SETE ERROS

"Eu amo você, paranóica,

seus olhos vidrados e duros

me fazem sofrer.

(Guilherme Arantes, 1980)

Ficou maravilhado quando o ônibus procedente de Maceió entrou na Marginal e ele pôde ver São Paulo brilhando à luz do mercúrio e do neon. Mal podia acreditar que existisse cidade enorme como aquela, e Maceió nem era tão pequena assim. Com certeza muita gente morava naquele lugar, então não faltaria freguês que encomendasse serviço com ele.

Logo na primeira noite em que desembarcou na rodoviária, andou a esmo, com cara de abobalhado, rindo à toa. As luzes, o trânsito, o vai e vem de pessoas que passavam por ele apressadas, as vitrines das lojas, as prostitutas, tudo era motivo de alegria para aquele alagoano de trinta e dois anos, que viera em busca de uma vida melhor na grande metrópole do Brasil.

Instalou-se num hotelzinho de quinta categoria, próximo à Avenida São João, consumindo tudo o que lhe restava do último serviço. Não pareceu preocupado, sabia que em breve ganharia muito dinheiro em São Paulo.

No princípio, os trabalhos eram esporádicos. Com o tempo e a dedicação, ganhou a confiança dos clientes, que admiravam sua pontualidade. A fama começou a preceder-lhe, o que, de certa forma, era a glória suprema na sua profissão. Todo mundo do ramo conhecia o Alagoano, homem que honrava a profissão de matador de aluguel e que num simples aperto de mão empenhava sua palavra mais do que se assinasse um contrato com firma reconhecida em cartório.

Levava uma vida simples: durante o dia, dormia, assistia TV e, às vezes, visitava algum prostíbulo diurno, desses fast foods sexuais que toda grande cidade tem. À noite, fazia seus serviços de forma rápida e voltava para o hotelzinho barato. Simples assim, sem firulas.

Não tinha amigos nem repetia a mesma prostituta duas vezes. Não queria compromisso, isso poderia ser fatal na sua profissão. A solidão o incomodava, mas sabia que era um erro achar que poderia viver como um homem normal. Não, a vida que escolhera cobrava um preço, e ele tinha de pagar, querendo ou não.

Sua única diversão era subir ao terraço do edifício Altino Arantes, no finzinho da tarde, e ver as luzes da cidade se acenderem lá embaixo, milhares de pontinhos brilhantes que se estendiam a perder de vista no horizonte. Ficava absorto, quase em transe, até sentir que já estava na hora de partir para o trabalho. Era quase como se, do alto, a cidade lhe transmitisse parte de sua força vital para continuar levando aquela vida.

Não sentia remorsos. Acreditava piamente que prestava um serviço público, eliminando a escória que corroía a sociedade. Ao contrário de seus colegas de profissão, gostava de pesquisar antes de aceitar o serviço. Já se recusara diversas vezes a fechar negócio, principalmente quando a vítima não se encaixava naquilo que chamava de perfil descartável. Atingiu um nível na carreira em que podia se dar ao luxo de agir dessa forma, evitando assim futuros problemas de consciência. Tinha uma vida estruturada, se é que se pode dizer isso, até o dia em que a conheceu e cometeu seu primeiro erro: ele a desejou.

Foi num finalzinho de tarde, quando se dirigia mais uma vez ao terraço do Altino Arantes. Ela estava parada num dos ponto de ônibus da Avenida Nove de Julho, linda, cabelos crespos e curtos, pele de ébano e corpo de sereia. Ele, que passava na calçada, não resistiu e parou, observando-a com o canto dos olhos. Não queria, mas quanto mais a observava, mais a desejava. Sentiu a boca ressecada e o coração disparando dentro do peito, algo que nunca sentira por nenhuma outra mulher.

