CHACINA CHIC (“Doon”)
CHACINA CHIC (“Doon”)
Conrad, seria diplomado em medicina na próxima semana. Costuma dopar-se de “crack” e cocaína. Classe média alta, seu principal terreiro, o Morumbi Shopping. Motivado pelos hormônios produzidos na parte medular das glândulas suprarrenais, a adrenalina circula no sangue a partir dessa química do estar dopado. As extremidades tentaculares das sinapses transmitem aos neurotransmissores, dopaminas.
Elas fustigam o processo de condução de impulsos nervosos do e para o corpo celular. As extensões dos dendritos, as mútuas infiltrações na massa cinzenta, prolongam-se ao longo dos axônios, das ramificações neuronais. Simplificando: está doidão, e não é de batida de limão. Na cabeça de jovem, quase médico, circulam informações especializadas. Criam nele a sensação de que acompanha e controla os desdobramentos dos efeitos das drogas.
Seis anos de medicina são suficientes para garantir que pode ser cobaia de si mesmo, sem maiores riscos. Gosta. Quer chegar aos limites do experimentalismo, da auto-observação. No núcleo de cada neurônio sente atuar, célere, a cromatina. No citoplasma, disseminam-se distúrbios químicos por transtorno da sensibilidade.
As atividades motoras dos mitocôndrios ou condriossomos, filamentos contendo enzimas, ácido cítrico e sistemas de transportes de elétrons, desempenham importantes papéis polarizadores nos efeitos das doses no processo metabólico. As alterações neurológicas criam condições PSI para o surgimento de patologias, transtornos e estados orgânicos anormais.
Conrad mantém o processo de realimentação dessas sensações instigantes do sistema nervoso central realimentando-se em outras fontes: é simplesmente atraído por empatias com personagens ficcionais, tvvisivos, cinematográficos, que manifestam comportamentos, pessoal e social, contaminados pela violência e pela ultraviolência. Está aqui para assistir, com direção de David Fincher, o “movie” Clube da Luta, estrelado pela menina dos olhos das xoxotinhas picantes, dos mocinhos bonitinhos, pseudo ordeiros, sempre prontos a bater continência para o mais recente modelo do star sistem.
Toda uma juventude entusiasmada pela carinha fabricada de Brad Pittbull. Conrad faz parte dela. Recusa-se entrar na maturidade sem despertar a atenção dos demais de sua idade. Está na metrópole Sampaulo, onde o coração das trevas do capitalismo do Terceiro Mundo, galopa em direção ao coração das trevas do Primeiro Mundo. Aceita-se viciado na adrenalina da violência que os noticiários dos jornais, revistas emissoras de rádio e tv, despejam sobre sua geração todos os dias, às toneladas.
Quantidade de notícia pesa, arquiva-se na mente, condiciona comportamentos de mórbida intimidade com o sangue das vítimas. Ora, já que ninguém faz nada, as autoridades ausentam-se da “mínima morália”, e da responsabilidade de gerir a educação, fundamental e média, de maneira pertinente as motivações lúdicas sadias da sociedade. Que poderá ele fazer, exceto alimentar-se passivamente dela, da mama violência virtual, como, de resto, fazem todos?
Esta erupção de violência, real e virtual, em todos os lugares da cidade, faz de reféns seus moradores. Todos estão com as mentes sequestradas pela viscosidade de milhares de milhares de imagens dos constrangimentos diários. Ele é como os demais: aceita-as como se fossem a coisa mais natural do mundo. Mas não é. É uma lei da natureza, de todas as naturezas: “O acúmulo de quantidades modifica a qualidade”.
Conrad está tão saturado dessas doses cavalares de coerção, coação, uso extorsivo da força física na telinha da sala de jantar, nos inocentes e confortáveis cinemas do shopping. Na Internet. Aceita a droga de mais um filme cheio dela, como uma contribuição a mais a essa dependência. Não passa pela cabeça, cheia de informações médicas qualificadas, que mais um filme pode ser a gota d’água, a overdose, o rompimento do ponto de saturação. Afinal, está familiarizado com as conexões químicas e as estruturas de modificação sensorial que as drogas provocam.
Conrad gosta de estar visceralmente dopado em todo tipo de convite à excitação motora: desde as mensagens subliminares das propagandas de cigarros, a filmes tvvisivos com tramas violentas, deles jorra muito sangue. A fixação coletiva pelo plasma, como se todos fossem descendentes diretos de vampiros. Não perde um único lançamento cinematográfico semanal no gênero. Gosta de se dopar com as drogas que a sociedade a todo momento oferece quase gratuitamente. Os filmes de alucinação mórbida dos sentidos é o filme da realidade.
trinta reais são suficientes para fumar, por duas horas, o cachimbo do crack do mais novo lançamento, no mais “chic dos shoppings”. A informação que deforma está em todos os lugares, todo tempo. Nos jornais, lê diariamente as notícias de chacinas, pessoas mortas em festas de batizado, aniversários, casamentos, clubes, bares, nos semáforos, ônibus, nas motos, nas escolas, nas ruas. É como se não houvesse autoridades policiais que investissem na contenção do tráfico e do terrorismo na violência urbana.
