O DELEGADO DADEU E O “COLEGA” CORRUPTO

* Da série de contos DELEGADO DADEU

** Leia as outras estórias de Dadeu

O ano corria numa voracidade daquele jeito - que os gaúchos definem como “fome de guri” - isto é , devorando insaciavelmente as horas e os dias , tal qual o apetite dos moleques que exige prato fundo e mesa farta . Dadeu mal achava tempo para a prosa e o chimarrão do fim de tarde, hábito que para ele quase se confundia com uma religião , hora que encontrava para aliviar a tensão natural da atividade policial.

A ocorrência de estiagem havia provocado uma “quebra” nas lavouras e o fechamento de um moinho de trigo se somava ao contexto que deixou um rastro de pobreza e desemprego , explodindo com a frágil estabilidade da pequena cidade . E o efeito colateral do empobrecimento, já desde aquela época , era o natural aumento nos índices da criminalidade.

O Delegado Dadeu contava em sua precária repartição com o auxílio de um único Escrivão que , para complicar se tratava de um moreno – pardo – “cor de cuia” , que recém concluíra a escola de polícia em Porto Alegre e tivera a infelicidade de ser nomeado para trabalhar naquela região, onde predominavam colonos alemães e italianos, bastante racistas naqueles idos tempos.

Desesperado com o acúmulo de ocorrências, Dadeu não descansou enquanto não obteve a promessa do Chefe de Polícia do Estado de que receberia o reforço de um policial experiente para dar apoio aos trabalhos na Delegacia . Na verdade seu clamor não era isolado, pois tanto o Chefe quanto o Diretor de Polícia do Interior já vinham recebendo muitos telefonemas de Vereadores e até do Prefeito Municipal , todos reclamando da insegurança.

No fim de tarde de uma sexta feira, com um vento gelado que prenunciava uma madrugada de frio daquelas que os gaúchos dizem “de renguear cusco” , tocou o telefone – era o Chefe – anunciando que na segunda feira , por volta das onze horas da manhã aportaria à cidade um experiente Inspetor que estava enfrentando “alguns problemas” na capital e , por isso, iria passar uma temporada no interior.

O Delegado Dadeu nunca foi maldoso , mas colocou “as barbas de molho” , afinal era muito estranho que um policial da capital aceitasse trabalhar no interior do estado, sobretudo em cidades pequenas. Se fosse em Pelotas, Santa Maria ou Bagé vá lá – pensou Dadeu .... mas aqui neste fim de mundo ... Chegou a imaginar que a alta cúpula estava mais preocupada em resolver um problema deles lá na capital, do que propriamente suprir as carências da pobre e isolada Delegacia do interior.

Passou todo o sábado e o domingo remoendo pensamentos e suas preocupações não eram em vão. Na segunda feira, no horário marcado , se apresentou o Inspetor que lhe estendeu a mão dizendo seu nome completo , mas foi disparando já de primeira e “à queima roupa” – pode me chamar de “Bola” ...

Cabelo crespo – do tipo que não conhece pente – cavanhaque e bigode ralo, o sujeito ostentava um biotipo “gordinho” e Dadeu pensou – “Bola” , ... - tomara que esse apelido esteja atrelado à sua complexão física - , mas na linguagem policial “bola” também pode significar propina – coima – e era muito comum se dizer que fulano ou ciclano eram maus policiais quando “comiam bola” , isto é , aceitavam subornos ou cobravam propinas .

Na primeira semana de trabalho o Inspetor Bola trabalhou bem e fazia suas refeições na própria Delegacia, cozinhando num fogão à querosene que impregnava o ambiente com aquele cheiro tão peculiar quanto repugnante . Parecia estar bastante conformado com a vida simples e pacata do interior, mas falava muito pouco de suas atividades como policial na capital do estado.

Mas essa tranqüilidade foi efêmera e já na segunda semana, Dadeu recebeu uma piada na fila do Banco de que seu policial estava comendo churrasco na casa de um meliante conhecido como “Zé Facão”, tido como um dos principais abigeatários – nome que se dá no sul ao ladrão de gado – e que representava um “terror” para os pecuaristas – “ E aí Delegado, não participou com seu novo agente do churrasco lá no Facão? .

Dadeu não respondeu á maldosa pergunta, pois coincidência ou não na noite anterior havia “desaparecido” uma “ponta” de gado na Fazenda de Francescho Pellegretti , um dos mais ricos produtores rurais do município, que teve de amargar ainda estragos de relativa monta nas cercas da propriedade rural, cortadas para dar vazão aos semoventes furtados. Enfurecido encarou o Inspetor “Bola” que deslizando “mais que muçum” recém fisgado disse que fora até lá apenas para conferir o ambiente e aproveitou para “provar” uma carne ...

Num domingo chegou à Delegacia após uma incursão para investigar furtos numa propriedade do interior, trazendo duas galinhas crioulas – cevadas a campo – anunciando que iria preparar um delicioso “arroz com galinha” ... e quando Dadeu lhe perguntou a origem das aves , prontamente respondeu que fora um presente do Açougue do “Salsicha” – conhecido receptador da cidade ...

Dadeu já estava prestes a telefonar para a Chefia de Polícia, mas temia a precipitação e os efeitos de sua ação envolvendo um “colega” , contudo passada uma semana do evento da “galinhada” , Dadeu e seu Escrivão moreno foram chamados para atender uma situação de urgência, pois teria havido um tiroteio nos fundos do “Bar 20 buscar”, reduto de prostituição e jogo ilegal.

Chegando no “20 Buscar” Dadeu foi logo colocando contra a parede todos os freqüentadores do ambiente, mas qual sua surpresa ao ver o Inspetor “Bola” com seu Revólver calibre 38 ainda expedindo fumaça pelo cano ... Chamou o dono do estabelecimento e indagou das causas do tiroteio e este lhe disse que seu policial havia provocado a briga no carteado de “pife a dinheiro”, e exigia uma comissão pelo jogo do bicho , bancado pelos donos do bar.

Dadeu, constrangido, determinou ao policial que o acompanhasse até a Delegacia, onde recolheu seu revólver e seu distintivo – registrou a ocorrência – e telefonou de imediato ao Chefe dizendo que preferia dar conta sozinho do trabalho, mas não queria mais aquele “colega” em sua repartição e que ele mesmo havia se encarregado de colocá-lo no ônibus de volta para a capital . Dizem que depois disso, o Delegado Dadeu sempre “entortava a cara” quando ouvia a palavra “bola” ...