Pontos de Vista

Adalberto se levanta com dificuldade, sente sua cabeça doendo, ao apalpá-la instintivamente sente um calombo na parte de cima. Ele é ajudado a se levantar por um agente de polícia, e, ao ficar de pé, depara-se com dois cadáveres estendidos no chão a sua frente. Ele reconhece um deles, seu colega da polícia civil, agente Cardoso.

- O senhor se sente bem? – pergunta o jovem policial.

O agente Adalberto não ouve a pergunta do policial, distraído que fica ao ver o colega ali no chão, estendido numa poça de sangue, ao lado do outro sujeito.

- Quem é aquele? – pergunta Adalberto, dirigindo-se aos policiais na cena do crime.

- Ao que parece, um bandido, um sujeito procurado, – fala o sargento da brigada – estávamos há muito tempo atrás dele, trata-se de um traficante, procurado por vários crimes, incluindo assassinato. Gostaríamos de ouvir a sua versão do que houve por aqui, se se sentir bem.

Adalberto acena positivamente ainda com a mão na cabeça.

- Bem... Não sei o que houve, eu estava de serviço na delegacia, quando atendi a um chamado anônimo sobre uma boca de fumo, então Cardoso, que também estava de serviço, e eu, subimos na viatura e corremos até aqui, contando que era uma diligência de rotina, apenas algum traficantezinho vendendo o produto. Daí subimos a escada até aqui, eu na frente e Cardoso logo atrás, foi então que senti uma pressão na cabeça, e tudo ficou escuro.

Passaram-se dois dias em que Adalberto ficou de folga, recuperando-se da lesão sofrida e pensando sobre o colega morto. Ele pensa na dureza da vida de policial na capital, e a falta de reconhecimento por parte da população. “Mas tudo vai mudar.” Pelo menos é o que pensa Adalberto quando finalmente for promovido a delegado. Passou no concurso, destacando-se entre todos os concorrentes, e por ter sido um dos primeiros colocados, ganhou a possibilidade de escolher, onde houvesse vaga, a cidade onde exercer a atividade de delegado. E ele escolheu entre tantas cidades, uma em especial no interior do estado, Rio Pardo, uma cidadezinha pacata, tranqüila, de trinta e cinco mil habitantes, onde a maior parte da população é de aposentados. “O que pode acontecer de perigoso numa cidadezinha de aposentados? Nada de crimes hediondos, nada de corrupção, todos se tratando por compadres.” Ele olha para um folheto com os dizeres: “Feliz cidade para se viver”.

De volta a delegacia, Adalberto em seus últimos dias como policial civil em Porto Alegre, pergunta a um jovem loiro, encarregado da investigação sobre a morte de seu colega, sobre a situação.

- Ao que parece, seu colega era um policial da banda podre, que estava dando cobertura a um poderoso traficante da capital.

Ao ouvir estas palavras, Adalberto tem um sobressalto.

- O Cardoso? Como pode? Eu nunca desconfiei de nada.

- Talvez porque você é como os traficantes costumam dizer... “um policial bobão.” – retruca o jovem loiro com um sorriso.

Adalberto se dá conta de que nem sabe o nome do investigador, e pergunta-lhe, ao que o outro responde:

- Julio Prestes, ao seu dispor, e com um olhar de desdém para Adalberto, o rosto numa cortina de ferro, fala:

- Eu lamento muito sobre seu colega. Ao que parece ele teve uma discussão com o traficante, e os dois atiraram um no outro, mas pelo visto, ele tinha alguma consideração pelo senhor, por tê-lo golpeado por traz para não presenciar o ocorrido. Quero dizer, ele poderia simplesmente ter atirado no senhor, mas preferiu apenas fazê-lo dormir. Ou talvez, estivesse apenas poupando-o para incriminá-lo pelo crime.

O investigador pega uma pasta em cima da mesa, então parece recordar-se de alguma coisa.

- A propósito Adalberto, quero lhe dar os parabéns por ter passado no concurso para delegado, ouvi dizer que pretende mudar-se para o interior.

- Isso mesmo Julio, não agüento mais essa pressão toda na cidade grande. Mas tu achas que o Cardoso poderia estar querendo mesmo me incriminar pela morte do traficante?

- Quem sabe!? De qualquer forma, agora não podemos mesmo saber. Mas me diga Adalberto, você conhecia Cardoso há muito tempo?

- Não muito, fazia apenas seis meses que ele estava servindo na mesma delegacia que eu, mas pelo pouco que nos conhecíamos nos tornamos amigos.

Com um aperto de mãos e um olhar de estranheza da parte do investigador Julio Prestes, os dois se despedem.