Quem não sabe? Nessas quadrilhas, está a presença, subliminar, de membros dos três poderes, garantindo, por trás do cenário miúdo dos criminosos pés-de-chinelo, os bilhões de dólares de lucro anual das eminências pardas do colarinho da branquinha. E de drogas farmacológicas encontradas em qualquer farmácia.
Não quer passar em branco. Em uma semana diploma-se médico, doutor. Respeitabilidade de canudo de papel, quem liga pra essa merda? Vai ser outro anônimo profissional da medicina. Precisa de notoriedade, exposição na mídia. Antes que algum elemento do ciclo de traficantes e drogados que frequenta, tenha essa ideia, quer ser pioneiro em chacina no interior de cinema, num shopping. Pensa em explodir algumas granadas, as explosões não teriam o mesmo impacto das rajadas da submetralhadora.
Ele ali, de pé, de pé, apertando gloriosamente o gatilho da nove milímetros. As balas pipocando nos espectadores. A sensação de estar no comando, poder ver o vermelho jorrando das vítimas atingidas, indefesas, perplexas, aflitas, mal-assombradas. A plateia em pânico, o cano quente da arma, a fumacinha, após as dezenas de projéteis, tudo como nos filmes tipo Rambo e quejandos. Na realidade precisa do substituto freudiano para o fálus.
Transfere certa passividade física, para a virtualidade de personagens da tela. É fã de Bruce Willis no papel do detetive truculento que ganha todas dos terroristas. Filme com Silvester Stallone, não perde um. Gostaria que os marginais ganhassem todas dos detetives, fica do lado do mocinho apenas para se sentir vencedor.
Se a vida, pessoal e coletiva está definitivamente desvalorizada pelo descaso das autoridades, que entregaram o país aos traficantes, à prostituição e à criminalidade, a partir de um simulacro de educação escolar, resta a ele participar da tragédia social, cuja única moral é levar vantagem. A rápido, curto, médio e a longo prazos.
Completou 26 semana passada. Na festa de aniversário, entre a alegria dos presentes, o amigo com apelido de Brad Pitbull, deixou-o numa situação de constrangimento. Na festa, presenteou-o, na cara dura, em meio a todos, com essa maravilha de submetralhadora. Presente não, mais uma troca pelo carro na lanternagem, que deve valer cinco mil reais. Tudo bem, em meio ao cheira-cheira, ao funga-funga, ao pita-pita dos cachimbos de “crack”, quem vai se tocar do que significa estar com essa beleza de tecnologia bélica em mãos?
Cobray M-11/9, 960 tiros por minuto, a Pandora dos criminosos, menina dos olhos do tráfico. Não vai atirar em ninguém que estiver nas filas dos hospitais e postos de saúde do SUS, nem em pessoas que batem as botas por falta do fornecimento de medicamentos caros nas farmácias gerenciadas pelas secretarias de saúde: esses modelos de assassinatos são para os que gerenciam o atual Estado das coisas e as verbas, sempre insuficientes, das secretarias de acompanhamento econômico na área social.
Não pretende ser supercriminoso, tipo tio Átila, tio Hitler, tio Stalin, tio Pinochet, tio Hildebrando, tio Garrastazu Médice, tio Cel. Correia Lima, os irmãos Metralha das Alagoas, tio Severino da Bananeira Collorida, tio Talvane Albuquerque, tio Gerardo de Abreu, Tio Aníbal Canibal, tios Malufs, tios Arrudas ou qualquer outro desses “respeitáveis” políticos responsáveis pelo gerenciamento das verbas da educação fundamental. E média. E acadêmica. Nacional.
Que são três mortes, comparadas ao longo período de genocídios comandados pelo ex-ditador Pinochet, seus sequazes? Torturaram, mataram impune e covardemente, durante anos, milhares e milhares de pessoas. Agora está sendo vergonhosamente reverenciado por governantes de 19 países da Cúpula Ibero-Americana, que condenam o processo movido na Espanha, pelo juiz Baltazar Garzon, por crimes contra a humanidade.
