasteiro , a mais cruel delas, a de que teria levado um choque durante uma tentativa de furto frustrada, quando escalava um muro à noite e teria tocado num fio da rede de energia.
Muitos outros boatos surgiram e a bem da verdade nunca foram confirmados, todavia, tanto quanto proliferavam os comentários, aumentava a ousadia do sujeito que parecia agir desrespeitosamente na certeza de que não sofreria retaliações diante da piedade dos outros e do receio natural que uma pessoa “normal” tem antes de agredir um “deficiente” físico.
Certo domingo, porém , pareceu ter sido o dia escolhido para uma mudança de rumo na história. Já era início do verão e a cidade estava movimentada graças ao retorno dos jovens que estudavam fora – o centro efervescia – e não se sabe como e nem porquê, “João Sem Braço” foi expulso do interior de um bar, criando-se uma discussão que ameaçava se transformar em pancadaria generalizada, quando chegou ao local um Jeep Willys da Brigada Militar, que é o nome da Polícia Militar no Rio Grande do Sul.
Mas o curioso foi que ao tentar algemar o “João Sem Braço” um dos “Brigadianos” travou a algema no único pulso disponível e depois não sabia onde travar a outra, pois evidentemente não seria possível algemar alguém que só possuía um braço e as algemas enquanto equipamento de imobilização pressupõem o acondicionamento nos dois pulsos.
O episódio tornou-se hilário para o público que a tudo assistia, máxime quando um conhecido ébrio da rua gritou : -“Olha lá o “Brigadiano” não sabe o que fazer com as algemas!” – e todos riam compulsivamente, despertando uma ira nos Policiais Militares, que – entre a vergonha e a fúria - levaram o “João Sem Braço” para a Delegacia.
O Delegado Dadeu se conteve para não aderir aos risos e ao inusitado da prisão e imprimiu a necessária seriedade ao caso. Disse ao “João Sem Braço” que ele já estava causando problemas demais na cidade e lhe fez a proposta de prende-lo apenas por uma noite, desde que ele pegasse sua bagagem e partisse no dia seguinte. Acordo feito, “João Sem Braço” se espreguiçou na cama do calabouço , já sonhando com uma nova cidade para recomeçar sua história ...