Ira
Primeiro entregou seus pares para escapar da prisão. Depois subornou os soviéticos para cruzar o muro. Do outro lado procurou os que sobreviveram. Poucos, muito menos do que esperava. Os que não sabiam o que ele fizera. Juntos traçaram um plano para fugir do Velho Mundo e continuar na Klux Klux Klan sua luta. O dinheiro era escasso, a arrecadação difícil. No entanto, cruzaram o Atlântico.
Com a ajuda dos partidários se misturaram ao povo até tornarem-se indistinguíveis dos que apenas queriam uma nova chance. Trabalharam para se tornar respeitáveis e na calada da noite torturaram aqueles que desde o princípio fizeram a América.
O tempo foi passando e o ódio começou a dar lugar ao desejo de uma velhice tranquila. Cada vez menor, a organização definhava. Eles, por outro lado, tinham família, emprego, dinheiro. Uma vida que jamais cogitaram enquanto conduziam os prisioneiros para as câmaras de gás. Distanciaram-se uns dos outros, queriam apenas gozar a vida que lhes sobrasse. De repente, um se calou de vez. Logo, outro desapareceu e mais outro. Um a um, como se nunca tivessem existido. Ele nunca se preocupou com nenhum deles, era melhor assim.
Uma melodia o acordou, percebeu por sua vez que estava só. Primeiro desconfiou que ela tivesse lhe roubado toda a coberta, como era de costume, por isso o frio. Até cogitou acordá-la e se aproveitar dessa desculpa para aquecer-se em seus braços. Mas sua mulher não estava no quarto. A música alta fez lembrá-lo de sua filha. Foi até seu quarto para ver se ela havia acordado e não encontrou ninguém. Na sala a vitrola tocava jazz.
Ao descer as escadas se deparou com uma mulher sentada em uma cadeira branca. Ela vestia um vestido azul, antiquado. A estranha de cabelos negros estava à vontade, esperando-o. Bebericava algo escuro, deixando escorrer pelos lábios e derramando no busto e no píres um líquido vermelho-negro perturbadoramente semelhante a sangue.
_John Coltrane. - ela falou - Mas infelizmente receio que você não aprecie seu talento.
_Quem é você? - Inquiriu ele.
_Quem eu sou não é importante Karol, quem você é realmente é o que importa. No entanto pode-me chamar de Ira, se quiser. - Disse ela sorrindo docemente, como uma maníaca.
_Me diga agora onde estão minha mulher e minha filha! - Ele se aproximava devagar, esperando o momento certo.
_Se você quiser vê-las novamente, vai se sentar comigo. Prometo não tomar-lhe muito tempo, Hegel. - A mulher fez questão de dizer "Hegel" em um tom desafiador.
Foi impossível evitar o espanto. Há anos ninguém o chamava assim, o ex-soldado do Terceiro Reich já não se lembrava mais da sua antiga identidade. Karol era quem ele era agora. Seu descuido deixara claro que ele era quem ela procurava. Sem alternativa, Hegel sentou-se encarando-a nos olhos, tentando se lembrar daquele rosto.
_Preciso reconhecer que foi realmente difícil encontrá-lo. Todos os outros se descuidaram de alguma maneira. Você sempre foi o melhor, afinal, eles precisaram que eu lhes contasse que você era quem havia entregado os seus pares para os russos para poder te encontrar.
_Você é um fantasma do passado, só não vejo onde você quer chegar.
_Nunca esperei que se lembrasse de mim. Não tenho nada de especial, exceto que continuo aqui. E você também, infelizmente.
_Eu não sei do que você está falando, mas se você tocar em um fio de cabelo da minha família...
_Por favor, suas mentiras te ajudaram até agora, mas não vão funcionar comigo.
A calma daquela judiazinha o fazia queimar de ódio. Ele sabia que ela era judia, anos enterrando-os havia lhe dado esse poder de reconhecê-los só com um olhar.
_Pois bem, você quer a verdade? Você simplesmente não tem idade para ser uma sobrevivente de algum campo de concentração, vadia! Então, ou você me diz agora onde minha filha e minha mulher estão, ou eu te mostro o verdadeiro terror que você só conhece pelos livros de História. - Conforme ela queria, a verdadeira face de Hegel viera à tona.
_Eu nunca disse que sobrevivi, Hegel. Obrigada por ser sincero. Elas estão no porão. - Ira disse essas últimas palavras quase rindo, o que tentava Hegel a esquecer o paradeiro de sua família e matar aquela vagabunda com as próprias mãos.
Saiu correndo e desceu as escadas apressadamente. Ao acender as luzes deparou-se com sua mulher e filha amarradas, vendadas e amordaçadas. Ambas estavam cobertas de sangue, alguém com uma lâmina havia desenhado suásticas em suas testas. Era realmente sangue na xícara, pensou Hegel, e aquele pensamento o fez perder a cabeça de vez. Ele precisava de uma faca para cortar as cordas, mas antes iria degolar aquela cretina que ousara atacá-lo em sua própria casa e torturar sua família.
Ao retornar para a sala, Ira havia sumido. A vitrola continuava tocando aquela música insuportável. A xícara sobre a mesa descansava vazia. Alcançou uma faca e esperou ela aparecer. Hegel sabia que Ira ainda estava por perto, podia sentir seu cheiro.
Ouviu então um barulho na porta dos fundos. Se preparou e quando o vulto se aproximou, ele desferiu um golpe torcendo para acertar a garganta. Qual não foi a sua surpresa ao ver Jörn, um dos seus companheiros, com uma arma na mão e com a outra, segurando a garganta que jorrava sangue. Mesmo assustado, ele desferiu dois tiros contra Hegel, que caiu no chão. Pela porta da frente os outros três que faltavam apareceram: Kliv, Andersen e Otto.
O que se seguiu foi um tiroteio. Hegel ferido conseguiu pegar a arma de Jörn e mesmo em desvantagem, derrubou dois de seus amigos. Andersen, sabendo que Hegel estava sem balas correu para acabar com ele, chamando-o de traidor. Enquanto isso, Ira se esgueirara até o porão e cortara a mangueira de gás. Fugindo pela pequena janela, ela correu o mais rápido que pôde.
Hegel e Andersen rolaram pelo chão, um tentando arrancar o revólver da mão do outro. Quando Hegel finalmente conseguiu pegar a arma, sua fúria foi tão grande que ele não deu tempo para o alemão, deitado no chão avisá-lo do vazamento. A explosão não deixou sobreviventes. Os quatro nazistas e a família de Karol se foram.
Ira, fruto de um estupro coletivo em que os quatro soldados participaram, chorou pela perda do disco do Coltrane.