Não importa o que o passado fez de mim. O que importa é o que eu vou fazer com ‘este’ passado que me atirou ‘neste’ futuro. Difícil entender? Calma! Tudo vai ficar claro. Mas é preciso que acreditem em mim. Aconteceu um evento extraordinário. Voltei no tempo. Sim senhor! E não perguntem como. Só digo que não usei nenhuma daquelas máquinas estúpidas dos filmes de ficção, cheias de botões que acendem e apagam, que fazem trrr, zrrr, como se uma colméia tivesse algo a ver com viajar no tempo. Retrocedi doze anos e aproveitei a chance para tomar uma decisão muito séria, apesar de todos os paradoxos – do avô, da mãe, do diabo – que cientistas frouxos discutem por aí. Estes paradoxos – que servem de desculpa para esconder o fato de que é possível viajar no tempo – não me afetam de nenhum modo, até porque não voltei ao passado para matar meu avô e nem para matar a mim mesmo, o que, em termos restritos, implicaria em uma mudança na História já estabelecida – como se minha morte ou a do meu avô, que, aliás, já morreu faz tempo, significasse algo para esta ilustre e seleta Dama chamada História – e sim para resolver, digamos, uma pendência temporal que muito me incomoda.
Curiosamente, emergi desta ‘viagem’ quase no cruzamento da Nove de Julho com a Rua Groelândia, perto de onde morava o imbecil que causou a pior desgraça em minha vida. Mas agora, graças a este prodígio, sobrava-me tempo, já que o meu alvo só iria surgir em minha existência dali a um ano. Logo, se eu agisse agora e fosse eficiente – e eficiência é uma das minhas qualidades, até meus inimigos o dizem – eu me salvaria dos desastres que me impediram de levar uma vida feliz e tranqüila.
Não me esqueci do caminho. A luz da tarde precipitava-se para as primeiras poças de sombras noturnas, como pernas exangues estendidas em alguma praia. Esta conjunção de dias alongados – dias de verão – e noites que se encolhiam, os quadrados incertos de luz que se debatiam neste cabo de guerra cromático, bastavam para indicar o caminho e como voltar, uma vez atingido o objetivo.
Na calçada sombras humanas escapam dos prédios e das lojas, ritmicamente controlados e aceitáveis ao exame do outro – eu, você e também o Dr. Ricardo Allegro - porque é ele que esta tarde indecisa e eu, prodigioso explorador do tempo, querem atingir – saracoteando o cinzento das suas silhuetas, em um deslizar de répteis, tão próximos que minha pele se arrepia, convulsionada de asco. Sinto o peso do revólver em minha cintura. Como sou bom com armas o serviço será rápido e seguro.
Nada disto precisava acontecer. Se Allegro não tivesse se aproximado de Marta, minha esposa, e, se valendo de seus ares de Dom Juan decadente, não a tivesse atraído à sua teia – OK! Ela era uma tola – e feito dela sua amante eu não precisaria viajar no tempo tendo por testemunha apenas as boas almas que vierem a ler este relato. Mas Allegro era um irresponsável. Talvez não julgasse que eu, homem tão conceituado em minha profissão, fosse matar a vadia da Marta, cortá-la em pedaços e, a título de cereja no topo do bolo, tentar fazer parecer que ele era o assassino. Não tive êxito – ao menos quanto a esta última parte – e fui trancafiado enquanto o Don Juan de Vila Olímpia seguiu com suas aventuras vergonhosas.
Agora, este notável evento – que não sei explicar – me trouxe de volta ao covil do lobo. Estou certo que, ao encontrá-lo, posso dar um ‘jeitinho’ no problema que ele ainda ira me causar. Claro que ele não desconfiará de mim. Ele ainda não me conhece e nem a Marta e, portanto, vou parecer tão inofensivo quanto um algodão doce. Ele mora bem aqui, neste prédio de pastilhas azuis e brancas, com amplas janelas frontais. Só, como um cacto no deserto. Terceiro andar. Fico no passeio no outro lado da rua, observando o movimento de chegada e saída. Não há luz no apartamento.  Ele deve estar em seu ridículo consultório de dentista, engabelando outra imbecil. Mas quando ele chegar, quando a luz acender...
Ah! Bang.
 
Em uma van parada a poucos metros do prédio, três homens observavam o recém chegado.
‘É ele mesmo?’ perguntou o que estava no banco do passageiro.
‘É sim. ’ – respondeu o que estava ao volante, inclinando-se um pouco para frente e olhando o homem encostado no poste perto da esquina – ‘Ele acertou!’.