A partir daquele dia, lá estava ele, sempre no final da tarde. Ela devia ser secretária, pois raramente deixava de pegar seu ônibus naquele horário. Acabou, sem querer, chamando sua atenção. No início, ela o desdenhou, percebendo sua origem nordestina, seu jeito de olhá-la quase que indecente, como se a despisse da cabeça aos pés. Depois, seu lado mulher falou mais alto, ficou curiosa com aquele homem taciturno que parecia parar ali apenas para observá-la. Quem poderia ser? O que ele queria, sempre tão calado e com aqueles olhos de peixe morto? Seria casado?

Nada como a curiosidade para despertar desejos adormecidos. Ela sentiu-se atraída por seu silêncio, sua figura viril e, principalmente, seu olhar indefinível. Decididamente, nunca na vida fora olhada daquela forma, um misto de desejo e respeito que a deixava intrigada.

Duas semanas depois, numa noite de garoa em que o ônibus atrasou, eles estavam a sós no ponto, quando um homem tentou roubar sua bolsa. De um salto ele já estava em cima do ladrão, que teve de correr como louco para escapar da fúria daquele paraíba que surgiu do nada em sua frente. Mostrou-se agradecida com o ato heróico, e naquela mesma noite amaram-se como velhos amantes que nunca haviam sido. E ele cometeu então o seu segundo erro: apaixonou-se por ela.

Dias felizes, aqueles. Ele a esperava todo final de tarde e os dois assistiam ao pôr do sol no alto do edifício Altino Arantes. O mirante fechava sempre às cinco horas, mas a amizade com um dos guardas de segurança do banco instalado no prédio permitia-lhes continuar indefinidamente a contemplar a vista magnífica da cidade sem serem incomodados. Faziam amor tendo São Paulo por testemunha, depois comiam pizza em uma das barraquinhas nas imediações do Largo de São Bento e dormiam em algum motel das proximidades. Ela morava com uma amiga num bairro da periferia, não havia ninguém a quem devesse explicações, então nada impedia que os dois passassem as noites bebendo vinho e fazendo amor. Foi aí que cometeu o seu terceiro erro: pensou que poderia ser feliz.

Desde o princípio da relação, um acordo silencioso entre eles foi firmado: não haveria passado, nem satisfações a serem dadas. Viveriam o presente, e se houvesse um futuro, que viesse da mesma forma do encontro, sem planejamento.

Havia recusado alguns serviços, para passar mais tempo com ela, mas o dinheiro estava acabando e ele não queria ter que apelar para o seu pé de meia. Depois de um mês inteiro dormindo ao seu lado, não sabia mais como seria voltar àquele hotelzinho triste e solitário. Por momentos esqueceu quem era e o que fazia, pensou na aposentadoria precoce e em como seria envelhecer ao lado daquela completa desconhecida. Foi seu quarto erro: esqueceu que era um matador de aluguel, suas mãos estavam sujas de sangue, e o sangue sempre atrai mais sangue.

Recebeu a ligação de um agenciador. Agenciador era como se chamava o intermediário. Na indústria do crime, o contratado nunca sabia quem o contratara, pessoas importantes não podiam correr o risco de serem apontadas como mandantes, então recorriam aos serviços de agenciadores.

- Uma grana preta - disse o homem, num encontro marcado às pressas, nos fundos de uma pizzaria do Bexiga. - Mas os caras querem você, Alagoano. Precisam de um profissional, o melhor.

Alagoano parceu pensar um pouco. Estava temeroso, afinal era o primeiro trabalho que faria desde que a conhecera. Sua vida havia mudado da água para o vinho no curto espaço de um mês. Já fazia planos de sair daquela vida, casar, ter filhos. Por outro lado, a grana oferecida era muito alta, não havia como ignorar isso. O serviço mais caro que alguém jamais havia encomendado na cidade, e queriam que ele fizesse. Isso mexia com seu ego, e por mais que negasse, mexia com suas emoções também. Sim, estava com saudades disso.

