Quando levaram meu amor

Ficar aqui o dia inteiro é um saco. A Unidade Correcional Arthur Kill é o pior lugar que eu conheci em toda a minha vida. Arthur Kill. Arthur Morte. Diabo de nome macabro. Pouco me importa que seja derivado de alguma coisa do holandês, pra mim kill é morte e acabou. Por isso resolvi contar como perdi todas as pessoas que amo, mesmo sem nunca ter escrito nada assim. Resolvi contar porque não nos vemos mais. Resolvi aliviar todo o peso que sinto em minhas costas.

De qualquer modo, primeiramente devo me apresentar. Meu nome é Sebastienne Bascher, nascido em 1979 na cidade de Malone, ao norte do Estado de Nova York, pais canadenses. Aos 19 anos me mudei para Cabo Verde, tornando esse país minha morada durante 11 anos de minha vida. Foi onde efetivamente aprendi tudo o que sei hoje. Ao menos tudo o que me é útil. Lá aprendi a escrever, não no meu idioma natal, mas hoje posso escrever em algum. Lá conheci a mulher de minha vida.

Mariah Smith trabalhava na embaixada de Cabo Verde como secretária. Falava inglês e português muito bem e assim como eu, nasceu no Estado americano de Nova York. Eu em Malone, próxima à divisa com o Canadá, ela em Levittown, cidade na área urbana, próxima à cidade de Nova York.

Eu trabalhava no setor de viagens.

Mentira.

Na verdade eu trabalhava dando um jeito de mandar africanos pros Estados Unidos. Pagavam até mais ou menos bem. Cerca de 400 dólares pra eles chegarem lá. Os que tinham como arrumar mais dinheiro pagavam cerca de 3 mil, mas chegavam lá com um Green Card falsificado. Por 10 mil, eu conseguia um Green Card original e uma certidão de casamento com uma americana. Era assim que eu ganhava a vida.

Conheci Mariah num restaurante metido a besta na Achada Santo Antonio. Morena, parecia aproveitar bem as praias locais, bem magra, um corpo esguio, sem nada grande, nem seios nem bunda, mas tudo combinando. Seu rosto era fino e ela usava um par de óculos finos que combinavam perfeitamente com seu rosto.

Vi que ela estava com uma camisa do New York Yankees e resolvi puxar assunto. Apesar de ser o time de baseball mais popular da América, não era comum ver camisas como aquela por lá. Apesar de ter nascido em Nova York, eu torço pro Toronto Blue Jays, muito menos popular, com muito menos títulos, mas o único time na NFL do Canadá. E eu sempre tive muito mais ligação com o Canadá que com os Estados Unidos, por conta da minha família. Ação de Graças, Natal, Dia de Ano Novo, todos passados em Belleville. Muito mais próxima da sede dos Blues do que da dos Yankees.

Era Setembro, mas o calor já era infernal. Na verdade em Praia, capital do Cabo Verde, parece que sempre está um calor infernal. Conversamos bastante, e entre algumas brincadeiras por conta de nossas equipes, alguns copos de cerveja, marcamos de nos encontrar no fim de semana. Na minha casa tinha TV à cabo e combinamos de ver o jogo que estivesse passando da MLB. Coincidentemente seria entre os Yankees e os Blue Jays. Uma alucinante vitória de 10 a 4 do Blue Jays terminou com uma noite de sexo mais alucinante ainda. Ficamos horas naquela cama, e quando me dei conta, já era o dia seguinte.

Nos encontramos mais uma vez e outra e outra. Me divertia bastante ao lado dela, conversávamos sobre baseball, política, cultura,

Nossa relação foi se tornando cada vez mais séria, apesar de o degrau máximo que alcançamos oficialmente foi o de namoro. Mas o tempo todo falávamos em noivado, casamento, eternidade... Até o dia em que Mariah engravidou e nós decidimos voltar para Nova York. Tudo estava muito bem com a gente, mas o Cabo Verde não é um bom lugar para criar seus filhos, especialmente quando seu pai ganha a vida com esquemas de imigração ilegal.

Partimos para Nova York de avião, apesar de todos os meus protestos. Eu sempre tive medo de viajar legalmente e ter problemas no aeroporto. Nos filmes a CIA, o FBI e qualquer agência americana parecia muito competente em seguir pessoas sem que elas soubessem.

Mariah grávida, eu suando com um daqueles cabo-verdianos que eu botava num barco rumo à Flórida e vários turistas americanos felizes com suas férias passadas em um país cheio de praias.

Quatro horas da manhã de uma sexta-feira chuvosa.

Desde que Mariah se foi tenho tidos dias complicados, tendo pesadelos contínuos durante a noite, que acabam me impedindo de dormir agradavelmente e quando amanhece, ando como um zumbi pelas ruas de Manhattan.

Dinheiro, álcool, pó, mulheres, estórias rabiscadas em guardanapos e solos de contrabaixo foram um anestésico durante um tempo, mas agora os pesadelos parecem domar todo o meu sono de modo que não tenho mais vontade de sair de casa, não consigo identificar mais o que é real, o que são expectativas, o que são pesadelos.

Quatro horas da manhã e até agora não consigo dormir. O silêncio lá fora faz com que cada segundo demore

Cada segundo de queda parecia uma eternidade e as pedras iam cada vez mais se tornando maiores, e maiores, e maiores e mais assustadoras. O impacto inevitável se aproximava e eu pensava em todas as decisões equivocadas que havia tomado ao longo da vida, em todas as pessoas que eu fiz com que me odiassem, no casamento que deu errado. Se eu tivesse mais uma chance pra mudar tudo... Mas era o fim.

Coração acelerado, corpo e roupas encharcados de suor. Um ventilador de teto. Armário aberto. Meu quarto. Era só mais um pesadelo.

O telefone estava no seu lugar, e a frase me veio a mente: Se eu tivesse mais uma chance pra mudar tudo... Peguei o telefone, o número de Mariah, apesar de tanto tempo, ainda estava vivo em minha mente. Penso em ligar... Mas não... Era só mais um pesadelo.