‘E o que é que a gente faz agora?’ – perguntou o terceiro homem, sentado no banco de trás.
‘Ele já está no apartamento’ – disse o do banco do passageiro – ‘Vou ligar e avisar que o cara chegou. ’.
O homem ligou o celular e disse assim que atenderam:
‘Ele está aqui embaixo. ’.
Do outro lado da linha, silêncio.
‘Então?’ – perguntou o do volante, vendo que o companheiro desligou o celular sem dizer mais nada.
‘Vamos esperar. ’.
 
A luz acendeu. Nem percebi ele chegar. Agora é passar pela portaria e chegar até Allegro. Não aprecio violência. Não tenho intenção de ferir o porteiro, mas, se não houver outro meio, paciência. Afinal, não é sempre que se pode viajar no tempo. Aproximo-me do portão e vejo que a portaria está vazia. Melhor ainda: o portão está só encostado. Sem fazer barulho, atravesso o saguão até os elevadores. Ninguém. Como as coisas mudaram em doze anos! Entro no elevador, aperto o botão do terceiro andar e seguro o revólver debaixo da camisa. Quando Allegro abrir a porta, atiro bem no meio da cara dele e fujo. Vou voltar para Marta e convidá-la para irmos a Paris. Toco a campainha. Tiro o revólver e aponto bem na altura dos meus olhos, onde sei que estarão, também, os olhos de Allegro. Um tiro só e basta. Ouço passos no outro lado. A chave gira e eu respiro fundo, o dedo no gatilho. A porta se abre. Um homem alto, mais alto que eu – por isto, o revólver apontava para seu peito e não para os olhos – encostou-se no espaldar e disse em tom casual:
‘Olá!’.
Olhei-o por detrás da mira. Pisquei, senti as mãos tremerem, a boca secar e tudo o que disse foi o nome do homem que me fitava com aqueles olhos plácidos.
‘Gomes?’.
‘Como vai, Madureira?’ – ele se afastou da soleira, e eu vi a sala do apartamento atrás dele, vazia, sem móveis e sem cortinas, o piso de madeira coberto por uma fina camada de pó cor de ocre – ‘Quer entrar?’ – convidou ele.
‘Saia da minha frente!’ – ameacei, balançando a arma – ‘Esqueceu que eu sei atirar e muito bem?’.
Ele não se intimidou. Com um gesto ágil, arrancou o revólver da minha mão. Senti o ódio travar-me a garganta.
‘Isto não é uma arma. ’ – disse ele, mostrando o objeto agora em suas mãos – ‘É só um tubo de pasta de dente. ’ – olhou para a bisnaga meio vazia e completou – ‘Sabor menta. ’.
‘Onde está Allegro?’ – abri os braços, desnorteado – ‘Gomes, entenda... Eu tenho uma chance única! Voltei no tempo. Claro que você não sabe do que estou falando, mas eu voltei a 1997!’ – ele, no entanto, me pareceu diferente do que era em 1997; eu o conhecia desde que entrara para a polícia e lembrava que, em 1997, Gomes não tinha aquele ar sério, concentrado, nem seus traços eram tão seguros e firmes. Naquele tempo, ele era ainda um garoto. Agora, aquele vulto alto e sólido, os olhos imóveis que me contemplavam, mostravam que eu estava diante de um homem.
‘Hoje são 04 de outubro de 2009. ’ – disse ele, guardando o tubo de pasta em um dos bolsos externos da sua jaqueta – ‘Não existe nenhuma viagem no tempo, Madureira. ’.
Antes que eu pudesse protestar – e mostrar-lhe seu erro – uma picada abaixo do meu ombro me fez tremer. Voltei-me e me deparei com o miserável do Rodolfo, o enfermeiro babaca que gosta de ver novelas na sala de TV daquela maldita clínica. Quase pulei em seu pescoço. Na verdade, pulei. Mas uma nuvem cinzenta cobriu meus olhos e um gosto acre espalhou-se pela minha boca. Quis falar e não pude. Minhas pálpebras se fecharam, mas, apesar da profundidade do poço escuro em que eu mergulhei, suavemente, ouvi a voz de Gomes:
‘Cuidado com ele. Vamos levá-lo de volta. ’.
 
Lá embaixo, Rodolfo e o outro enfermeiro acomodaram Madureira no banco da van da clínica, ficando um deles ao seu lado. Rodolfo assumiu o volante enquanto Gomes e Jojoca observavam a operação.