Pensou muito e resolveu aceitar. O pagamento era excelente, depois daquele serviço poderia se aposentar e ficar com ela para sempre. Teria de mudar de cidade, não podia se arriscar a constituir família ali, em São Paulo. Isso seria o mais duro, abandonar a cidade que o acolhera e que aprendera a amar. Maceió também nem pensar, era procurado por lá. Talvez alguma cidadezinha do interior, de onde pudesse chegar facilmente a São Paulo sempre que sentisse saudades da metrópole...

- Está bem, eu faço. Trouxe as coordenadas?

O homem esfregou as mãos de contentamento. Certamente estaria recebendo uma boa grana quando o contrato se consumasse. Puxou do bolso um envelope e colocou em cima da mesa.

Alagoano recebeu o envelope sem olhar e guardou no bolso da calça.

- O que foi isso no seu rosto? - perguntou, referindo-se a um pedaço de esparadrapo próximo ao olho esquerdo.

- Ah, isso?... Um tombo no banheiro. Enchi a cara e fiquei bêbado como gambá, um mico sem tamanho...

Sabia que era mentira, ele havia apanhado de alguém. Reconhecia um cruzado no rosto, já fora pugilista anos atrás, em Alagoas. Mas não comentou nada.

- Dentro de 48 horas o serviço estará completo. Você já sabe o que fazer.

O outro assentiu com a cabeça. Trabalharam juntos inúmeras vezes, sabia que ele se referia ao pagamento, que seria depositado numa conta aberta com documentos falsos, para não ser rastreada.

Levantou-se e já ia embora, quando o agenciador disse, num sussurro:

- Tome cuidado.

Voltou-se, sem entender o motivo daquelas duas palavras, mas agradeceu assim mesmo.

- Tomarei, fique tranquilo.

E saiu.

*

- Não vá embora, fique comigo mais um pouco... - ela pediu.

Mas ele levantou-se assim mesmo e começou a colocar a roupa.

- Tenho um serviço a fazer.

- Mas nós podemos ficar aqui, juntinhos, o dia inteiro. O que poderia ser melhor?...

Ele sentou-se na cama e beijou-a com delicadeza. Admirou-lhe a pela morena, os seios pontudos e a expressão de urgência nos olhos.

- Não se preocupe. Em duas horas estarei de volta. Enquanto isso, pode ir aquecendo a cama para nós dois.

Ela não disse mais nada, apenas o acompanhou com o olhar enquanto ele saía do quarto. Algo lhe dizia que nunca mais o veria com vida.

*

Era sábado. A praça estava movimentada, o expediente comercial duraria ainda meia hora.

Vai chover, pensou, descolando a camisa grudada nas costas. Duas horas sob o sol da Praça da Sé e nada do alvo aparecer. Tinha certeza que ele não saíra do prédio em que trabalhava. Levantou-se do banco e deu uma volta para esticar as pernas. Num canto afastado, um grupo de adolescentes fumava tranquilamente o baseado que passava de mão em mão. À sua esquerda, o ambulante vendia cachorro-quente com recheio de purê de batata, uma esquisitice paulista que ele nunca conseguira entender. Do lado direito da praça, um mendigo dormia esticado no chão, enquanto uma cartomante tentava, sem sucesso, angariar clientes entre os transeuntes que passavam apressados. Sabia que algo estava muito errado, seu sexto sentido não se enganava, mas mesmo assim continuou, cometendo seu quinto erro: não confiou no seu instinto.

A arma começava a lhe incomodar, na altura da cintura. De repente, avistou o alvo saindo do prédio. Correu e conseguiu postar-se bem atrás dele. O homem andava a passos rápidos, olhando para todos os lados, como se temesse alguma coisa.

Alagoano puxou a arma e emparelhou com ele. O homem suava, perdeu toda a cor ao deparar-se com o cano apontado para seu peito, mas não pareceu surpreso com aquilo. Jogou-se ao chão, enquanto soaram tiros de vários cantos da praça, ao mesmo tempo em que um relâmpago cortou o céu e o trovão se fez ouvir. Pessoas correram desesperadas ao escutarem os estampidos, tentando fugir da trajetória das balas, em meio à chuva torrencial que desabou repentinamente sobre a cidade.