Comparado ao ex-carniceiro chileno, sente-se apenas um garoto que amava os Beatles e os Rolling Stones. Quer apenas aparecer, ter alguma exposição na mídia. Na mídia que alimenta e realimenta a violência nossa de cada dia, com a criminalidade das reportagens de jornais que pingam sangue, antes privilégio de “O Dia” e “A Notícia” do Rio de Janeiro. Hoje a grande imprensa concorre com eles, e ganha de 10 a zero. A violência era uma coisa cancerosa de baixo para cima, agora, é ampla, total e irrestrita, parte de membros do Congresso, juizes e polícias de apoio, gente do “status” dos executivos municipal, estadual, e federal.
As relações entre poderes e os demais membros da sociedade, virou uma patologia de criminalidade cromagnon. Todas as relações, pessoais e coletivas, parecem provenientes das pulsões de destrutividade, agindo a pleno vapor. Acredita que a banalização da violência tem causas óbvias. Todos os segmentos sociais, a partir dos mais altos, põem lenha na fogueira da patologia coletiva. É como se todos estivessem contribuindo para a coisa mórbida da realimentação dos processos sociais patológicos. Afinal, ela mantem o fogo do consumismo desvairado aceso.
Se esse processo, pessoal e social, patológico, parar, as pessoas vão ficar de cara cara a cara, cara a cara cara, cara. O sistema capitalista precisa dessa patologia a mil km por minuto. Conrad lembra da opinião de um desses tutores de notícias consagrados pela mídia, âncora conhecido como “a grife da notícia”. Entre outras proverbiais bobagens, Bóris Karloff (será mesmo esse o nome?) costuma dizer que filme e tv nada têm a ver com esses surtos e erupções de violência.
Então, como se explicam que deputados estejam imitando personagens da filmes de horror classe C, furando os olhos, serrando, literalmente, os membros de seus desafetos com os instrumentos de trabalho das personagens ficcionais tipo tio Freddy Kruger, Jason. Ele é parte d´"A Noite dos Mortos-Vivos".
O pior da criatura passional invisível, que reside em cada habitante do coração das trevas. Ele está a querer manifestar-se via mídia, como os monstrengos de Blood Mania (70), Corruption (68), Dark Places (74), Dark Tower (87), The Devil Commands (41), Impulse (74), The Invisible Creature (59), Inferno (80), Jason Goes to Hell: The Final Friday (93), Macabre (78), Zombie Island Massacre (84), SSSSSSSSSSS (73), Possession (81), Hysterical (83), Homicidal (61), Holy Terror (77), Halloween (78/81/83/88/89), The Funhouse (81), Eye of the Cat (69), Eye of the Devil (67), Eye of a Stranger (81), Eyes of Hell (61). Hollywood na festa de sua cabeça.
Será que o Bóris Karloff (é assim que se escreve?) acha que todo esse tsunami de imagens de violência patológica diária não influi em nada no condicionamento comportamental, ou, pelo menos, no arquivamento sensitivo do medo que essas imagens provocam no sistema nervoso central? Os espectadores não possuem mais sistema nervoso? Os personagens da sala de jantar e os das salas de cinema viciados em chacinas, na passividade encanada pela adrenalina do sofá, existem ou não???
Quem diria, o cinema nacional reerguendo-se das cinzas, financiado por membros do legislativo, produziu a realidade do Massacre da Serra Elétrica. Conrad orgulha-se da memória para filmes do gênero violência, ultraviolência, horror. Sente inflar a liberdade neuronal: ahhh, poder identificar-se, fazer uma empatia pertinente com o modo de pensar de personagens temerosos, sem que mais ninguém saiba da quantidade de amigos monstrengos que acumula dentro de si.
A mente, um memorial dos horrores produzido pelas tios e tiazinhas de Hollywood. Eles fabricam milhões de caras como ele, mundo afora. Cada um deles dia a dia mais viciado na intimidade da mórbida adrenalina e suas doses de violência e ultraviolência na tv, nos noticiários e jogos da Internet. Todos esses crimes inconfessáveis, guardá-los intimamente, ser parte deles, de sua patologia. A mente, essa caverna mágica maravilhosa. Modernamente bem representada por Australopitecos afarensis. Ele, ali, frente à plateia absorta, representando um exemplar
Nesse antro guarda, com inusitado carinho, por vezes paixão, esses filmes, a animalidade recôndita dessas personagens. Graças a elas, sente-se, em parte, tão energizado. Por vezes a certeza aflora: de que ninguém no mundo real tem colhões. Vivem todos como goléns submissos a condicionamentos obsessivos que fazem deles seres amorfos, dessenergizados, aos quais falta esperança. Quando não, seres energizados pela alienação de personagens psicóticos da telinha da sala de jantar. Seres semelhantes a ele.