‘Vamos com eles?’ – perguntou Jojoca.
‘Não. Ele ainda vai dormir um bocado. Melhor voltar pra casa. ’.
A van desceu a rua na direção da Nove de Julho. Gomes voltou para a portaria, onde um homem de cabelos grisalhos, gordo e de rosto vermelho assumira a cadeira antes vazia.
‘Obrigado pela ajuda. Aqui está a chave. ’ – disse, devolvendo-a ao porteiro.
‘Doutor... Aquele homem... Quer dizer, o doido... Ele não sabe mesmo?’.
‘Não. Mas vai saber. ’ – Gomes acenou para Jojoca e os dois se dirigiram para a viatura.
 
 
Três dias depois, Gomes, sentado no consultório, ouvia o médico:
‘No início do mês, montamos uma sala de vídeo. Passamos alguns filmes, a maioria comédias, mas no final de semana exibiram ‘A Máquina do Tempo’, um filme baseado no livro de H.G. Wells. Desde então... ’ – ele olhou pela janela que dava vista para uma varanda e, mais adiante, para um dos lados do bem cuidado jardim. Madureira estava sentado em uma poltrona, pernas cruzadas, olhando para algum lugar indefinido –‘ Ele ficou estranho, calado, mas ao mesmo tempo preso de uma agitação que indicava que algo estava acontecendo. ’ – voltou-se para Gomes e sorriu simpático – ‘Ainda bem que o senhor acertou onde achá-lo. Aliás, como o senhor soube?’.
‘O médico que me ligou contou esta história. Foi só um palpite. Supus que ele absorvera as idéias do filme e então ‘viajou no tempo’ também. Procurar o Dr. Allegro era o que ele faria se esta fantasia fosse real. ’.
O médico acenou, impressionado. Gomes levantou:
‘Posso vê-lo?’.
‘Claro. Ele está melhor. Até perguntou pelo senhor... ’ – disse o médico.
‘Somos velhos conhecidos. ’ – sorriu Gomes, dirigindo-se para a varanda.
Gomes sentou-se em uma confortável poltrona acolchoada com almofadas de cor verde, bem em frente à Madureira, que, ao vê-lo chegar, bateu palmas, lentamente, cumprimentando-o:
‘Godofredo Gomes! Seu eterno estraga-prazeres!’.
‘Como está?’
‘Decepcionado!’ – Madureira segurou a cabeça com ambas as mãos, deixando o queixo tocar o peito, os olhos desviando-se do exame atento do visitante. Ele riu, mas um sorriso quebrado, de lástima, sem alegria –‘Que vergonha! Um homem como eu – e você me conhece, Gomes – ter uma alucinação absurda como esta! Estou envergonhado!’ – olhou para Gomes, abrindo muito os olhos acinzentados – ‘O que você não deve estar pensando de mim?’.
Depois de alguns instantes, Gomes disse com naturalidade:
‘Allegro morreu no ano passado. Acidente de carro. ’ – deu de ombros – ‘O tempo passa. As coisas simplesmente acontecem. Quer se queira ou não. ’.
Madureira mordeu o lábio inferior. Abriu e fechou os olhos, até deixar que um riso torcido, doentio, frio como um peixe congelado se desenhasse em seus lábios.
‘Morto, hein?’ – Gomes assentiu. Madureira recostou-se na poltrona, suspirou e disse, com o dedo indicador da mão direita erguido para cima – ‘Mas imagine se fosse mesmo verdade! Se eu tivesse ido até a porta daquele apartamento doze anos atrás! E se ao invés de um maldito tubo de pasta eu tivesse um 38 carregado!’ – piscou o olho e riu, divertido, desta vez – ‘Aí sim teríamos um gran finale. Acidente de carro? Morte vulgar, não acha?’.
‘Tanto faz’ – replicou Gomes.
Na mesa entre as poltronas, um tabuleiro de xadrez estava montado, as peças em seus lugares. Madureira inclinou-se para frente e perguntou:
‘Quanto tempo faz que não jogamos uma boa partida de xadrez?’
‘Um bom tempo. ’ – respondeu Gomes.
‘Mas agora... Aqui... ’ – e ele olhou para o amplo jardim, para os pacientes sentados em bancos, os enfermeiros indo e vindo – ‘Temos todo o tempo do mundo!’.
‘Temos’. – confirmou Gomes
‘Quanto tempo você acha que pode resistir antes do xeque-mate?’ – indagou Madureira, irônico.
‘Que diferença faz?’ – respondeu Gomes, movendo a primeira peça.