****

No outro dia, quando chega à delegacia, Adalberto encontra uma legião de policiais observando-o e o investigador Julio Prestes vem em sua direção.

- Você está preso, agente Adalberto Borges, pelo crime de assassinato e tráfico de entorpecentes.

- O quê? – Adalberto arregala os olhos, dá um pulo e grita: - Tu tá maluco?

- Acredite em mim Adalberto, estou perfeitamente de posse de minhas faculdades mentais, e você está preso, entre outras acusações, pelo assassinato do policial da corregedoria, Luiz Cardoso. E deixe-me apresentar também, sou um agente da corregedoria, designado para investigar a súbita morte de um dos nossos.

- Tu só podes estar de brincadeira comigo. Como eu poderia ter matado o cara, estando inconsciente no chão?

- Nada mais simples, meu caro Adalberto, eu notei desde o princípio que o calombo em sua cabeça está situado no topo do crânio, não na base da nuca, local mais apropriado para um golpe dado por trás, como você garante ter sido dado. Foi tudo planejado com antecedência, você já havia descoberto, não sei por que meios, que Cardoso era um agente da corregedoria e estava suspeitando de você, então armou para cima dele.

- Tu não podes provar nada, seu engomadinho.

- Calma meu caro Adalberto, deixe-me terminar a estória. Fazia anos que você estava dando proteção e prestando serviços a um poderoso traficante dentro da grande Porto Alegre, mas com a chegada de Cardoso, sentiu que estava na hora de parar, daí marcou uma reunião com o intermediário do traficante, o cadáver ao lado de Cardoso. Pelo que pude perceber, o traficante sempre tomou o cuidado de não lidar com você pessoalmente, por isso sempre usava um intermediário. Deste modo, nem você conhecia o chefão, nem ele o conhecia.

Adalberto escuta tudo com um olhar frio. Julio Prestes continua:

- Hora de parar, os homens estavam chegando perto, mas você não podia simplesmente parar e ir embora, teria que limpar tudo primeiro. Se você não desse um jeito de arranjar um culpado, outros agentes da corregedoria ficariam no seu pé. Era preciso arrumar tudo. Então, depois de marcar um encontro secreto com o intermediário, pagou um moleque qualquer para ligar anonimamente para a delegacia com uma denuncia anônima de tráfico em uma boca de fumo, sabendo que neste dia e nesta hora, só estariam disponíveis você e Cardoso na delegacia para atender a denúncia. Ao chegar ao local, você, com um revólver apreendido das ruas, atirou no traficante, e depois, com a arma do traficante, atirou no seu colega, tomando o cuidado de usar luvas e deixando as impressões dos dois nas armas usadas. Depois, com um porrete improvisado ou talvez com o cabo de seu próprio revólver, golpeou-se na cabeça, de cima para baixo, pois não poderia espancar-se por trás, e deitou no chão fingindo estar desacordado. Mas antes, tomou o cuidado para colocar pistas no local que indicassem que seu colega, Cardoso, é quem estava trabalhando para o traficante, e não você.

Passando um lenço pelo rosto, Adalberto expressa um sorrisinho, mas permanece calado. O agente da corregedoria olha para ele com desdém e depois continua:

- Depois disso, você iria para o interior trabalhar como delegado em uma cidadezinha qualquer, vivendo muito bem de vida com o dinheiro que arrecadou por seus “serviços” prestados ao traficante. Afinal, mesmo que seus gastos fossem maiores que seu salário, você simplesmente poderia inventar uma desculpa qualquer, como tendo recebido uma herança. Ninguém na cidade o conheceria, portanto não levantaria suspeita. E você ficaria com uma imagem de cidadão ilustre, modelo para todos os demais, com uma ficha limpa. Talvez até começasse a distribuir dinheiro entre políticos em campanha para que eles mantivessem sua imagem de cidadão exemplar. Quem sabe não começaria seu próprio negócio de tráfico de entorpecentes no interior? E quanto ao concurso público para delegado, você comprou as respostas da prova usando seus contatos no submundo, e deste modo destacando-se entre os aprovados.

- Tu sabes que eu não vou ficar enjaulado por muito tempo, contratarei bons advogados. – retruca Adalberto Borges.

- Eu sei disso, mas pelo menos você não poderá mais operar em segredo, e o chefão traficante saberá quem foi que matou o seu homem de confiança. Se eu fosse você, ficaria contente cumprindo trinta anos de prisão, num lugar seguro.

Os policiais levam Adalberto para a cela, algemado, e o agente Luiz Prestes repara num folheto em cima da mesa de Adalberto, com os dizeres: “Feliz cidade para se viver”.

Fim

Paulo Salgueiro
Enviado por Paulo Salgueiro em 23/01/2010
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