A vista ficou turva, as pernas não aguentaram o peso do corpo e ele caiu. Piscou aturdido, ao perceber as gotas de chuva que caíam sobre seu rosto vindas do infinito. Seu sangue misturou-se com a chuva, formando um borrão cor de rosa sobre a grande estrela embaixo de si.

A cartomente foi a primeira a chegar, logo seguida pelo mendigo. Ela debruçou-se sobre seu corpo agonizante e verificou os orifícios por onde as balas entraram:

- Acertamos na mosca!...

O ambulante que vendia cachorro-quente veio depois, ainda guardando a arma no coldre:

- Se ferrou, velho...

O mendigo cutucou-lhe as costelas com a ponta do sapato e decretou:

- Já era. Pode encomendar a alma ao capeta.

A essa altura, uma pequena multidão já cercava o corpo caído no chão. Alagoano olhava aqueles rostos estranhos, a vista embaçada pelo espírito de morte e pela chuva, tentando desesperadamente encontrar alguém conhecido. Sentiu frio.

Pior que morrer na chuva era morrer sozinho.

O alvo foi o último a se aproximar. Trazia uma expressão bem diferente no olhar, agora que se sentia seguro. Mostrou o colete numa das mãos:

- Você perdeu - disse.

Percebeu que alguém o fitava da multidão. Num esforço, reconheceu o agenciador. Ele balançava a cabeça negativamente, como quem pede desculpas, antes de desaparecer no aguaceiro. Lembrou-se do "Tome cuidado" que ouvira na véspera, das marcas em seu rosto, e entendeu tudo: uma cilada, uma maldita cilada!... E ele caíra como um principiante.

- É a Polícia, vamos abrir a roda que a gente precisa de espaço. - o ex-mendigo se encarregava de colocar ordem no aglomerado de pessoas.

- Esse cara deu muito trabalho. Mais de trinta assassinatos nos últimos dois anos. Pensei que nunca o pegaríamos...

Ouviu uma sirene ao longe. Sabia que a ambulância chegaria muito tarde para ele, mas era mesmo uma pena que logo agora que conhecera a felicidade, a morte tenha resolvido cobrar seu preço...

- Se achava muito esperto, não é? Paraíba otário... - caçoou novamente o alvo. - Aposto que não se lembra de mim...

Sabia que o rosto não era estranho. Mas de onde o conhecia?...

A verdade veio junto com o raio que cortou o céu naquele instante: era o ladrão. O mesmo que tentara roubar a bolsa dela, naquele começo de noite, semanas atrás.

Tentou dizer algo, não conseguiu. Uma golfada de sangue escapou-lhe pela boca. Estava morrendo.

- Sim, você foi enganado, bundão. Por uma prostituta. Chique, de fino trato, mas uma prostituta.

- Essa cidade tem muitas armadilhas, matador, você deveria saber disso... - completou a policial disfarçada de cartomante. - Foi um erro confiar numa desconhecida...

Ele sorriu, apesar de tudo: o sexto erro. Mas ainda não o pior de todos.

- Credo, como vocês são maus. - alfinetou o mendigo – Ele bem que podia morrer sem essa...

O último suspiro do assassino veio antes da chegada da ambulância e ele morreu como sempre soube que morreria: sozinho em uma tarde de tempestade.

No dia seguinte, os jornais estamparam a foto do cadáver exatamente sobre o Marco Zero da cidade que tanto amou.

Morreu sem saber que cometera um último erro, o sétimo e maior de todos: São Paulo é amante ciumenta, que devora os homens e não admite traições.

E agora o teria em suas entranhas, num túmulo perdido de um cemitério qualquer, para todo o sempre.