A liberdade de todas essas pessoas do mundo real, realiza-se na virtualidade de personagens hollywoodianos. O horror de cada tvespectador, telespectador, por vezes ganha espaço, realiza-se no mundo considerado não-virtual, real. A separar esses universos, não tão paralelos A distância irrisória de um fio de cabelo, o “click” do controle remoto. De tão viciado não pode mais passar sem a cólera, o desespero, as situações limites, as doses cada vez maiores de problemas, onde quer que se manifestem: no mundo ficcional, no real.
A densidade de altas doses de mórbida e passional adrenalina. Os programas de depoimentos dos membros convertidos nas igrejas evangélicas, pentecostais e quejandas, também uma maneira de se identificar com as pessoas que usaram e abusaram desses, agora, convertidos, que afirmaram o poder deletério do mundo real e virtual na realidade deles: jovens que se prostituíram pela necessidade de consumir drogas. Rapazes que fizeram a mesma coisa por suas necessidades de sobrevivência. Para alimentar as contas bancárias dos traficantes, dos donos de motéis, de saunas, dos que exploram o tráfico, o lenocínio: a libidinagem, o proxenetismo, o rufianismo, o comércio de crianças para a satisfação dos alcoviteiros de nossa “melhor” sociedade: a “elite” da sarjeta comunitária.
Todas essas infecções sociais presentes também nas reuniões de cancerosos de todos os tipos, infectados por microbactérias e mutações de vírus: alcoólicos anônimos, neuróticos anônimos, drogados anônimos: todos se infeccionam mutuamente. Uma sociedade de anônimos com vergonha de expor as entranhas apodrecidas pelas necessidades do coração das trevas criar modalidades, as mais diversas e inusitadas, de faturamento.
Tudo vale a pena se a demência não é pequena. As mídias disseminam os horrores dentro da sala de jantar. Se essa sociedade não gostasse de horrores, como se justificariam os bilhões de dólares investidos em baboseiras tvvisivas e cinematográficas, filmadas nos estúdios do colonizador da mentalidade coletiva globalizada pela ansiedade e o medo?
Conrad pergunta-se, antes de sair do banheiro: será que eles não veem quem são os bois de piranha de todo esse lixo? Na semana passada frequentou uma reunião desses seres menores, carentes, que fazem de conta que acreditam que existem pessoas nessa sociedade que se importam com eles, os drogados anônimos. Por que não? É mais barato que cinema e tem café e biscoitos de graça.
Essas reuniões dão uma certa ilusão de que essas pessoas miúdas não estão sozinhas, sujeitas aos acidentes, colisões e à insegurança dos demais ambientes públicos da metrópole. O coração das trevas está repleto de ameaças subliminares, fatalidades espreitam nos semáforos. Conrad sempre teve mal relacionamento com o pai. Pudesse escolher com quem lutar fisicamente, não por ele ser sexagenário e mais fraco, mas por ele sempre ter se esquivado de um diálogo sincero, honesto: bateria nele pra valer, com socos e pontapés no pé do ouvido. Depois, com certeza, sentir-se-ia bem melhor. Bater em pai é dose, crime. Fica represando essa energia, desenvolvendo a corrosão, acumulando ressentimentos autodestrutivos.
Um dia, não sabe quando, essa coisa explodirá, como a pressão do vapor, de dentro para fora da moringa. O instinto homicida há muito contido, cedo ou tarde vai estourar. Um dia essas tensões terão de escapar por uma fenda de sua alma. Este dia é hoje. Olha a cara refletida no espelho do banheiro do cinema. Amargura da alma, as emoções em colisão, num crescendo insuportável. As pessoas, não costumam se dá bem com elas.
Por que, afinal, não ver nenhum proveito para ele e para elas, ficar de hipocrisiazinhas, de bom dia, boa tarde, boa noite, tudo legal? Como vai, vai bem? Por favor, sim senhor, obrigado. Só simulação. Esses pequenos assassinatos da pequena burguesia. Na realidade, “bom dia” pode significar, na real, "vá se danar filho da puta", “boa tarde”: "vá pentelhar a cadela da sua mãe", “boa noite”: "não enche o saco, bundão". Tira outra vez a arma da mochila, acaricia o gatilho com o indicador da mão direita.
Quem sabe na plateia esteja aquela idosa avançadinha, a que lhe pediu para acender o cigarro quando na fila para comprar ingresso. Tratou-a com simpatia, cigarro aceso, virou-se, ao invés de agradecer, com olhos de quem olha o mundo exterior de recôndito nicho astral, chamou-o de “goiaba”. Dessas pessoas em surto PSI, quando abrem a boca é para falar bobagens e agredir. A mente gratuita ataca gratuitamente. Ela, com certeza, viciada em adrenalina e dopamina de imagens de ultraviolência... Senão, que estaria fazendo na fila do Clube da Luta???